Gênero e História: uma análise da obra A Guerra Não Tem Rosto de Mulher (1985) de Svetlana Aleksiévitch
Por: Messalina • 19/4/2019 • Ensaio • 5.506 Palavras (23 Páginas) • 197 Visualizações
Unicamp Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - Departamento de História HH910 – Tópicos Especiais em Teoria da História I Angelica de Castro Spirandio
Memória, Gênero e História: uma análise da obra A Guerra Não Tem Rosto de Mulher (1985) de Svetlana Aleksiévitch
Campinas
2018
Introdução
A História foi postulada como um conhecimento científico e reconhecida como uma disciplina acadêmica no alvorecer do século XIX. Embora já existisse remotamente como campo de práticas e de produção de um saber específico, foi no período oitocentista que se formou uma comunidade científica por historiadores profissionais e se colocou em pauta a necessidade de reflexões teórico-metodológicas sobre a produção do conhecimento histórico. Nesse sentido, a construção epistemológica da historia emergiu concomitantemente ao imperialismo. De todo modo, foi no século XVIII que profundas transformações na maneira de se compreender e escrever a História marcaram esse campo de conhecimento. Da retórica de história como magistra vitae, ou seja, como aquela que instrui contando um fenômeno do passado como atualização de uma realidade presente ao Historicismo Alemão, de Historie à Geschichte, o século XVIII emergiu como um novo modo de se fazer história por meio da ideia de Coletivo Singular, isto é, a capacidade analítica de congregar histórias em uma grande história que opera com parâmetros de civilidade entre as diferentes narrativas. Desse modo, cabe mencionar o trabalho do historiador alemão Reinhart Koselleck que se debruçou sobre as mudanças dos conceitos e dos usos dos termos Historie e Geschichte na historiografia alemã no contexto da modernidade. A conclusão a que ele chegou é que o termo Historie foi substituído por Geschichte, ou seja, a narrativa deu lugar aos fenômenos e suas respectivas ferramentas. E é justamente a Geschichte que congrega a ideia de História Coletivo Singular e que, a partir de uma nova temporalização de passado e presente, advinda das transformações sociais do período moderno, fez cair por terra a ideia de história como mestra da vida. A Geschichte não podia instruir como a Historie.[1] É também nessa conjuntura que Filosofia da História e História se separaram. Enquanto a primeira compreendia a história como submetida a um sentido transcendental na tentativa de estabelecer princípios que norteassem os fenômenos por meio da secularização do pensamento escatológico, a História como Ciência Histórica, o chamado Historicismo, operou de modo a separar as ciências do espírito e as naturais, explicar os fenômenos em seu vir a ser e devir, isto é, uma compreensão em cadeia processual e retrospectiva, entender que todas as razão são históricas e dependem de um contexto temporal específico e de circunstâncias particulares, tendo como a chave a ideia de consciência histórica. À vista disso, a disciplina que se constituiu no século XIX não é universal, ela opera por meio de valores e métodos europeus e modernos, inscritos em uma relação com o tempo processada na modernidade, cujos mecanismos para explicar e entender os fenômenos passados não são neutros. Logo, toda tentativa de se fazer história é excludente e toda projeção da história se limita ao tempo do historiador, bem como aos seus valores e preconceitos. O presente trabalho está circunscrito na conjuntura historiográfica que emergiu no século XX, especialmente no pós Segunda Guerra Mundial, como reação e revisão crítica à Geschichte. Influenciado pela década de 60 e seus movimentos (contracultura, Woodstock, maio de 68) e os estudos de Walter Benjamin, que amalgama as relações sociais à influência da cultura, a ideia de história vista de baixo de E. P. Thompson[2], por exemplo, traz uma concepção de história extra-oficial, dos excluídos, que deve ser contada sobretudo pela observação dos indivíduos pertencentes às massas: operários, artesãos, camponeses e mulheres, de maneira a evidenciar o lugar de ação social destes. Desse modo, a reflexão que se segue intercala elementos referentes à memória e gênero e está ancorada no trabalho da jornalista e escritora Svetlana Aleksiévitch A Guerra não tem Rosto de Mulher (1985). Antes de tudo, cabe mencionar que, produzida no conjunto no qual se insere, a análise historiográfica está imbuída na temporalidade e nos complexos das consciências em que se submete e integra. Expressando a “voz dos silenciados” ou o montante das análises sociais, as limitações são tão abrangentes quanto as capacidades teóricas, na qual a busca se manifesta em insalubridades e as pautas em incertezas tão caudalosas quanto os movimentos de um rio que Heráclito filosofou. Desnudada na compreensão do indivíduo ou dos acontecimentos, o historiador é padecedor das fatalidades da sua compreensão e por meio de buscas - possíveis por indícios que em “farelos” se espalham migalhados no tempo - e dilemas, se encontra imerso em complexidades que, de modo algum, endossam conceitos simplistas. Indivíduos de sua época, ciência em ininterrupta construção, a História se movimenta de acordo com o historiador é, portanto, restrição e incorporação.
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