A tese de construção do povo brasileiro
Por: Amanda Chiquito • 18/6/2017 • Ensaio • 3.323 Palavras (14 Páginas) • 229 Visualizações
A tese da construção do ‘povo brasileiro’ nos anos 1910 *
Liane Maria Bertucci-Martins
No Brasil, o impacto das novas idéias bacteriológicas1 coincidiu com transformações sociopolíticas que pretenderam implementar um projeto de ‘redenção’ nacional, que começara a se delinear de forma mais consistente com o fim da escravidão negra (1888) e a instauração de uma nova forma de governo, a república (1889), que substituía uma monarquia que parecia pouco eficiente para satisfazer as demandas que os ‘novos tempos’ anunciavam (pelo menos segundo grande parte da elite política e intelectual, de muitos cafeicultores, comerciantes e empresários). Formar o povo brasileiro e construir uma ‘nação moderna’2, apareceu então como ideal catalisador de várias propostas que há alguns anos estavam na mente e nas ações de vários homens: médicos ou educadores, advogados ou militares, vários deles políticos. O modelo inspirador: os países industrializados da Europa e os Estados Unidos. Entre os meios anunciados para a realização do sonhado empreendimento estavam o conhecimento científico e a educação do povo.
Nascida sob o lema da ordem e do progresso, a república teve na ciência um dos pilares sobre o qual o novo regime político buscou se organizar e legitimar. Instaurado em um período de proliferação das fábricas, de grande imigração européia (incentivada, inclusive com subvenção estatal, para suprir cafezais, e também cidades, de mão-de-obra) e, conseqüentemente, do crescimento dos principais centros urbanos do país (a população de São Paulo, por exemplo, cresceu 269% entre 1890 e 1900 e continuaria crescendo em média 25% a cada 5 anos, nos primeiros anos do século XX3), o governo republicano fará um grande investimento científico e educacional na tentativa de reordenar e conduzir o Brasil pelo caminho que, acreditavam muitos, transformaria o país em uma das grandes nações do mundo. (BERTUCCI, 2004, p.42-90)
Neste contexto, que ganhou diferentes nuanças nas primeiras décadas do Novecentos, ampliar o conhecimento sobre o território foi tão importante quanto descobrir a população que habitava o imenso, e ainda pouco explorado, país chamado Brasil. Idéias eugênicas, que no Brasil ganharam singulares traduções, foram então implementadas nas primeiras décadas do século XX com a pretensão de melhorar a constituição física e mental do brasileiro através da miscigenação com o branco europeu, em um processo de branqueamento que possibilitaria a reabilitação da nação. (MARQUES, 1994; SCHWARCZ, 1993, p.141-238; STEPAN, 2004)4.
Paralelamente, a partir de meados dos anos 1910, ganhou destaque a tese que, através do cuidado com a saúde e a educação, o brasileiro nato (entendido como o homem que há séculos habitava o interior do país) poderia ser salvo do triste destino que aparentemente lhe estava reservado devido a primitiva mistura racial e ao clima tropical do país só a miscigenação com brancos estrangeiros não seria a solução para a boa constituição da população nacional.5 Descendentes das uniões dos primeiros europeus que aportaram na América portuguesa com índios e negros, esse habitante do Brasil jazia abandonado, ignorante e doente, e precisava ser resgatado: os conhecimentos da moderna ciência experimental tornavam tal feito possível (como escreveria Monteiro Lobato, ao promover a revisão do Jeca Tatu em 1918: “O Jeca não é assim: está assim”). Chamado sertanejo, caboclo ou caipira, esse habitante do país vivia disperso de norte a sul do B rasil; afinal o interior ou o sertão, espaço geográfico pouco definido, poderiam começar logo ali, onde acabavam as grandes avenidas dos principais centros urbanos do país. (LIMA; HOCHMAN, 1996)
Foi o sertanejo que Arthur Neiva e Belisário Penna encontraram em sua expedição científica que, em 1912, partiu do Instituto Manguinhos, no Rio de Janeiro, com destino ao Brasil central. Pioneiros na denúncia do estado de penúria, ignorância e enfermidade em que viviam os habitantes daquela região, a divulgação das memórias da viagem de Neiva e Penna representaram impulso decisivo para o movimento sanitarista nacional 6, que mobilizou médicos, educadores, políticos, engenheiros e grande parte da opinião pública brasileira no final dos anos 1910.
No dia 18 de março de 1912 os doutores Arthur Neiva e Belisário Penna deixaram o Rio de Janeiro (NEIVA; PENNA, 1999, p.184). Destino: Salvador, Bahia, e daí para o interior, para o sertão, região semi-árida, de poucas matas (em geral, apenas nas margens dos rios, ribeirões e lagoas). Foram 7 meses percorrendo extensas áreas dos estados da Bahia (norte), Pernambuco (sudoeste), Piauí (sul) e Goiás (de norte a sul). A viagem realizada a pedido da Inspetoria de Obras contra a Seca do governo federal, organizou dados sobre a terra, a flora e a fauna; as gentes, seus hábitos e enfermidades. Recolheu e, mesmo com dificuldades e muitas perdas, transportou espécies vegetais, minerais e animais para estudos posteriores (em Manguinhos); fez experiências e exames in loco e fotografou muito do que viu. O Brasil que emergiu das observações de Neiva e Penna era desanimador. Haveria salvação ?
Nas memórias da expedição científica, publicadas 4 anos depois, as notas sobre o clima e a terra (sua flora e fauna) aparecem primeiro, e a dificuldade para obtenção de dados é notória. Foi grande o esforço para medir a temperatura e os ventos, e também para entender o diferente regime das águas de região tão extensa (em geral chuvas de setembro/outubro a dezembro), com rios que secavam em grande parte do ano. Concluíram: a seca acontecia de forma progressiva, de leste para oeste (a vegetação assim indicava), e mais, a área castigada pela seca tenderia a aumentar, o culpado: o homem. “Em toda a zona, o homem procura apressar por todos os meios a formação de deserto, pela destruição criminosa e estúpida da vegetação”, afirmavam os doutores. A utilização de lenha por companhias de transporte ferroviário e fluvial (na região da Bahia) e, em toda a região, a prática da coivara 7, que estaria destruindo a vegetação até em áreas próximas dos cursos de água ⎯ chamas incontroláveis acabariam com a vegetação “naturalmente enfezada [que dificilmente rebrotava] e que protegia a água escassa daquelas zonas”. A solução seria o reflorestamento, pois a construção de açudes, grandes ou pequenos, como muitos advogavam, só atenderia necessidades prementes nos períodos da seca, em nada contribuindo para a efetiva solução do problema que extrapolava as épocas de grandes estiagens. (NEIVA; PENNA, 1999, p. 77-78; 83-84)
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