Escravidao Brasil Imperio
Trabalho Escolar: Escravidao Brasil Imperio. Pesquise 862.000+ trabalhos acadêmicosPor: • 13/12/2014 • 1.531 Palavras (7 Páginas) • 345 Visualizações
RAZÕES DE DIREITO E CONSIDERAÇÕES POLÍTICAS:
OS DIREITOS DOS AFRICANOS NO BRASIL OITOCENTISTA
EM CONTEXTO ATLÂNTICO
Beatriz Gallotti Mamigonian1
O tema da cidadania está na confluência de duas tendências atuais da historiografia do
Império brasileiro: por um lado, inspira investigadores da nova história política centrados no estudo
da construção do Estado nacional brasileiro; por outro desafia historiadores sociais preocupados
com as formas de participação política adotadas pelos grupos sociais face às transformações do
século XIX. Num quadro mais amplo, é ponto pacífico reconhecer que o projeto de cidadania
liberal, que propunha incorporar índios e libertos ao corpo da nação, se não foi totalmente
descartado, sofreu profundas restrições à medida que os construtores do Estado optaram pela ordem
conservadora, de reforço da escravidão e controle da população livre pobre.2 Uma importante
vertente desses estudos investiga a formulação das bases legais da cidadania nos primeiros anos da
independência e durante o debate constitucional.3 Outra vertente aborda a participação política dos
grupos livres na imprensa e em manifestações urbanas na Corte e nas províncias, movimentos que
evocaram os sentidos da cidadania brasileira, em geral por oposição à portuguesa.4 Uma terceira
frente de investigação vem explorando a relação entre a formulação da cidadania e a manutenção da
escravidão, tanto no plano dos desafios impostos à formação do Estado quanto no da participação
política dos não-cidadãos.5
1 Doutora em História pela University of Waterloo, Canadá (2002), professora do Departamento de História da
Universidade Federal de Santa Catarina. A autora agradece o apoio do CNPq. Contato: beatriz.mamigonian@ufsc.br.
2 MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema: A Formação do Estado Imperial. 2ª ed. Rio de Janeiro: Access,
2004.
3 SLEMIAN, Andréa. “Seriam todos cidadãos? Os impasses na construção da cidadania nos primórdios do
constitucionalismo no Brasil, 1823-1824” In: JANCSÓ, István (org.) Independência: História e Historiografia. São
Paulo: Hucitec, 2005, p. 829-847; BERBEL, Márcia Regina; MARQUESE, Rafael de Bivar . The absence of race:
slavery, citizenship, and pro-slavery ideology in the Cortes of Lisbon and the Rio de Janeiro Constituent Assembly
(1821-4). Social History (Londres), v. 32, p. 415-433, 2007.
4 RIBEIRO, Gladys S. Liberdade em Construção: Identidade Nacional e Conflitos Anti-Lusitanos no Primeiro Reinado.
Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002; SILVA, Luís Geraldo. “Negros patriotas: Raça e identidade social na formação
do Estado nação” In: JANCSÓ, István (org.), Brasil: Formação do Estado e da Nação. São Paulo/Ijuí: Hucitec/Ed. da
UNIJUÍ, 2003, pp. 497-520; KRAAY, Hendrik. “Muralhas da Independência e liberdade no Brasil: a participação
popular nas lutas políticas (Bahia, 1820-25)” In: MALERBA, Jurandir (org.), A Independência Brasileira: Novas
dimensões. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 2006, p. 303-341.
