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A Ilusão Das Relações Raciais

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Por:   •  25/3/2015  •  3.130 Palavras (13 Páginas)  •  562 Visualizações

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No século XVIII, Antonil percebeu algo interessante numa sociedade dividida entre senhores e escravos, e escreveu: “O Brasil é um inferno para os negros, um purgatório para os brancos e um paraíso para os mulatos”. A frase foi, como sempre acontece com as coisas profundas que são faladas com simplicidade, mal entendida. É que quase todos os seus intérpretes viram nela uma afirmativa ao pé da letra, algo que se referia exclusivamente a um fenômeno biológico e racial, quando de fato ela diz muito mais de fatos sociológicos básicos. Na verdade, penso que, caso se queira ter uma compreensão mais profunda e original das relações raciais que existem no Brasil, será necessário tomar essa expressão nos seus sentidos velados, considerando todas as suas implicações morais e políticas. E elas, conforme veremos a seguir, nos levam muito longe de uma mera questão fisiológica de raças.

Digo que a frase de Antonil tem um sentido sociológico e simbólico profundo porque, no contexto das teorias raciais do momento, ela é no mínimo contraditória. Realmente, não custa relembrar que as teorias racistas européias e norte-americanas não eram tanto contra o negro ou o amarelo (o índio, genericamente falando, também discriminado como inferior), que eram nítida e injustamente inferiorizados relativamente ao branco, mas que também eram vistos como donos de poucas qualidades positivas enquanto “raça”. O problema maior dessas doutrinas, o horror que declaravam, era, isso sim, contra a mistura ou miscigenação das “raças”. É certo, diziam elas, que havia uma nítida ordem natural que graduava, escalonava e hierarquizava as “raças humanas”, conforme ocorria com as espécies de animais e as plantas; é certo também, afirmavam tais teorias, que o branco se situava no alto da escala, com o branco da Europa Ocidental assumindo indiscutível posição de liderança na criação animal e humana do planeta. Mas era também seguro que amarelos e negros tinham qualidades que a mistura denegria e levava ao extermínio. Saber por que tais teorias tinham esse horror à miscigenação é conduzir a curiosidade intelectual para um dos pontos-chaves que distinguem e esclarecem o “racismo à européia” ou “à americana” e o nosso conhecido, dissimulado e disseminado “racismo à brasileira”.

Tome-se o exemplo mais famoso dessas idéias, o Conde de Gobineau, que, inclusive, residiu no Rio de Janeiro como cônsul da França e se tornou amigo e interlocutor intelectual de nosso Imperador, D. Pedro II. Ele diz claramente, num livro célebre pelas idéias racistas e pelos erros no que diz respeito à Antropologia das diferenciações humanas, que é possível dividir as “raças” de acordo com três critérios fundamentais: o intelecto, as propensões animais e as manifestações morais. No curso dessa obra, significativamente intitulada A diversidade moral e intelectual das raças (publicada em 1856), Gobineau, entretanto, não realiza um exercício simplista, no sentido de dizer que a “raça” branca era superior em tudo. Há muita inteligência nos preconceitos e nos autoritarismos. Muito ao contrário, ao comparar, por exemplo, brancos e amarelos no que diz respeito às suas “propensões animais”, ele situa os primeiros abaixo dos segundos. Quem não se salva, porém, como infelizmente acontece até hoje na nossa sociedade, são os negros, sempre e em tudo situados abaixo de brancos e amarelos.

Mas onde Gobineau realmente excedeu a si mesmo e ousou com confiança inusitada, mesmo para quem estava imbuído de uma ideologia autoritária de sua própria superioridade, foi na previsão de que o Brasil levaria menos de 200 anos para se acabar como povo! Por quê? Ora, simplesmente porque ele via com seus próprios olhos, e escrevia revoltado a seus amigos franceses, o quanto a nossa sociedade permitia a mistura insana de raças. Essa miscigenação e esse acasalamento é que o certificavam do nosso fim como povo e como processo biológico. Seu problema, conforme estou revelando, não era a existência de raças diferentes, desde que essas “raças” obviamente ficassem no seu lugar e naturalmente não se misturassem. Gobineau, como se vê, foi o pai, ou melhor, o verdadeiro genitor de um dos valores mais caros ao preconceito racial de qualquer sociedade hierarquizada. Refiro-me ao fato de que ele não se colocou contra a hierarquia que governava, conforme supunha, a diversidade humana no que diz respeito aos seus traços biológicos, mas foi terminantemente contrário ao contato social íntimo entre elas. E é precisamente isso, conforme sabe (mas não expressa) todo racista, que implica a idéia de miscigenação, já que ela importa contato (e contato íntimo, posto que sexual) entre pessoas que, na teoria racista, são vistas e classificadas como pertencendo a espécies diferentes. Daí a palavra “mulato”, que vem de mulo, o animal ambíguo e híbrido por excelência; aquele que é

incapaz de reproduzir-se enquanto tal, pois é o resultado de um cruzamento entre tipos genéticos altamente diferenciados.

Mas, no seu horror ao mulatismo e ao contato íntimo e amoroso entre os tipos humanos, Gobineau não estava só. Outros teóricos importantes, como Buckle, Couty e Agassiz — para ficarmos com aqueles que foram influentes entre os teóricos do racismo no Brasil —, também exprimiram esse medo da mistura e trataram a nossa população como um todo potencialmente degenerado de híbridos incapazes de criarem alguma coisa forte ou positiva. Nesse contexto, vale a pena citar um trecho escrito por Agassiz, opinando precisamente sobre a nossa sociedade: “Que qualquer um que duvida dos males dessa mistura de raças, e se inclina, por mal entendida filantropia, a botar abaixo todas as barreiras que as separam, venha ao Brasil. Não poderá negar a deterioração decorrente do amálgama de raças, mais geral aqui do que em qualquer outro país do mundo, e que vai apagando rapidamente as melhores qualidades do branco, do negro e do índio, deixando um tipo indefinido, híbrido, deficiente em energia física e mental.” O célebre zoólogo de Harvard fecha com Gobineau, postulando um futuro terrível para o Brasil. É que certamente não havia descoberto o valor positivo do mulatismo e, sobretudo, a capacidade brasileira de recuperar e trabalhar o ambíguo como dado positivo, na

glorificação da mulata e do mestiço como sendo, no fundo, uma síntese perfeita do melhor que pode existir no negro, no branco e no índio. E agora, suponho, estamos em posição para retornarmos à frase notável de Antonil a fim de entendê-la em toda a sua profundidade.

Noto, primeiramente, que Antonil não fala de branco, negro e mulato numa equação biológica. Ao contrário, com eles constrói uma associação social ou normal, pois que relaciona o branco com o purgatório,

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