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A DECADÊNCIA DOS VALORES MORAIS NO RETRATO DA PEQUENA BURGUESIA DE ERICO VERISSIMO

Por:   •  27/5/2017  •  Ensaio  •  2.260 Palavras (10 Páginas)  •  469 Visualizações

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A DECADÊNCIA DOS VALORES MORAIS NO RETRATO

DA PEQUENA BURGUESIA DE ERICO VERISSIMO

ATELLI DA ROCHA

SILVIA BERTI

INTRODUÇÃO

        A vida imita a arte ou a arte imita a vida? Eis aqui uma daquelas velhas perguntas sem resposta do tipo quem veio primeiro: o ovo ou a galinha? Transpondo essa pergunta para o campo  literário podemos nos questionar: a vida imita os livros ou são os livros que inspiram nossas vidas? Arrisco uma resposta: a literatura imita a vida. Não exatamente da forma que ela é. A literatura exagera. Mas esse exagero é necessário para produzir o que chamamos de efeito estético.  Sem esse “trabalho com as palavras”, a literatura nada mais é do que um texto informativo.

        Além disso, se a realidade que nos cerca não servir de inspiração para o escritor, as histórias ficarão, inevitavelmente, esvaziadas de sentido. Constatamos isso através da fala do professor Clarimundo, personagem de Caminhos Cruzados, que sonha ser escritor, mas tem enorme dificuldade, pois, para ele, a realidade que o cerca soa ser monótona e vazia:

A vida, prezado leitor, é uma sucessão de acontecimentos monótonos, repetidos sem imprevisto...Repito a vida é monótona. Queres um exemplo frisante, vivido, observado, verificado? Ei-lo, leitor amigo: Moro numa rua suburbana cujo ponto culminante é a janela do eu quarto. E o que velo do meu posto de observador céptico? O mesmo ramerrão cotidiano, os mesmos quadros monótonos. Na casa fronteira há sempre uma senhora vestida de preto que fica sentada na sua cadeira de balanço enquanto a filha anda de um lado para o outro, fazendo eu nem sei quê. Mais adiante vejo um homem que senta numa preguiçosa para ler o jornal, cercado dos filhos que berram, enquanto o seu gramofone toca uma música aborrecível que se repete todos os dias. No quintal próximo um moleque ladino joga pedras no pombal da casa vizinha. São cenas de todos os dias. Nenhum acontecimento romântico quebra a calma desta rua e de seus habitantes. Onde os dramas de que falam os romanistas. Onde as angústias que cantam os poetas? (VERISSIMO, 1997, p. 299)

         Erico Verissimo, no romance Caminhos Cruzados, faz questão de frisar que sem o contato com a realidade é impossível para o escritor produzir um livro. Ele deixa claro a sua forma de pensar ao retratar dois personagens, em um mesmo livro, que tem o mesmo sonho, mas tem dificuldades em obter inspiração porque se mostram indiferentes ao mundo que vivem.  

        Assim como o professor Clarimundo, Noel sonha escrever um romance, mas não consegue porque está centrado em seu próprio universo, indiferente às dores alheias. Sua namorada, Fernanda, procura trazer Noel para a realidade, mostrando como a simples observação cuidadosa da realidade que o cerca poderia transformá-lo num grande escritor de sucesso:

- No entanto não tens olhos nem piedade para as desgraças atuais, para as que estão perto de ti no tempo e no espaço..

- como?

-Pensa bem, faz um esforço. Perto da minha casa mora um tuberculoso que está morre- não-morre. Tem dois filhos. A casa é imunda. Fatalmente os pequenos vão pegar a doença. A mulher parece que já está contaminada....Na frente da minha casa mora um homem que tem uma mulher e um filho e está sem emprego. Trabalhava na mesma loja onde trabalho. E eu sei por que o coitado foi despedido...Porque precisavam dar o lugar dele para o protegido de um político influente. O patrão não hesitou.. (VERISSMO, 1997, p. 136)

        Neste ensaio, vamos analisar e discutir como a decadência dos valores morais na sociedade burguesa serviu de inspiração para Erico Verissimo produzir dois grandes romances: Caminhos Cruzados (1935) e Olhai os Lírios do Campo (1938). Nessas duas obras, o autor descreve a sociedade burguesa e o setor das camadas médias da sociedade, ou pequena burguesia, de forma bastante crítica, contrastando a riqueza e a pobreza através do retrato de personagens de várias camadas sociais.

        

A SOCIEDADE RETRATADA POR ERICO VERISSIMO

        A sociedade burguesa, tal como a conhecemos hoje, surgiu na Europa em meados do século XI a partir do renascimento do comércio e das cidades, englobando as pessoas que se dedicavam ao comércio de pequenas mercadorias. Com o surgimento da filosofia marxista, no século XIX, o termo burguesia passou a representar a classe social que detém o capital e os meios de produção, e o termo pequena burguesia passou a representar a classe média da sociedade que aspirava valores e ideias da burguesia e não pertencia à burguesia, proletariado ou campesinato.

        Para Meirelles (2008, p.74),

As camadas médias urbanas, evidenciadas na literatura de Erico Verissimo, não
representam uma unidade. Ao contrário, esse segmento social, por abrigar trabalhadores urbanos de universos sociais distintos, revela um caráter heterogêneo e disperso, o que
inviabiliza atribuir- lhe o caráter de classe na acepção marxista.

        Em Caminhos Cruzados (1938), Erico Verissimo mostra a trajetória de uma série de personagens pertencentes às camadas médias urbanas de Porto Alegre e que tem em comum o fato de atravessarem uma situação financeira difícil e não se importarem com as pessoas que cruzam os seus caminhos e enfrentam problemas semelhantes.

        De acordo com Meirelles (2008, p. 52),

As camadas médias urbanas, em
Caminhos cruzados, são descritas como um segmento social competitivo e
individualista. Esses personagens, portanto, formam um conjunto heterogêneo que não
demonstra perceber-se como um grupo com interesses, anseios e experiências em
comum.

        A viúva Mendonça, por exemplo, é proprietária de uma série de imóveis na fictícia Travessa das Acásias e, mesmo ciente de que um de seus inquilinos foi demitido e atravessa sérias dificuldades financeiras para alimentar a família, ameaça o tempo todo despejá-lo. Para Meirelles (2008, p. 54-55),

Esta personagem, ao se posicionar de forma desumana em relação aos problemas sofridos por seu inquilino, parece assumir a lógica do capitalismo, assinalando a perda de valores tradicionais, como os ideais cristãos de compaixão e amor ao próximo, para demarcar a crescente fragmentação das relações humanas. Viúva Mendonça, como um personagem “típico”, que representa traços de uma realidade mais abrangente, aponta para predomínio dos valores orientados pela sociedade de mercado. Além de não guardar quaisquer sentimentos de solidariedade, esta personagem possui uma concepção curiosa sobre a idéia de trabalho, uma vez que considera a renda de aluguéis um “trabalho honesto”, além de sentir-se “explorada” quando algum inquilino deixa de pagar.

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