Trabalho
Por: suelili • 18/11/2015 • Trabalho acadêmico • 4.968 Palavras (20 Páginas) • 298 Visualizações
Livro didático e educação matemática: uma história inseparável Wagner Rodrigues Valente* Resumo: Este texto tem como objetivo, num primeiro momento, desenvolver uma reflexão sobre o uso de livros didáticos de matemática como fontes para a pesquisa, visando responder à seguinte questão: Como utilizar livros didáticos para investigar o trajeto histórico da educação matemática? Numa etapa seguinte, o texto focaliza a Companhia Editora Nacional, casa editorial fundada em 1926, que se transformou numa das maiores editoras de livros didáticos de matemática escritos por autores brasileiros. Norteia essa abordagem, a pergunta: que papel teve a Nacional na história da educação matemática brasileira durante o século XX? O trabalho apresenta, também, o Arquivo da Cia. Editora Nacional, e busca demonstrar o quão valiosas são contribuições que ele pode dar às investigações da história da educação matemática no Brasil. Por fim, o texto menciona pesquisas internacionais sobre o livro didático e as tendências que vêm sendo seguidas nos últimos vinte anos. Palavras-chave: história da educação matemática, livro didático de matemática, Companhia Editora Nacional Textbooks and Mathematics Education: a history inseparable Abstract: This text has as its aim, in the first moment, to develop a reflection about the use of mathematics textbooks as data sources for research. It intends to answers the following question: How to use textbooks to investigate the historical trajectory of mathematics education? In the second part, the text focuses on Companhia Editora Nacional, an editorial house founded in 1926, which transformed into one of the largest editors of mathematics textbooks written by Brazilian authors. Directing the research approach is the question: What role did the Nacional have in the history of mathematics education in Brazil in the 20th Century. The work also presents the companies archive and * Professor da Universidade Bandeirante de São Paulo e investigador auxiliar da UIED – Universidade Nova de Lisboa. ZETETIKÉ – Cempem – FE – Unicamp – v. 16 – n. 30 – jul./dez. - 2008 140 seeks to show how valuable the contributions that this archive can bring to investigations in the history of mathematics education in the country. To this end, the text mentions international researches about textbooks and the tendencies that have been developing in the last 20 years. Key words: history of mathematics education, mathematics textbooks, Companhia Editora Nacional Corria o ano de 1699. Preocupada com a defesa da Colônia, a Coroa Portuguesa decidiu impulsionar a formação de militares em terras de além-mar. Era preciso ter no Brasil oficiais bem treinados no manuseio das peças de artilharia e com competência para construir fortes. A costa brasileira, imensa, exigia inúmeras construções para preservar as terras conquistadas e proteger as riquezas que dela se iam extraindo. Foi criada, então, a Aula de Fortificações. Apesar dessa deliberação, muitas dificuldades surgiram para que o curso de pronto tivesse início. A principal delas foi a falta de livros; livros para a instrução militar. Mais precisamente, livros adequados ao curso criado. Ainda em 1710, tinha-se notícia de que a Aula de Fortificações não havia iniciado (VALENTE, 1999). Em matéria de artilharia, morteiros e bombas nada existia escrito em português. Que tipo de livros estava à disposição? Verdadeiros tratados, pesados, em volumosos tomos, que tinham como conteúdo um curso de matemática, seguido de instruções para o manuseio de armas. Pode-se imaginar quão inviável teria sido trazer à Colônia caixas desses tratados estrangeiros, caríssimos e confiá- los às mãos de alunos que mal sabiam ler. As intenções portuguesas relativamente à formação de militares, construtores de fortificações e adestrados na artilharia foram finalmente realizadas quando do deslocamento de um militar português, José Fernandes Pinto Alpoim, ao Brasil. Foi justamente graças à Ordem Régia de 19 de agosto de 1738 que o ensino militar conheceu uma nova fase: tornou-se obrigatório a todo oficial. Em outros termos, nenhum militar poderia ser promovido ou nomeado se não tivesse aprovação na Aula de Artilharia e Fortificações. Alpoim ministrou o curso desde 1738 até sua morte em 1765 (TELLES, 1984, p. 66). Nascido em Portugal em 14 de julho de 1700, seguiu os passos do pai, iniciando os estudos militares na Academia de Viana do Castelo, prosseguindo-os, posteriormente, em Lisboa. ZETETIKÉ – Cempem – FE – Unicamp – v. 16 – n. 30 – jul./dez. - 