A Biografia, Um Bem De Arquivo - Eneida Maria De Souza
Ensaios: A Biografia, Um Bem De Arquivo - Eneida Maria De Souza. Pesquise 861.000+ trabalhos acadêmicosPor: MCelleb • 12/3/2015 • 3.645 Palavras (15 Páginas) • 538 Visualizações
A biografia, um bem de arquivo
Eneida Maria de Souza*
RESUMO
Este ensaio discute a relação entre a crítica genética e a biografia, a partir do exame dos bastidores da criação, das experiências vividas pelos autores ligadas à produção literária e existencial. A intenção de reunir esses dois pólos permite expandir o registro documental dos autores como tentativa de recuperar estágios pré-textuais e estágios pré-vivenciais.
Palavras-chave: crítica genética; Guimarães Rosa; biografia.
ABSTRACT
This text discusses the relationship between Genetic Criticism and biography, in the analysis of the backstages of the creation process, and the experiences lived by the authors which are linked to the literary and the existential productions. The intention of uniting these two poles allows us to expand the documental registers on the authors, in the effort of acknowledging pre-textual and pre-existential stages.
Key words: genetic criticism; Guimarães Rosa; biography.
RÉSUMÉ
Cet essai discute la relation entre la critique génétique et la biographie, à partir de l'analyse des coulisses de la création, et des expériences, vécues par les auteurs, liées à la production littéraire et existentielle. L'intention de réunir ces deux pôles permet d'accroître le registre documentair concernant les auteurs, dans la tentative de récupérer des stades pré-textuels et des stades pré-existentiels.
Mots-clés: critique génétique; Guimarães Rosa; biographie.
A pesquisa em arquivos é uma atividade que não atrai a maior parte dos estudiosos do texto literário, por se confundir, muitas vezes, com uma atitude conservadora e retrógrada frente à literatura. Teorias críticas dos últimos anos contribuíram para o gradativo apagamento do interesse pelo exame das fontes primárias, ao ser valorizado o texto na sua integridade estética, sem o interesse pelos bastidores da criação. A recusa em se deter no processo construtivo como resultado do trabalho do autor se justifica por ele ter sido entidade incômoda para a crítica, que pouca importância conferia ao contexto histórico das obras. É significativa esta retomada crítica da figura do autor, seu retorno por meio de traços e resíduos, da assinatura, abolindo-se o procedimento de recalque como produto do pacto ficcional com a escrita, inscrita de modo asséptico e distanciado. Na história da crítica ocidental, a atitude mais comum da crítica se concentrava na censura da presença do escritor na cena literária, impondo-se a linguagem como absoluta e eliminando-se a assinatura segundo padrões de objetividade.
Com a doação de seus manuscritos à Biblioteca Nacional da França, em 1971, Miguel Angel Asturias preparou o espírito de seus futuros pesquisadores, incentivando-os a preservar não apenas as obras publicadas, mas também os rascunhos e variantes que acompanham o material de trabalho dos escritores. Esse gesto motivou a criação da Coleção Archivos, cujo objetivo maior é a preservação do acervo dos escritores para que sirva de fonte documental para o aprimoramento das edições comentadas e críticas. O destino material e analítico desse acervo literário passou a ser uma das maiores metas da crítica filológica e genética, no sentido de se considerar a obra não mais como objeto fechado e acabado, mas sujeita a modificações e transformações interpretativas. Se o trabalho de recuperação do texto original exige do pesquisador exame exaustivo das diferentes edições e mudanças processadas pelo autor ou causadas pelos erros de edição, a crítica genética revela o lado inconcluso e incompleto da criação, permitindo que a abordagem dos documentos não mais se restrinja ao texto publicado e ao seu estatuto de objeto intocável e inerte.
A obra submetida à edição crítica recebe tratamento editorial capaz de lhe conceder dignidade, ao introduzir metodologias de trabalho centradas nas fontes primárias, procedimento analítico em estágio de desenvolvimento e amadurecimento entre pesquisadores do manuscrito literário. Trata-se de uma das aspirações pós-modernas de recuperação da memória literária, pelo abandono do projeto totalizante e unificador da modernidade para se fixar nas diferenças que delineiam o fragmentado e vigoroso arquivo cultural da atualidade.
A prática analítica voltada para as fontes primárias não irá revelar um olhar conservador sobre a escrita literária, mas a sua revitalização: o "manuscrito será o futuro do texto", assim se expressa Jean-Louis Lebrave, um dos notáveis representantes da crítica textual e genética francesas. Enquanto os manuscritos estiverem sendo guardados com vistas a um procedimento analítico, reinstaura-se ainda um pouco da gênese literária. Segundo Louis Hay, autor de uma das mais claras reflexões sobre a questão, "o manuscrito é de uma extraordinária diversidade, e pertence a todas as etapas e a todos os estados do trabalho, dossiês, esboços, planos, rascunhos. Mas, desde que o pensamento ou a imaginação os tocaram, todos, do documento inerte até a página inspirada, encontram-se dotados de vida e convocados a desempenhar seu papel num projeto de escritura".*1 É forçoso lembrar que esta prática de lidar com os manuscritos começa a perder sua utilidade e prestígio nos tempos atuais, pela ação dos novos instrumentos da escrita como o computador, substituto da máquina de escrever, mas dotado de potencialidades muito mais destrutivas frente ao arquivo pessoal do escritor. Os rascunhos desaparecem, ao serem apagados pela eficiência de uma tecla que deleta o que se apresenta como excessivo ou descartável para a finalização da obra. No entanto, outros procedimentos começam a surgir, com vistas a recuperar o rascunho - ainda que digitado - das obras, o que está, curiosamente, provocando o excesso de arquivos desta natureza, além de outros relacionados à memória digital.1
É digno de nota o rico material existente nos acervos dos escritores, como a correspondência entre colegas, depoimentos, iconografias, entrevistas, documentos de natureza privada, assim como a sua biblioteca, cultivada durante
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