5 MATTOS, Hebe Maria. Escravidão e cidadania no Brasil monárquico. Rio de Janeiro: Zahar, 2000; GRINBERG,
Keila. O Fiador dos Brasileiros: Cidadania, Escravidão e Direito Civil no tempo de Antônio Pereira Rebouças. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2002; NOGUEIRA DA SILVA, Ana Cristina. “A Cidadania nos Trópicos: O Ultramar
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A presente comunicação se insere nessa última vertente, sem deixar de dialogar com as
outras duas. Trata-se precisamente de investigar o estatuto pouco explorado dos não-cidadãos do
Império por excelência, isto é, os africanos. Procuro com isso abordar o lugar dos africanos no
corpo social da nação em formação e apurar os direitos atribuídos a esses “estrangeiros” e aqueles
dos quais eram excluídos. Em última instância, quero também refletir acerca da influência dos nãocidadãos
na política imperial, e com isso desafiar as interpretações restritas (e conservadoras) da
cidadania política. Vou tratar dessas questões a partir de discussões no Conselho de Estado, de
correspondência diplomática, dos debates da Assembléia Constituinte de 1823 e de legislação. Está
no horizonte mais amplo desse projeto comparar o estatuto dos africanos em vários territórios onde
a abolição do tráfico de escravos e da escravidão e as independências transformavam o quadro
social e político. Mas nessa comunicação o foco será mais restrito.
Chegou à seção de Justiça e Estrangeiros do Conselho de Estado em 1859 uma consulta que
se referia à cidadania dos libertos nascidos fora do Brasil.6 Tratava-se de um caso que ocupava a
legação do Império brasileiro em Montevidéu em meio a vários outros envolvendo súditos do
Império que reclamavam proteção diante de supostos abusos cometidos por autoridades uruguaias.
Nesse caso, o encarregado da legação brasileira em Montevidéu, Joaquim Thomaz do Amaral
procurava defender José Thomaz de Sousa, que vinha sendo forçado a servir no corpo da Guarda
Nacional da vila da União.7 Amaral vinha fazendo gestões junto ao ministério das Relações
Exteriores e ao ministério da Guerra do Uruguai desde outubro de 1858 para apurar a situação de
Sousa e exigir sua baixa, pois acreditava que seu recrutamento forçado contrariava acordos a
respeito do engajamento militar e de certificados de nacionalidade celebrados entre os dois países.
Amaral chegou a dar asilo em sua casa a José Thomaz de Sousa para protegê-lo do recrutamento.
Foi quando surgiu a dúvida acerca da sua nacionalidade. Amaral apurou que Sousa havia nascido
em Moçambique e sido escravo no Brasil. Alforriado no Rio Grande do Sul, lá foi recrutado durante
a Farroupilha, depois teria lutado nas guerras platinas no exército de Oribe, depois no de Caseros e
por fim teve baixa no Uruguai. Sousa ostentava uma “papeleta” emitida pelo Consulado Brasileiro
em Montevidéu que o declarava natural do Rio de Janeiro; com base nela, reclamava direito de
no Constitucionalismo Português”. Tese de Doutorado em Direito. Universidade Nova de Lisboa, 2004.
6 O Conselho de Estado e a Política Externa do Império. Consultas da Seção dos Negócios Estrangeiros (1858-1862).
Rio de Janeiro: Fundação Alexandre Gusmão, 2005, p. 187-192.
7 Os detalhes desse caso específico se encontram no ofício de Joaquim Thomaz do Amaral (Legação do Brasil em
Montevidéu) ao Visconde de Maranguape (Ministro de Negócios Estrangeiros), 12 de novembro de 1858, Arquivo
Histórico do Itamaraty. Agradeço a Keila Grinberg por ter cedido cópia desse ofício, com seus anexos.
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súdito do Império brasileiro. Joaquim Thomaz do Amaral, em correspondência ao Visconde de
Maranguape, que se ocupava da pasta de Estrangeiros, pediu instruções “a respeito da concessão da
nacionalidade brasileira aos africanos libertos” pois pretendia se preparar para defender Sousa
contra o que lhe pareciam ser abusos das autoridades uruguaias.