2008 141 Acumulando experiência pedagógica em suas aulas ministradas desde a época em que foi lente substituto, na Academia de Viana do Castelo, Alpoim escreveu dois livros que se tornaram, ao que tudo indica, os primeiros livros didáticos de matemática escritos no Brasil: Exame de Artilheiros e Exame de Bombeiros, em 1744 e 1748, respectivamente (VALENTE, 1999). A dependência de um curso de matemática aos livros didáticos, portanto, ocorreu desde as primeiras aulas que deram origem à matemática hoje ensinada na escola básica. Desde os seus primórdios, ficou assim caracterizada, para a matemática escolar, a ligação direta entre compêndios didáticos e desenvolvimento de seu ensino no país. Talvez seja possível dizer que a matemática se constitua na disciplina que mais tem a sua trajetória histórica atrelada aos livros didáticos. Das origens de seu ensino como saber técnico-militar, passando por sua ascendência a saber de cultura geral escolar, a trajetória histórica de constituição e desenvolvimento da matemática escolar no Brasil pode ser lida nos livros didáticos. Mas essa não será uma leitura qualquer. Antes disso, trata-se de uma leitura que dará aos livros didáticos o status de fontes de pesquisa. Material que até pouco tempo atrás era considerado uma literatura completamente descartável, de segunda mão, os livros didáticos, ante os novos tempos de História Cultural, tornaram-se preciosos documentos para escrita da história dos saberes escolares. Nessa perspectiva, caberiam perguntas como: Quais livros selecionar? Como utilizar livros didáticos em busca da construção do trajeto histórico da educação matemática? Que critérios estabelecer para lê-los? Enfim, que metodologia da pesquisa utilizar? Algumas considerações teórico-metodológicas sobre o uso de livros didáticos como fontes para a história da educação matemática Num texto já bem conhecido e transformado em referência para todo historiador das disciplinas escolares — História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa1 —, André Chervel 1Originalmente publicado na revista Histoire de l'éducation, em 1988, posteriormente traduzido para o português, publicado na revista Teoria & Educação em 1990; finalmente ZETETIKÉ – Cempem – FE – Unicamp – v. 16 – n. 30 – jul./dez. - 2008 142 destacou a importância da utilização dos livros didáticos como fontes de pesquisa. Salientou o autor que, numa dada época, para o ensino de uma disciplina, todos os livros didáticos "dizem a mesma coisa, ou quase isso"; trata-se do que Chervel denominou constituir o fenômeno da vulgata. Os conceitos ensinados, a terminologia adotada, a organização da seqüência de ensino e dos capítulos, o conjunto de exemplos fundamentais utilizados ou o tipo de exercícios praticados são praticamente idênticos ou apresentam pouquíssima variação. Essas poucas variações, que envolvem, por exemplo, um ou outro exercício ou exemplo, é que justificam as diferenças entre as produções didáticas. A similaridade entre essas produções é tão grande que o plágio é comum entre os textos didáticos (CHERVEL, 1990, p. 203). Dessa forma, o historiador de uma dada disciplina defronta-se, em seu inventário de fontes para estudo da trajetória histórica de um determinado saber escolar, com épocas em que a produção didática se apresenta estável; isto é, o conjunto dos livros didáticos, num dado momento histórico, caracteriza apropriadamente uma vulgata escolar. Isso parece ser o mais freqüente na história de uma disciplina, mas há momentos em que, impulsionado pelos mais diversos determinantes, o historiador encontra produções que intentam dar origem a um novo modo de organização do ensino. O estudo desses novos manuais poderá revelar importantes elementos constituintes da trajetória histórica de uma dada disciplina escolar. Caberá ao historiador indagar em que medida o aparecimento de uma nova proposta — apresentada num manual audacioso e inédito — foi capaz de fertilizar produções didáticas posteriores e de ser apropriada por elas, a ponto de converter-se numa nova vulgata que, em certa medida, poderá atestar o sucesso da nova proposta contida no manual transformador. Essas considerações feitas por André Chervel nos levam ao estudo dos livros didáticos como uma das fontes para a elaboração da história das disciplinas escolares. No caso de matemática, como incorporado ao livro de André Chervel, La culture scolaire - une approche historique. Paris: Belin, 1998. O texto ainda constou da bibliografia referente aos Conhecimentos Gerais de Educação do Concurso de PEB II, definida pela Secretaria Estadual de Educação de São Paulo em 1998. ZETETIKÉ – Cempem – FE – Unicamp – v. 16 – n. 30 – jul./dez. - 2008 143 mostramos anteriormente, os livros didáticos constituem-se em elementos fundamentais para a pesquisa do trajeto histórico da educação matemática. Livro didático e educação matemática parecem ser elementos indissociáveis. Isso nos leva a pensar que a história da educação matemática se liga diretamente às transformações das vulgatas. Investigar como ocorreram essas transformações implicará investigar a própria história da educação matemática. Tomando essas diretivas teórico-metodológicas, o historiador da educação matemática tem, por tarefa, organizar um conjunto de obras didáticas sobre as quais irá se debruçar para investigar a trajetória da educação matemática num determinado período. Se, a cada tempo histórico, faz-se presente uma vulgata, será necessário caracterizá-la e, assim fazendo, haverá possibilidade de que essa caracterização informe historicamente o percurso seguido pela educação matemática. Desse modo, vulgata e manual inovador representarão elementos imbricados e fundamentais para a pesquisa. O problema da utilização de livros didáticos como fonte para história de uma dada disciplina escolar; em particular, como fonte para história da matemática escolar no Brasil, pode ficar balizado pela busca inicial daquelas produções inovadoras que, de tempos em tempos, surgem como veículos de uma nova visão para o ensino de matemática. Esses livros didáticos inovadores, como se disse, são fruto dos mais diversos determinantes históricos. No entanto, buscar, num dado período histórico, manuais inovadores representa uma condição necessária para a escrita da trajetória histórica de um determinado saber. Porém, essa condição não é suficiente. De posse desses manuais, coloca-se ao investigador imediatamente a questão: em que medida um dado livro didático original e com proposta transformadora foi apropriado, dando origem a uma nova vulgata escolar? É possível, também, formular a questão de modo inverso: encontrada uma série de obras de um determinado período, apresentando uma gama ampla de semelhanças, a ponto de sugerirem a existência de uma vulgata, qual ou quais teriam sido os manuais que poderiam ter originado essa série, essa vulgata? Procurando manuais inovadores, buscando vulgatas... ZETETIKÉ – Cempem – FE – Unicamp – v. 16 – n. 30 – jul./dez. - 2008 144 O pesquisador, iniciante na investigação histórica da educação matemática, que visitar alfarrabistas (sebos) certamente terá, logo de pronto, enorme dificuldade em selecionar obras que poderão lhe servir para o estudo de uma certa época da educação matemática brasileira. À busca de manuais inovadores, de estudo de vulgatas, irá manusear um número grande de textos. Num primeiro momento, definida a época a ser estudada, os livros didáticos estariam sendo selecionados cronologicamente. Desde já, um problema aparece: muitas obras não têm data; outras, datadas, são reimpressões de tempos longínquos. Isso leva a pensar, inicialmente, que o período pesquisado não tenha ensejado a produção de uma vulgata. Uma análise mais acurada poderá, no entanto, revelar as origens, as datas e as razões de convivência de obras didáticas completamente diferentes, num mesmo momento histórico. Não é usual nas pesquisas, entretanto, definir-se previamente um período e buscar as obras didáticas a ele pertencentes; ao contrário, será o estudo dos livros didáticos que poderá ensejar uma periodização histórica. Em realidade, o que mais comumente se tem feito, nas pesquisas com livros didáticos de matemática, é o seu uso para estudo de uma temática particular: um determinado tema, assunto ou item de conteúdo matemático torna-se objeto de estudo histórico, através de livros didáticos de outros tempos escolares. Ora é o estudo do Teorema de Pitágoras, ora o de Thales; ou, ainda, aspectos do desenvolvimento de demonstrações ou o tratamento dos números irracionais, dentre muitos outros interesses temáticos. A partir da escolha do tema, são feitas as leituras de sua abordagem nos livros didáticos. O problema que muitas vezes decorre desse ponto de partida está ligado ao poderíamos chamar de “fascínio pelo conteúdo interno do livro didático de matemática”. Trata-se de algo que parece inescapável no caso da educação matemática. E o pesquisador, mais do que noutras áreas, tudo leva a crer, tende a isolar esse conteúdo matemático de uma infinidade de outros elementos determinantes e explicativos da obra. Enfileirar uma série de livros didáticos de épocas históricas diferentes que tratam de um mesmo conteúdo específico de matemática e compará-las entre si é ato