O Golpe 1964
Por: Suzana Corrêa • 26/3/2016 • Artigo • 2.592 Palavras (11 Páginas) • 320 Visualizações
Universidade Federal Fluminense
Instituto de Ciências Humanas e Filosofia
Departamento de História
História do Brasil III (2015/02)
Prof. Marcelo Badaró
Suzana Corrêa Barbosa
Os textos lidos, produzidos em torno dos últimos dois momentos "comemorativos" do golpe de 1964 (2004 e 2014), apresentam análises distintas sobre o golpe (e a ditadura). Identifique os principais pontos da polêmica historiográfica que neles se explicitam.
As ocasiões do 40o e do 50o aniversários do “movimento político-militar que derrubou o governo constitucional de João Goulart”[1] foram oportunidades para, além de entrarem em cena novos trabalhos que se propunham a interpretar e a enriquecer a historiografia relativa ao assunto, revisitar as principais compreensões sobre o evento e o processo histórico que o ocasionou. A literatura sobre a temática é farta e vem sendo produzida, principalmente, desde os anos finais da própria ditadura, apesar de a primeira obra identificada a partir da leitura dos cinco textos indicados ser de 1968, o Politics in Brazil (1930-1964): an experiment in democracy, de Thomas Skidmore, publicado no país, no ano seguinte, com o título Brasil: de Getúlio a Castelo.
Diante das novas interpretações sobre o golpe de 1964, difundidas com maior veemência naquelas datas comemorativas, identificam-se duas vertentes: uma, crítica, inspirada principalmente no trabalho de René Armand Dreifuss, 1964: a conquista do Estado, de 1981, e defensora do sentido de classe da intervenção política que derrubou Goulart e da ditadura que se seguiu; e outra, chamada pelos primeiros de “revisionista”, inspirada fundamentalmente numa renovação historiográfica impulsionada nos anos 1990 por resultados da pesquisa de um grupo do CPDOC da FGV/RJ a partir de depoimentos com militares e também na tese de Argelina Figueiredo, Democracia ou reformas? Alternativas democráticas à crise política (1961-1964), de 1993.
Para a primeira vertente, há, sim, um sentido de classe no golpe e no regime que o seguiu, sendo esses episódios explicados pela dinâmica dos conflitos sociais do período histórico – interpretação esta ancorada na “lógica mais geral de interpretação da vida social proposta pelo materialismo histórico”[2]. Destacam-se os trabalhos de Ruy Mauro Marini (1969), Florestan Fernandes (1974), Moniz Bandeira (1978), Jacob Gorender (1987) e René Dreifuss (1981), que
[...] trataram de demonstrar [...] como determinados setores da sociedade atuaram organizadamente para derrubar o governo Goulart e de que forma as políticas levadas a cabo pela ditadura implantada em 1964 eram dirigidas para contemplar os interesses fundamentais desses mesmos setores.[3]
Os estudiosos no campo das esquerdas recentemente reiteraram as “análises críticas que responsabilizam setores ‘duros’ das Forças Armadas e setores conservadores e liberais da chamada sociedade civil” pelo golpe de 1964.
Em contraposição, a ênfase desses estudos no sentido de classe do golpe e da ditadura é descartada pela vertente que caracteriza o golpe de 1964 como um “movimento militar” ou como a resultante “de uma convergência antidemocrática”[4], em que os agentes do ‘consenso’ deixam de ser definidos em termos sociais e passam a sê-lo em termos ‘puros’, como ‘direitas’ e ‘esquerdas’. Nos anos 1990, Gláucio Ary Soares, por exemplo, do CPDOC da FGV/RJ, se dedicou a rever o sentido de classe do golpe, contestando as teses que atribuem aos fatores econômicos mais gerais a precedência explicativa do fato, privilegiando os militares através de seu discurso. Soares aponta o golpe como uma conspiração dos militares com apoio dos grupos econômicos brasileiros, em contraponto às teses de Dreifuss, que defende que o golpe fora movido pela “ação organizada do grande capital nacional e associado, em articulação com um setor militar e apoiado na política externa dos EUA”[5]. Apesar de ter em foco os interesses sociais e a ação política de classe envolvidos na derrubada de Goulart, os autores do CPDOC resistem à interpretação de Dreifuss com base em uma falha crítica de fontes (depoimentos concedidos por militares de segunda ordem).
Argelina Figueiredo, por sua vez, tentou contribuir com o debate ao criticar análises anteriores baseadas em explicações estruturais e privilegiar os momentos críticos do governo Goulart, “empregando a teoria da escolha racional”[6]: durante o governo de Jango, poderia ter existido um caminho para reformas moderadas dentro da ordem democrática, mas os agentes teriam escolhido “maximizar” as possibilidades. Nem a esquerda nem a direita apegavam-se ao regime democrático e as opções dos “atores políticos” teriam limitado a possibilidade de realização das reformas.
Figueiredo não apenas recusou as teses que procuraram entender o golpe como resultado da ação política orientada por interesses de classe que articulou setores empresariais e militares, mas atribuiu a responsabilidade pelo golpe tanto aos que o deram quanto às forças que defendiam as reformas e foram atingidas pelo golpe.[7]
Figueiredo esboça, com sua tese, pela primeira vez a “operação revisionista” que no 40o aniversário do golpe se apresentou como dominante no meio acadêmico brasileiro. Jorge Ferreira e Daniel Aarão Reis Filho vêm para respaldar as proposições da autora, ao concordarem que, na conjuntura de 1964, todos os agentes relevantes do processo político estavam comprometidos com o golpismo: militares, setores de direita e de esquerda, e o próprio Goulart.
Dado este panorama mais geral com relação a historiografia sobre o golpe e a ditadura, é possível, então, passar às principais polêmicas que costumam opor essas duas vertentes. As questões escolhidas referem-se a a) inevitabilidade do golpe, o suposto golpismo da esquerda e o contragolpe da direita; b) adjetivação do golpe e do regime que o seguiu como “militar” ou “civil-militar”; c) existência ou não de grupos de resistência antes do e durante o regime; d) periodização do regime e a tentativa de alguns historiadores de encurtá-lo; e) Lei da Anistia e os silenciamentos que a vêm acompanhando.
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