Análise "Frederico Paciência"
Por: Gabrielacastro • 25/6/2015 • Resenha • 5.841 Palavras (24 Páginas) • 8.806 Visualizações
Análise de “Frederico Paciência”, de Mário de Andrade
Gabriela Castro Dias
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O conto “Frederico Paciência” traz as memórias de Juca, protagonista de outros contos de Mário de Andrade, que envolvem sua amizade com Frederico Paciência, um colega mais velho que lhe despertou sentimentos conflitantes. Este relacionamento sugere uma relação homossexual entre os dois rapazes, mas como Juca nega-se a assumir tanto para o leitor quanto para si mesmo o que sente, não deixa explícita sua atração pelo amigo.
A narrativa, em uma linguagem mais “oralizada” característica de Mário de Andrade, está em primeira pessoa, onde o narrador é Juca adulto relembrando-se do Juca adolescente. Logo no primeiro parágrafo percebemos que se trata de uma reminiscência pelo tempo passado – “foi no ginásio”, “éramos de idade parecida” – e pelo uso de reticências, que sugere incompletude e hesitação – ou seja, o narrador está falando de algo que não acabou, que ainda não foi resolvido.
Há uma fusão dos dois Jucas – o adulto e o adolescente – pois, apesar dele situar o momento em que conheceu Frederico (com catorze anos), o modo como se lembra dos acontecimentos não permite que o leitor faça uma distinção entre os dois. Como diz Anatol Rosenfeld em seu texto sobre o modernismo, “a irrupção, no momento atual, do passado remoto e das imagens obsessivas do futuro (...) tem de processar-se no próprio contexto narrativo em cuja estrutura os níveis temporais passam a fundir-se sem demarcação nítida entre passado, presente e futuro”. Tudo se embaralha, imagens sobre imagens, sem uma linha cronológica estabelecida.
Durante a narrativa, Juca faz saltos entre suas memórias, como se contasse tudo o que viesse à sua cabeça sem filtrar nada. Um exemplo dessa submersão na “corrente psíquica” está logo no início do conto, onde ele interrompe a comparação que fazia entre Frederico e si mesmo para contar sobre um evento com seu pai, personagem fria e distanciada.
As qualidades de Frederico são muito bem marcadas na apresentação do personagem, definindo como um rapaz bonito e enérgico, de uma “solaridade escandalosa”. É importante destacar a escolha de palavras para descrevê-lo: escandaloso, olhos grandes bem pretos, boca larga, músculos do peito, mãos enormes, saúde, rigidez, segundas intenções.
Mário de Andrade dá muito valor e atenção à linguagem e à significação das palavras. Para tratar de um texto polêmico e provocador como relações homoafetivas, ele emprega muitas metáforas ao longo do conto. “A metáfora escamoteia um objeto mascarando-o com outro, e não teria sentido se não a víssemos sob ela um instinto que induz o homem a evitar realidades”, como definido em A desumanização da arte, de Ortega y Gasset.
No trecho em que Juca descreve Frederico, as palavras que ele escolhe sugerem que ele sentiu uma atração no momento em que o conheceu. Mário de Andrade também emprega muitas projeções em seus contos: quando Frederico é descrito como “uma ausência rija de segundas intenções”, poderia ser o próprio Juca que estivesse rígido e com segundas intenções quando se aproximou dele “imaginando que era apenas por simpatia”.
A aproximação dos dois rapazes também traz algumas conotações eróticas. Juca afirma que ao conhecer Frederico, era impossível não querer bem ele e quis ser dele. Essas duas expressões, que fecham o segundo e o terceiro parágrafo, apresentariam as preposições em posições inversas caso Juca apresentasse apenas uma admiração pelo amigo, mas a disposição em que estão mostram que desde o primeiro momento ele sentiu algo confuso e sem nome. O narrador adulto tenta justificar essa necessidade de estar perto de Frederico com a busca pelo nobre e pelo bem, tentando imitá-lo para chegar à perfeição.
Aqui podemos fazer um paralelo com “Tempos da camisolinha”, outro conto de Mário de Andrade onde Juca é protagonista. Nessa narrativa, ele era uma criança e teve seus cabelos, que representavam sua pureza e sua perfeição, cortados. O corte significou um rompimento com essa beleza e a partir desse momento, Juca nunca mais recuperou essa inocência.
Talvez fosse na imagem bonita de Frederico que Juca encontrou esse elo perdido e tentou recuperá-lo, imitando-o. Como ele próprio se descreve, era um caso perdido, estourado, fraco, feio, cheio de vícios, preguiçoso (uma construção do escritor modernista: “deixa de apresentar o retrato de indivíduos íntegros”). Também podemos justificar essa aproximação com a definição de amor por Platão em O Banquete, onde o inferior (Juca, feio e defeituoso) sente-se atraído pelo superior (Frederico, bonito e perfeito).
A amizade entre os dois rapazes toma novas proporções quando, movido pelos ciúmes da amizade que Frederico dedicava a todos, Juca se declara a ele. Voltavam a pé, passando pelo largo da Sé, quando ele assume que Frederico é seu “único” amigo. Logo percebemos algo singular no “único” entre aspas, como se ele fosse irônico ou tivesse um significado oculto, mas podemos supor que a intenção não era destacar ou contradizer a palavra “único” e sim a seguinte, “amigo”, como se ele fosse um tipo único e diferenciado de amizade. Segue-se um momento de tensão, em que Frederico toma uma pequena distância à frente e Juca sente-se orgulhoso de sua sinceridade.
Quando chegam à esquina em que se separavam, Juca faz uma nova análise de Frederico. “Maravilhoso”, “sujo”, “suado”, “corado”, “derramando vida” são as novas palavras escolhidas. Novamente há uma exaltação do amigo e uma intenção implícita, especialmente atrás de “derramando vida”. Podemos supor que Juca idealizasse sua declaração como uma consumação de seu relacionamento com Frederico e que eles alcançassem seu ápice.
Após esse ato, eles se separaram sem uma confirmação de Frederico e Juca sente-se humilhado por não ser correspondido, mas segue-se uma surpresa ao perceber que Frederico o acompanha até em casa.
O caminho até em casa também sugere outras intenções: ao calcular a andar das pessoas da rua e fantasiar sobre estudar e projetos, Juca parece estar bem além da rua, ele estaria pensando em seu futuro ao lado de Frederico pelo modo como calcula seu caminho desviando dos obstáculos. Aparentemente ele é correspondido, pois a partir desse dia os rapazes tornam-se inseparáveis e suas vidas se fundem.
Por outro lado, ao contrário de Frederico que se abria inteiramente para ele e contava “tudo o que ele era, (a Juca) que não sabia fazer o mesmo”, esse sentimento não era tão bem vindo para Juca, que evitava até mesmo definir o que era. As declarações e confissões de Frederico obrigavam Juca à “elevação constante de pensamento”, ou seja, confessar a si mesmo qual era a verdadeira natureza de seus sentimentos, a que ele denominou “infância” (o que novamente nos remete ao momento em que ele perde o elo com a perfeição, inocência e pureza). Seu medo de encarar a verdade quase o faz odiar seu amigo, mas ele não pode evitar seu desejo de estar com ele – quando Frederico conta que seus pais casaram-se há apenas dois anos, Juca sente uma esperança e alegria ao perceber que o casamento era inútil e dispensável.
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