A Hora da Estrela - Uma Vida em Segredo
Por: Wider • 21/5/2015 • Resenha • 4.435 Palavras (18 Páginas) • 914 Visualizações
A HORA DA ESTRELA E UMA VIDA EM SEGREDO: SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS
Fernanda Wider Fernandes – UFMS Teoria da Literatura II
Introdução
A Hora da Estrela (1997), de Clarice Lispector e Uma vida em Segredo (1964), de Autran Dourado. São obras que de certa forma dialogam com o Modernismo literário brasileiro. Ambas configuram narradores que falam por personagens excluídas. Tal exclusão pode ser verificada predominantemente no fato de essas personagens serem mulheres e migrantes. Essa relação existente entre o intelectual e a personagem excluída é uma característica típica do Modernismo, no qual o intelectual se coloca como porta-voz dos excluídos, permitindo que o intelectual fale por eles ou sobre eles sem maiores problemas. Dessa forma, objetiva-se verificar em que medida esses narradores contemporâneos operam usando procedimentos narrativos do modernismo para fazer uma crítica social ou para representar determinado povo ou situação. Pretendo relatar as reflexões e comparações entre as semelhanças e diferenças das personagens Biela e Macabéa. A saber, A Hora da Estrela (1977) de Clarice Lispector e Uma Vida em Segredo (1964) de Autran Dourado são obras contemporâneas, as quais serão abordadas, de forma comparativa. Sendo assim, busca-se contribuir para a análise dessas fronteiras literárias visando a abordagem de elementos que comprovem o diálogo existente entre esses períodos. Ao abordar os pontos convergentes e divergentes entre as duas personagens genuinamente brasileiras, buscou-se estudar aspectos ligados às características intrínsecas das personagens centrais das duas obras: Macabéa, de “A Hora da Estrela”, e Prima Biela, de “Uma vida em segredo”.
Uma Vida em Segredo e A Hora da Estrela, nas semelhanças
As obras de Clarice e Autran, se caracterizam por darem voz à duas personagens que não possuíam atributos suficientes para comporem lindas histórias românticas, como talvez fosse esperado. Autran Dourado após ter um sonho com a prima Rita decide contar a história de Gabriela, na voz de Rita, a experiência de Biela, adquire uma voz feminina, Autran, na voz de Rita, narra a história de segredos, o segredo de Biela, está oculto em toda a obra, no entanto, não deixa de ser perceptível e imaginável, devido às dificuldades em que passa. Seu segredo perpassa por toda sua rápida vida, o segredo de esconder de si, de suas vontades, de seus sonhos, de seus mais simples gostos e anseios. A obra de Clarice, por sua vez, é uma típica história de uma autora mulher, que por ser mulher não pôde ser ouvida como gostaria, sendo assim, ela cria um narrador masculino, denominado Rodrigo S.M, a habilitação social que precisava, para entrar de forma mais coerente no contexto de vida de sua personagem Macabéa. Clarice, agora como Rodrigo S.M, nos apresentará a mediocridade de uma “estrela”, nos fazendo pensar em até que ponto um ser humano consegue ser desumano, viver sob a pena das pessoas, e ter seu desenvolvimento completamente retardado pela falta de oportunidade social. Sem possuir nenhuma beleza ou inteligência que as tornassem desejadas, Biela e Macabéa estão condicionadas à alienação, e ao “sim senhor”, o “me desculpa”, a força delas está em serem protegidas por suas próprias ignorâncias, o que quero dizer é que o conhecimento delas era tão reduzido que nem mesmo sabiam o tamanho de suas infelicidades, e de suas faltas, dessa forma, o não saber as protegia delas mesmas. As duas jovens, tem suas vidas marcadas pela migração, e pelo desconforto, Biela sofre pela saudade que sente do ambiente em que morava, a Fazenda do Fundão, desde pequena, criada nos mais simples costumes, seu prazer era cozinhar e cuidar da casa, tinha seus dotes culinários bem afiados, uma humildade e inocência que a fazia ser muito querida pela vizinhança na cidade de Minas, onde se mudou após a morte de seus pais, afim de morar com os primos Constança, Conrado e seus filhos. Macabéa, assim como Biela, teve seus dias contados em sua cidade natal, aos 19 anos, após também ter ficado órfã, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde morava com outras 3 moças, numa casa de pensão, Biela é a personificação da miséria, desprovida de dotes, de beleza e inteligência, Biela cheirava mal, sentia constantes dores, se alimentava de cachorro quente com Cola Cola e achava que não precisava de muito além disso para viver, até tinha sonhos inocentes de uma jovem menina, como o de ser atriz de novela, mas jamais teria condições de realizá-los. Ao falar qualquer que seja suas vontades, era reprimida por Olímpico, seu suposto namorado, suposto porque ele não fazia a mínima questão se ser reconhecido como tal. Macabéa, como todo figura alienada, ouvia os conselhos e repreensões das pessoas, com toda atenção e submissão possíveis. Quando retrucava, era apenas para confirmar suas faltas de argumentos. Duas figuras, Biela e Macabéa, capazes de ser amadas apenas por seus autores que não acreditam mais nas ideologias de inclusão social provinda da literatura de forma a perder sua condição de domínio do personagem ao longo da narração. Como por exemplo, no trecho:
[1]Agora não é confortável: para falar da moça [Macabéa] tenho que não fazer a barba durante dias e adquirir olheiras escuras por dormir pouco, só cochilar de pura exaustão, sou um trabalhador manual. Além de vestir-me com roupa velha rasgada. Tudo isso para me por no lugar da nordestina.