comum ao pesquisador iniciante. Mais problemáticas, ainda, são as conclusões tiradas dessa comparação: ao invés de ver no presente as marcas do passado, não raro busca ver, no ZETETIKÉ – Cempem – FE – Unicamp – v. 16 – n. 30 – jul./dez. - 2008 145 passado, determinações do presente, como alerta um famoso historiador2. Então, como ultrapassar essas análises preliminares baseadas na comparação simples de conteúdos matemáticos, de modo a transformar os livros didáticos de matemática em fontes para a pesquisa histórica? A análise de André Chervel dá indicativos importantes sobre o tratamento da produção didática como fonte histórica. A orientação que considera o binômio manual inovador-vulgata poderá auxiliar a pesquisa diante da enorme quantidade de obras que se encontram à disposição em bibliotecas privadas, públicas, escolares, e em livrarias alfarrabistas. Consideramos que algumas pesquisas já realizadas possam contribuir com as discussões. Assim, citamos a seguir alguns exemplos de investigações realizadas no âmbito do Grupo de Pesquisa de História da Educação Matemática (GHEMAT)3 — que retratam a dinâmica de pesquisas em história da educação matemática que utilizam livros didáticos. Talvez esses exemplos possam melhor elucidar as dificuldades e os problemas a serem enfrentados por aqueles que desejam considerar os livros didáticos de matemática como fontes de pesquisa histórica. Em trabalho anterior4 procuramos mostrar quão equivocadas podem ser as conclusões tiradas sobre a educação matemática de um dado período ao encontrarmos uma obra de outros tempos. Uma obra que, à primeira vista, poderia ser considerada como um manual inovador. Naquela altura, analisamos a geometria de Clairaut. Retomo, abaixo, brevemente, a experiência de trabalho com o livro: Ainda é possível encontrar, em algumas casas de livros usados em São Paulo, nos chamados “sebos” um livro didático de geometria editado em 1892. Trata-se do livro Elementos de Geometria, escrito por Alexis Clairaut e traduzido por José Feliciano. Qualquer 2 Pierre Nora, em sua obra Lieux de mémoire. 3 O GHEMAT reúne pesquisadores de diferentes universidades brasileiras em torno de projetos conjuntos de pesquisa, relativos à história da educação matemática. A produção técnica e bibliográfica do Grupo e seus projetos poderão ser conhecidos no sítio www.ghemat.mat.br. 4 Valente (2000). ZETETIKÉ – Cempem – FE – Unicamp – v. 16 – n. 30 – jul./dez. - 2008 146 professor de matemática, ao folhear esse livro, descobrirá uma proposta bastante original para o ensino de geometria. Trata-se de um livro que busca, de um modo extremamente didático, ensinar a geometria euclidiana através de questões práticas relativas à medida de terrenos; isto é, a partir da própria origem e significado do termo “geometria”. Não há qualquer preocupação com o rigor matemático, com o desenvolvimento dedutivo, com questões demonstrativas e abstratas. Desde o Prefácio, Clairaut ressalta que: Ainda que a geometria seja uma ciência abstrata, é mister todavia confessar que as dificuldades experimentadas pelos que começam a aprendê-la procedem as mais das vezes da maneira por que é ensinada nos elementos ordinários. (VALENTE, 2000). A admiração pelo conteúdo da obra de Clairaut, pelo modo como é tratada a geometria, logo nos levou a formular várias hipóteses. Dentre elas, a de que noutros tempos da educação matemática brasileira o ensino de geometria no curso secundário tinha caráter prático e intuitivo. Aos poucos, porém, a análise histórica foi derrubando essa conjectura. A investigação realizada pode ser caracterizada como o esforço de construir uma espécie de biografia do livro. Essa biografia levou em conta múltiplos aspectos: a análise do conteúdo interno da obra, o seu prefácio, as referências colocadas pelo tradutor; a investigação sobre a origem da obra, do seu autor, das finalidades originais a que era destinada a obra no século XVIII; o contexto políticosocial em que foi feita a tradução para o português, as referências sobre o tradutor; a legislação educacional em tempos de Reforma Benjamin Constant, a política de adoção de livros didáticos, dentre outros elementos. Essa busca pela construção da biografia da obra permitiu concluir que: Considerar o ensino da geometria de modo intuitivo e prático, a exemplo de Clairaut, foi algo que não fez escola. A geometria escolar vinha seguindo seu curso desde há muito tempo com um acento no rigor geométrico e assim continuou. Os programas e livros didáticos adotados na escola referência para o secundário brasileiro, o Colégio Pedro II, nem de longe adotaram as propostas do manual inovador