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Democracia E A Constituicao De 1988

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Por:   •  27/4/2014  •  3.880 Palavras (16 Páginas)  •  438 Visualizações

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DEMOCRACIA E A CONSTITUIÇAO DE 1988

A luta contra a ditadura militar, tal como se desenvolveu a partir das eleições de 1974, enquadrou-se ideologicamente no binômio autoritarismo-democracia. Do ponto de vista doutrinário, a fonte de inspiração desse binômio é a distinção kelseniana entre dois modos de produção da ordem jurídica —autônomo e heterônomo— cuja essência reside no fato de a lei ser ou não resultado da ação daqueles aos quais se aplica. Do ponto de vista político, esse binômio permitiu encobrir o caráter de classe dos combates travados contra a ditadura e —desviando-os do enfrentamento direto ao bloco burguês-militar, como era o caso antes de 1974— reduziu-os à crítica abstrata do autoritarismo, bem como, concretamente, dos seus efeitos econômicos e sociais. Isso levaria, na prática, a vincular as lutas populares ao movimento contra a estatização lançado pela burguesia e, progressivamente, a legitimar a hegemonia desta no bloco opositor, por um lado, assim como, por outro, a fixar como objetivos centrais deste bloco a afirmação dos princípios da democracia liberal no plano jurídico e institucional.

A Constituição de 1988 —como, antes dela, a campanha pelas eleições diretas— foi o fruto natural desse processo. Numa ampla medida, ela restabelece o caráter autônomo da ordem jurídico-institucional brasileira, apesar das impurezas e limitações que a vida lhe impôs. De fato, em sua origem, ela não nasce de uma assembléia constituinte soberana, eleita especificamente para esse fim, mas da outorga ao Congresso Nacional de poder constituinte amplo por um governo de legalidade duvidosa —o que explica, por exemplo, que alguns constituintes não tenham sido eleitos enquanto tais, sendo apenas senadores com mandato vigente que a constituinte congressual cooptou. O próprio processo eleitoral de que resultou a Constituinte cerceou a possibilidade de uma autêntica representação popular, ao não contemplar a eleição de candidatos avulsos, propostos pelas organizações sociais e de classe e pela cidadania em geral, em benefício do sistema partidário artificialmente imposto pela ditadura; a aceitação de emendas de iniciativa popular, determinada posteriormente pela Constituinte, foi uma tentativa de compensar esse vício de origem.

A conjuntura particular em que se realizaram as eleições de 1986, signadas pelo Plano Cruzado, contribuiu, por sua vez, para deformar a configuração da representação política na Constituinte, ao conferir esmagadora maioria ao partido da burguesia opositora —o PMDB— no governo, desde o ano anterior, mediante eleiçôes indiretas que consagraram a recomposição do bloco burguês-militar. É natural, portanto, que, apesar de um ou outro assomo de independência, a Constituinte desenvolvesse seus trabalhos dentro do quadro institucional heterônomo surgido em 1964, isto é, sob a pressão de um executivo centralizador e a tutela do quarto poder de que se haviam investido as Forças Armadas. É natural, também, que, no cumprimento de sua missão de recolher, harmonizar e subordinar à burguesia as aspirações e os interesses das forças sociais presentes na sociedade brasileira, a Constituinte recorresse ao arsenal jurídico proporcionado pela teoria política burguesa.

1. Liberalismo e autoritarismo

No estudo dessa teoria, é usual tomá-la como um todo relativamente homogêneo, resultado das contribuições parciais de diferentes pensadores. Na realidade, ela conforma três vertentes claramente diferenciadas e numa ampla medida contrapostas, embora tenham como denominador comum a defesa da dominação burguesa e de seus interesses de classe. É em função dessa diferenciação que há mais afinidade do contratualismo de Hobbes com o historicismo de Hegel, que pontificam na vertente autoritária, do que, por exemplo, com o contratualismo de Locke, expoente da vertente liberal, do mesmo modo como há um abismo entre o conceito de contrato nessas duas vertentes e o que informa a concepção democrática de Rousseau.

O eixo dessa diferenciação é a relação entre o Estado, expressão por excelência do poder, e a sociedade civil, entendida como a esfera da economia e das classes sociais, relação que tem seu ponto nodal na questão da origem e do exercício da soberania, tomada como poder supremo. Ainda que, para Hobbes, Locke e Rousseau, a soberania seja, por definição, atributo essencial do povo, eles diferem quanto à capacidade de delegação de que pode ser objeto o Estado, capacidade que é absoluta para Hobbes, limitada e condicional para Locke e praticamente nula para Rousseau. É por isso que, enquanto Hobbes vê a sociedade civil desamparada ante o Estado, Locke (e, depois dele, Montesquieu) procura circunscrever a ação e coibir os abusos do Estado mediante a separação de poderes e as limitações e controles que estes exercem entre si. Nos extremos, Hegel-para quem o Estado é a etapa superior do desenvolvimento histórico, na qual a sociedade civil se realiza e se resolve, superando em proveito do interesse geral os interesses particulares e corporativos que lhe são próprios— recupera o totalitarismo hobbesiano, reduzindo a divisão dos poderes do Estado a um mero expediente funcional; e Rousseau, radicalmente distante da vertente autoritária, rechaça também o liberalismo, ao conceber um Estado comissário, mero executor da soberania que o povo exerce diretamente como vontade geral e da qual é expressão a lei.

A tradição constitucional brasileira, gestada no seio da teoria política burguesa, tem como influências determinantes a corrente autoritária, primeiro, e a liberal, depois. A Constituição monárquica nasce da outorga real, sendo expressão, portanto, do poder soberano do monarca, que nela é, por sua vez, consagrado como quarto poder do Estado, preeminente aos três poderes habitualmente definidos pelo liberalismo; com isso, a existência de três poderes subalternos significou apenas um expediente de caráter funcional, no sentido que lhe dá Hegel. Os desenvolvimentos posteriores do Estado monárquico e seu sistema de governo, a partir de 1834, não modificaram essencialmente essa concepção, a própria adoção do parlamentarismo tendo-se destinado apenas a permitir o exercício mais moderno-ou, se prefere, mais europeu— do poder absoluto do monarca. O escravismo sobre o qual repousa a sociedade brasileira da época não pode ser ignorado como fator determinante para a existência desse tipo de Estado.

A primeira constituição republicana, ao mesmo tempo em que expressa de maneira mais clara a concepção liberal, não rompe radicalmente com a inspiração autoritária que presidiu à formação do constitucionalismo brasileiro. Sua origem mostra já o caráter transacional que é o seu:

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