Dentre as semelhanças que podemos destacar entre as obras, é que as personagens sofrem de uma falta constante, mesmo que não saibam exatamente do que sentem falta, a miséria de suas vidas escondidas e incompletas exprimem um desespero calado. Biela tem seus momentos de revolta consigo mesma e com os outros, mas nada que faça mudar sua condição. Procurava agradar os primos Conrado e Constança, assim como Macabéa procurava agradar Olímpico, seu namorado bandido. Biela teve seu amor, o cachorro Vismundo, pelo qual ela enfrentava qualquer dificuldade, Macabéa, nem mesmo pôde ter um cão, seus desejos variavam em comida e na admiração pelas roupas da vitrine, atrizes de novelas e pelos “rapagões” que nem sequer nela tropeçaram, como se tropeça numa pedra ou num objeto qualquer na rua. A sorte amorosa das duas protagonistas nunca teve sucesso, enganadas e mal amadas, se conformavam com suas poucas possibilidades. Porém, não diria que só há experiências ruins nessas obras, os raros momentos de satisfação que passavam, revelavam a pureza que havia em suas mentes, o tipo de pureza a que me refiro é o mais abrangente possível, a murmuração que naquele contexto seria óbvia, é substituída por trabalho, força de vontade, prazer nas coisas simples, e em dividir o pouco que se tem, as pessoas se comoviam com elas, assim como nós nos comovemos ao ler suas histórias. O teor reflexivo das obras de Clarice e Autran é muito forte, ao mesmo tempo que, as histórias são altamente expressivas, ou seja, exprimem uma realidade bastante aprofundada em coerência de fatos, não existe um final feliz, a proposta é exposta e acabada sem que haja mudanças extraordinárias no rumo da história, como vemos geralmente nos filmes. Existe uma concordância temporal, ambiental e contextual nas duas obras. Visto que, é possível lermos Uma vida em Segredo pensando em A Hora da Estrela, bem como é naturalmente possível lermos A Hora da Estrela, como uma precursora de Uma vida em Segredo, assim como também é permitido que façamos leituras únicas de cada uma. No entanto, as histórias se relacionam, se complementam e se reforçam. Dentre os conceitos que podemos destacar estão a intertextualidade das obras, a influência que uma tem sobre a outra, como uma obra está contaminada pela outra. As semelhanças situam as obras com relação à tradição, é por meio dessas semelhanças que percebemos como uma obra dialoga com outra que é preexistente à ela. As obras são semelhantes nas temáticas, duas mulheres, solteiras, subjugadas, migrantes, dependentes, possuem um vínculo muito forte com o passado. Há marcas textuais, desdobramentos explícitos entre Biela e Macabéa. A contaminação entre as histórias, se inscreve ao situá-las ao contexto social e cultural, marcado pela tradição local, as consequências que um livro trouxe para o momento em questão, altera-se o diálogo com a tradição. Moças que não se casam, não estão fixadas ao contexto familiar, não adquirem a postura comum às mulheres da época. Que moça nessa época se apegaria mais a um cachorro do que ao desejo de se casar, como Biela. Vismundo, o cachorro de Biela, ocupa na história um papel evolutivo, é um diálogo entre tradições, enquanto Macabéa, nascida anos depois, já não trará nem mesmo uma relação de amizade com um cão. Nota-se também que de duas personagens são problematizadas pela incapacidade de se comunicarem plenamente e rejeitadas pelo grupo social no qual se encontram. Esse claro confronto entre a comunicação aparente das coisas tangíveis e a não-comunicação, dentro dos intangíveis sentimentos. Todavia, é o olhar e as formas de olhar que nos interessa, por isso, os textos de Clarice Lispector tornaram-se objeto de nossa investigação. No caso de Macabéa, de A Hora da Estrela, chama-nos a atenção a cena do espelho, em que a personagem, literalmente, borra sua boca de batom vermelho, numa tentativa de imitar Marilyn Monroe: [2] “No banheiro da firma pintou a boca toda até fora dos contornos para que seus lábios finos tivessem aquela coisa esquisita dos lábios de Marylin Monroe”. No entanto, o adorno, ao invés de enfeitá-la, deixa em relevo sua ausência de beleza. Isso fica transparente, na mesma página, pela fala de sua amiga Gloria que a ironiza dizendo que ela se pintou como uma endemoniada. O mesmo acontece com Biela, ao vestir-se com roupas finas, compradas por sua prima Constança, ela mal conseguia andar, as roupas não combinavam com ela, no entanto ela se vê obrigada a usar roupas que se moldavam ao seu status social:[3] “Os vestidos prontos, verificou Constança com tristeza que todo esforço tinha sido em vão”. Biela é uma moça da roça desajeitada para a vida, mas que se esforça para se “encaixar” naquela sociedade mineira fechada, apegada às tradições. Essa cenas, reforçam o patético da situação das personagens, deixando nítido que se trata de mulheres que não convivem bem consigo mesmas.
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