REFLEXÕES SOBRE NARRATIVA E PESQUISA HISTÓRICA À LUZ DO LIVRO "O RETORNO DE MARTIN GUERRE", DE NATALIE ZEMON DAVIS.
Ensaios: REFLEXÕES SOBRE NARRATIVA E PESQUISA HISTÓRICA À LUZ DO LIVRO "O RETORNO DE MARTIN GUERRE", DE NATALIE ZEMON DAVIS.. Pesquise 862.000+ trabalhos acadêmicosPor: janemizukami • 28/10/2013 • 3.376 Palavras (14 Páginas) • 707 Visualizações
REFLEXÕES SOBRE NARRATIVA E PESQUISA HISTÓRICA À LUZ DO LIVRO “O RETORNO DE MARTIN GUERRE”, DE NATALIE ZEMON DAVIS.
Ana Paula Vosne Martins – Departamento de História da UFPR
Faz parte da miséria do homem o não poder conhecer mais do que fragmentos daquilo que passou, mesmo no seu pequeno mundo; e faz parte da sua nobreza e da sua força o poder conjecturar para além daquilo que pode saber. A história, quando recorre ao verossímil, não faz mais do que favorecer ou estimular essa tendência. A. Manzoni, Del romanzo storico e, in genere, de componimenti misti di storia e d’invenzione. 1830.
O escritor romântico Alessandro Manzoni, do qual retirei a epígrafe deste texto, escreveu um livro para tratar especificamente do romance histórico, comparando os procedimentos dos historiadores da época com os dos romancistas em favor destes, por escreverem histórias mais circunstanciadas sobre grupos sociais marginalizados e inferiorizados e indivíduos comuns, suas vidas, seus costumes, sentimentos, enfim, para aqueles temas que mais de um século depois da publicação do livro de Manzoni os historiadores passaram a se dedicar, inclusive a historiadora cujo livro vou analisar. O que é importante sublinhar desta referência sobre o romance histórico é que Manzoni já atentava para as relações entre texto histórico e texto ficcional, entre reconstrução positiva e invenção, entre verdade e verossimilhança, ou seja, tratava da dimensão narrativa da história e da dimensão histórica da narrativa literária.
Embora a discussão sobre a narrativa histórica ou das relações entre história e ficção não seja recente, como atesta o livro de Manzoni e algumas reflexões de tantos outros escritores do século XIX, ela conheceu uma inflexão entre as décadas de 1970 e 1980, com a publicação de livros e artigos escritos por historiadores sobre o que passou a ser conhecida como a questão da narrativa histórica. Lembro aqui do livro de Hayden White (Meta-História, de 1973) e os artigos do periódico inglês Past and Present escritos por Lawrence Stone (O ressurgimento da narrativa. Reflexões sobre uma nova velha história, de 1979) e de Eric Hobsbawm (O ressurgimento da narrativa: alguns comentários, de 1980) Esta discussão remetia não somente a um estilo, mas à questão do método e, como bem colocou Carlo Ginzburg, das vantagens que os historiadores podem tirar das elaborações artísticas em torno das relações emaranhadas entre realidade e ficção. (GINZBURG, 1989:201)
O livro escrito por Natalie Zemon Davis e publicado em 1983 contribuiu para esta discussão de forma bastante polêmica. Usando procedimentos narrativos como a verossimilhança, as conjecturas e as analogias, para poder contar uma história de impostura e de falsa identidade ocorrida numa aldeia francesa na região do Languedoc na metade do século XVI, a autora suscitou reflexões em torno da pesquisa e da relação entre texto histórico e texto literário.
O livro intitulado “O retorno de Martin Guerre” foi um grande sucesso editorial e de crítica. Foi resenhado nas mais importantes publicações do mundo acadêmico como a American Historical Review e a Renaissance Quartely, mas também foi bastante divulgado nos meios de comunicação de massa como jornais diários do porte de um New York Times, por exemplo, e em revistas culturais. O sucesso deste livro não se deve apenas ao apelo da história contada, mas ao estilo adotado pela autora, pois apesar da erudição e da densidade da pesquisa documental, a autora escreveu um livro atraente, acessível e com uma estrutura narrativa realista que o aproxima do romance histórico, atraindo, portanto, um público não acadêmico.
É importante esclarecer a origem deste livro, pois ela também está relacionada ao sucesso editorial. Em 1982 Natalie Davis foi convidada pelo diretor Daniel Vigne e pelo roteirista Jean Claude Carrière para trabalhar no roteiro e produção de um filme que estava sendo realizado sobre a história de um camponês francês chamado Martin Guerre. Como historiadora especialista na história francesa do século XVI, principalmente das camadas populares urbanas e dos camponeses, Natalie Davis já conhecia esta história. Ela conta no prefácio do livro que ao ler um dos relatos escrito pelo juiz que julgou o caso, ficou impressionada com os acontecimentos e pensou que esta história daria um bom filme. Sua participação no roteiro e nas filmagens, cuja reconstrução é de notável qualidade e competência, a estimulou a escrever o livro, pois segundo Davis, quanto mais ela saboreava o processo criativo, se sentia compelida a ir mais fundo naquela história, a dar-lhe um sentido histórico. (p.10) Sentia também os limites do filme histórico, que em favor de uma narrativa cinematográfica tinha que sacrificar uma série de informações e de detalhes da vida dos personagens, o que dificultava a compreensão do que acontecera: Nessa bela e forte recriação cinematográfica, onde estavam o espaço para as incertezas, os “talvez”, os “poderia ser” a que o historiador tem de recorrer quando as evidências são inadequadas ou geram perplexidades? (p.10)
Portanto, filme e livro foram quase lançados juntos e o livro foi anunciado pelos resenhistas da imprensa como um suplemento histórico, um aprofundamento da história narrada na tela.
De que trata, então, esta história que tanto atraiu os realizadores do filme, a historiadora, os espectadores e os leitores? Muito resumidamente esta história se passou na década de 1550 na aldeia de Artigat, na região do Languedoc. Martin Guerre, um camponês bem estabelecido, casado ainda muito jovem com Bertrande de Rols, teve um desentendimento com seu pai e foi embora para a Espanha, deixando a jovem esposa com um filho pequeno. Oito anos depois ele retornou um tanto diferente, mas todos o receberam e o reconheceram, inclusive sua esposa, suas irmãs e seu tio Pierre Guerre, que cuidara da propriedade na sua ausência e com a morte do pai de Martin. O casal passou a cuidar da terra e dos negócios e teve mais dois filhos. O tempo passou e logo um desentendimento entre Martin e seu tio, por motivo de herança, acabou por desencadear um conflito judicial, pois o tio Pierre acusou de impostor o homem que retornou a Artigat dizendo-se ser Martin Guerre. A aldeia se dividiu quanto à acusação, mas Pierre e sua esposa, a mãe de Bertrande, estavam convictos de que aquele homem não era Martin. Alguns acontecimentos acabaram por reforçar as suspeitas e o processo começou na cidade próxima de Rieux. A corte ouviu mais de 150 testemunhas, mas as opiniões eram muito divergentes. Até então Bertrande defendeu o marido, mas acabou cedendo às pressões da mãe e de Pierre e também apresentou
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