Poucos pesquisadores até hoje se debruçaram sobre o estatuto civil dos libertos africanos,
sua situação jurídica ambígua e suas estratégias particulares de inserção social na esfera da
liberdade .8 Os estudos recentes sob o prisma da questão da cidadania abordam os libertos de forma
indistinta, enquanto cidadãos brasileiros com direitos limitados, grupo por vezes considerado
perigoso à ordem. Além disso, acentuou-se recentemente o debate acerca das alianças políticas
tecidas pelos libertos, seja na direção dos escravos, seja na das pessoas livres e as implicações
dessas alianças e projetos na manutenção ou desintegração da ordem escravista.9 Raros são os
autores, em toda a historiografia da escravidão atlântica, que tratam dos africanos como um grupo
distinto, ou grupos distintos, dos crioulos. No entanto, trata-se de considerar que eram pessoas com
conhecimentos e experiências de produção econômica e relações comerciais, de manifestações
religiosas, de relações de parentesco e linhagens, e especialmente de formações políticas que eram
variadas entre si e distintas daquelas conhecidas pelos escravos e libertos nascidos e criados no
Brasil.10 Apesar de não dar margem para a interpretação de um protagonismo propriamente
“africano”, o caso de José Thomaz de Sousa é um caso precioso e raro – não conheço outra consulta
acerca da nacionalidade de africanos entre as muitas desse tipo que foram formuladas ao Conselho
8 CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Negros, Estrangeiros: os escravos libertos e sua volta à África. São Paulo,
Brasiliense, 1985; OLIVEIRA, Maria Inês C. O liberto: seu mundo e os outros, Salvador 1790-1890. Salvador/São
Paulo: Corrupio, 1988; REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil: a história do levante dos malês (1835). 2a. ed.
São Paulo: Companhia das Letras, 2003; REIS, João José. Domingos Sodré: Um Sacerdote Africano. São Paulo:
Companhia das Letras, 2008; REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos; CARVALHO, Marcus. O alufá Rufino:
Tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico negro (c. 1822-c.1853). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
9 CASTRO, Hebe M. Mattos de. Das Cores do Silêncio. Os significados da liberdade no sudeste escravista (Brasil, séc.
XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995; LARA, Sílvia Hunold. Fragmentos setecentistas. Escravidão, cultura e
poder na América Portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2007; MARQUESE, R. B. “A dinâmica da
escravidão no Brasil. Resistência, tráfico negreiro e alforrias, séculos XVII a XIX”. Novos Estudos. CEBRAP, São
Paulo, v. 74, p. 107-123, 2006; GUEDES, Roberto. Egressos do Cativeiro: Trabalho, Família, Aliança e Mobilidade
Social. Rio de Janeiro: Mauad/FAPERJ, 2008; SLENES, Robert W. A ‘Great Arch’ Descending: Manumission Rates,
Subaltern Social Mobility and Slave and Free(d) Black Identities in Southeastern Brazil, 1791-1888. Texto não
publicado (2009).
10 RUSSELL-WOOD, A. J. R. Através de um prisma africano: uma nova abordagem no estudo da diáspora africana no
Brasil colonial. Tempo 12 (dez. 2001). pp. 11-50.
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de Estado – por ser revelador de diferentes concepções de estadistas brasileiros acerca dos direitos
dos indivíduos nascidos no continente africano no século XIX.
O encarregado da legação brasileira no Uruguai expôs claramente a interpretação que o
levava a defender o africano como se fosse um cidadão brasileiro:
À vista da declaração, que ele mesmo me faz, de ter nascido em Moçambique, não me é possível reclamá-lo
como brasileiro nato. Creio porém que a circunstância de ter servido como escravo no Brasil e de haver obtido
aí a sua liberdade me autoriza a considerá-lo como brasileiro e a protegê-lo como tal. Parece-me isso (além de
outras razões e precedentes de vários países) consequência das disposições da nossa legislação civil. Os modos
estabelecidos pela Constituição do Império não são, como bem diz o Sr. Conselheiro Pimenta Bueno em sua
obra sobre o direito público, os únicos pelos quais se pode adquirir a nossa nacionalidade. Demais, o próprio
Governo Oriental sustenta que os escravos que obtiveram a sua liberdade no território da República são
cidadãos Orientais.11
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