A Poesia Erótica de Gilka Machado
Por: Juliana Alves • 4/3/2021 • Resenha • 1.924 Palavras (8 Páginas) • 232 Visualizações
Nome: Juliana Rodrigues Alves Costa
DRE: 118061370
Habilitação: Letras: Português/Literatura
Disciplina: Poesia Brasileira II
Professora: Anélia Montechiari Pietrani[pic 1]
Quando se fala da poesia de Gilka Machado, análises de diversos críticos culminam com a simplificação de suas obras ao mero erotismo. Alguns, conforme evidenciado por Darlene J. Sadlier, em “O locus eroticus na poesia de Gilka Machado”, ainda incorrem no equívoco de minimizar o fazer-poético da poeta ao associar esse erotismo a uma abordagem metafísica – tal qual a feita pelos simbolistas. O que se nota, contudo, a partir da análise de suas poesias, é que o erotismo de Gilka Machado está intrinsecamente veiculado não só à reformulação do ideal da mulher na sociedade, mas também à construção de uma nova abordagem dessa temática, o que incide na importância da figura da natureza para a revisão da questão. O objetivo desse trabalho é, portanto, comprovar, a partir da análise de dois dos seus grandes poemas, a forma como essa poeta contribuiu para a reformulação da visão a respeito do erotismo quando associado à figura da mulher, salientando, ademais, o modo como a autora colaborou para o surgimento de diversos debates sobre o papel convencionado à mulher dentro da sociedade tradicional brasileira do início do século XX.
De fato, Gilka Machado, como esclarece Anélia Montechiari Pietrani, em “Gilka Machado, poeta moderna”, desenvolve uma poesia por meio da qual o eu-lírico feminino – bem como a própria poeta – consegue alcançar a plena liberdade que lhe é negada constantemente pela sociedade patriarcal. Dessa forma, constata-se que o fazer poético permite a união entre essa mulher, frequentemente tolhida por uma sociedade que tende a olhar qualquer tipo de demonstração de emancipação feminina como um ataque direto aos valores fundamentadores de sua moral e de seus bons costumes, e a possibilidade de se tornar livre – algo que perpassa um erotismo fremente, metaforizado, constantemente, em imagens da natureza. É, portanto, por meio de uma abordagem visceral que a poeta reformula a concepção do erotismo dentro da literatura ao evidenciar uma poesia que perpassa, igualmente, a denúncia social de uma realidade retrógrada, que não consegue conceber a mulher como detentora de seus desejos mais primitivos, e a construção do locus eroticus.
É a partir desse ideário poético que Gilka Machado renova a visão da natureza dentro da literatura nacional ao desenvolver uma perspectiva que recai na associação de elementos naturais ao erotismo. Tradicionalmente, quando se pensa em natureza, é fácil observar que a construção literária nacional tende a valer-se de aspectos naturais com duas finalidades principais: a primeira é utilizá-los como meros elementos contextualizadores da fruição poética ou narrativa; a segunda – e, talvez, mais importante – é associá-los aos sentimentos experienciados pelo eu-lírico. Essa última concepção, aliás, permite a edificação de um projeto poético extremamente subjetivo, uma vez que possibilita a oscilação entre imagens positivas e negativas a partir das emoções vivenciadas pelo eu-lírico e do estado de sua psiquê. Darlene J. Sadlier esclarece essa questão, em ““O locus eroticus na poesia de Gilka Machado”, ao destrinchar as nuances do ponto de vista elaborado por árcades e românticos acerca da natureza – respectivamente, o desenvolvimento de um locus amoenus e de um locus horrendus. Gilka Machado, por outro lado, cria o conceito de locus eroticus, por meio do qual a natureza é, agora, entendida como o elemento que auxilia a poeta a construir e inaugurar, na literatura, uma cosmovisão em que prazer, amor e subjetividade dramática reúnem-se a fim de constituir o pano de fundo para expressão poética do erotismo – tese que Anélia Montechiari Pietrani defende em “Gilka Machado, poeta moderna”.
Ao tomar por base o poema “Particularidades...”, presente na obra “Estados de alma”, de 1917, tem-se a construção de um fazer-poético em que convergem estruturas literárias inovadoras – típicas do ideário modernista – e recursos tradicionais da poesia, o que se constata pela escolha da poeta em utilizar a estrutura clássica do soneto, em que estão presentes rimas ricas – compostas numa divisão ABAB ABAB CDC DCD –, e versos metrificados em doze sílabas poéticas. Essa escolha remete a uma formação poética que, embora tipicamente tradicional, questiona, de igual modo, a prática social vigente a partir da abordagem temática contestadora dessa realidade – em uma clara referência à visão crítica e irônica desenvolvida pelos primeiros modernistas – sem, contudo, deixar de entender o Modernismo como construtivista, visto que a própria autora, constantemente, demonstra em suas obras a tentativa não de destruir, mas, sim, de reformular a sociedade a favor de uma organização mais igualitária que permitisse, por exemplo, a liberdade sexual da figura feminina.
Nessa perspectiva, na primeira estrofe de “Particularidades...”, pode-se perceber a existência de uma postura de introspecção que leva o eu-lírico de Gilka Machado a se questionar, instintivamente, sobre seus gostos e sentimentos a ponto de, inclusive, tentar, sem sorte, mudá-los. Pode-se entender os versos iniciais desse poema como uma referência aos próprios questionamentos que a poeta recebia, por parte dos críticos, acerca de seu fazer-poético. Algo que comprova a possibilidade dessa abordagem é o uso do verbo "criminar", o que pode indicar certa contestação da própria maneira como esse eu-lírico enxerga a si mesmo e a seu fazer-poético. Tal fato pode ser compreendido, igualmente, como uma espécie de assimilação da crítica que a sociedade tradicional constrói sobre a figura de uma mulher detentora de sua liberdade sexual e que, por isso, tende a tolhê-la a um lugar de submissão. Submissão essa que, aliás, vê-se, no terceiro verso, abruptamente interrompida pela primeira imagem sinestésica presente nesse poema: a absorção da paixão que se faz verificar na maneira como esse eu-lírico sente-se particularmente atraído por tudo aquilo que lhe é palpável.
É a partir da segunda estrofe de “Particularidades...”, entretanto, que a figura da natureza surge como elemento intensificador dessa fruição erótica ao associar a noite de luar – componente meramente visual – à sensação de êxtase vivenciada pelo tato, o que permite ao eu-lírico libertar-se das convenções sociais e sexuais infligidas à mulher. É essa liberdade, paulatinamente descrita nos versos que se seguem à segunda estrofe, que se comprova por meio de uma relação que é nitidamente física e, portanto, sentida na pele – com todas as suas vicissitudes e intensidade – e que culmina, na quarta estrofe, com o êxtase orgasmático – evidenciado pelas referências às sensações de relaxamento suscitadas pelos substantivos abstratos “languidez”, “sonolência” e “preguiça”. Percebe-se, pois, ao logo de todo o poema – mas, em especial a partir da segunda estrofe –, a construção da natureza como locus eroticus da poesia de Gilka Machado, uma vez que a noite de luar permite que esse eu-lírico se desnude plenamente e se entregue de maneira intensa – quase visceral – às sensações que só lhe são provocadas por essa natureza incólume, que se desenvolve, dentro do fazer-poético de Gilka Machado, não como constituinte de uma contextualização ou como membro revelador das emoções do eu-lírico, mas, sim, como o ingrediente que pesa sobre todo e qualquer sentido dessa mulher agora liberta das amarras sociais que a prendem.
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