de ZETETIKÉ – Cempem – FE – Unicamp – v. 16 – n. 30 – jul./dez. - 2008 147 Clairaut. Mesmo as geometrias formuladas para o ensino primário, como a de Olavo Freire (Noções de Geometria Prática, 1894) — que teve cerca de 40 edições — não seguiram o curso intuitivo. Intitulavamse práticas uma vez que não continham demonstrações e, em contrapartida, muitos exercícios de aplicação de formulários e questões ligadas ao desenho geométrico5. (VALENTE, 2000). O texto revolucionário de Clairaut não fez escola entre nós. Esse manual não fertilizou novas produções didáticas, o que impossibilitou o surgimento de uma nova vulgata para o ensino de geometria no Brasil da virada do século XIX para o XX. Em termos da simbiose manual inovador-vulgata, a geometria de Clairaut não constituiu para a educação matemática brasileira um manual inovador. Um outro exemplo, que consideramos valha citar, refere-se a um livro didático publicado no final dos anos 1920, por ocasião do nascimento da disciplina escolar 6Matemática no Brasil. Talvez um tanto mais raro de ser encontrado nas prateleiras dos sebos, o livro Curso de Mathematica Elementar – Vol. 1, de Euclides Roxo, professor e diretor do Colégio Pedro II, também exerce fascínio em razão da análise do modo de tratar os conteúdos de ensino destinados ao que hoje seria a 5ª. série do Ensino Fundamental. Lá está uma proposta originalíssima e revolucionária7. Começando por geometria espacial volumétrica e encadeando de modo integrado o conteúdo matemático, Roxo vai passo a passo, de forma heurística, levando alunos a aprenderem a utilizar o conceito de função como elemento unificador da aritmética com a álgebra e a geometria. Em processo intuitivo que, gradativamente, vai conduzindo o aluno a abstrações em níveis cada vez maiores, a proposta do autor não deixaria impassível 5 Na carta, escrita por Menezes Vieira, posta como Prefácio do livro de Freire, há o seguinte comentário: Sinto, entretanto, que tivesses em um ponto transigido com a rotina, preferindo problemas abstratos às questões práticas cuja resolução se oferece todos os dias na vida social. Vieira, a seguir, justifica o comentário, aludindo a que Freire deveria guiar-se por Clairaut. 6 O registro deste termo é feito ora com maiúscula ora com minúscula inicial. Penso ser conveniente uniformizar. 7 Esse é mesmo o título que Carvalho et al. (2002) deram a um de seus artigos sobre os livros didáticos de Roxo. ZETETIKÉ – Cempem – FE – Unicamp – v. 16 – n. 30 – jul./dez. - 2008 148 qualquer professor de Matemática que hoje pudesse folhear seu livro didático. Em outro estudo específico8 procuramos mostrar que o livro didático de Euclides Roxo acabou por constituir-se num manual inovador, referência para a produção de uma vulgata utilizada durante as décadas de 1930-40. A biografia da obra revela que a originalidade do texto foi concebida a partir da recepção por Euclides Roxo da discussão internacional sobre modernização do ensino de matemática trazida pela Alemanha à Comissão Internacional sobre o Ensino de Matemática, reunida pela primeira vez em 1908, em Roma, em meio à realização do IV Congresso Internacional de Matemática. (VALENTE, 2004). As idéias modernizadoras expressaram-se, em 1929, no programa elaborado pelo próprio Euclides Roxo, para o ensino do 1º ano do curso secundário, ministrado no Colégio Pedro II, referência para educação brasileira por mais de um século. Sob o título único de Matemática, o programa busca uma fusão de conteúdos da aritmética, álgebra e geometria. E assim, desse modo, foi criada oficialmente uma nova disciplina escolar. Estudando a gênese do primeiro programa de ensino de Matemática, a pesquisadora Arlete Werneck concluiu que o livro de Euclides Roxo foi lançado na segunda quinzena do mês de setembro de 1929. Concluiu também que, apesar do novo programa de ensino de matemática preceder o lançamento da obra Curso de Mathematica Elementar, ambos – programa e livro – foram feitos concomitantemente, pelo mesmo autor. Assim, o primeiro programa de ensino para a nova disciplina seguiu a organização da obra de Roxo. (WERNECK, 2003, p. 78). Em termos da análise de Chervel, o livro de Euclides Roxo constituiu um manual inovador, elaborado em plena conformidade com a criação da nova disciplina Matemática. Sua publicação foi seguida de intensos debates9 que mobilizaram o professorado, sobretudo os autores-professores e suas editoras, no sentido da recusa ao modo como Roxo indicava dever ser ensinada a nova disciplina. A rejeição a fundir os diferentes ramos matemáticos ficou patente. E, como todo manual 8 Valente (2004). 9 As dissertações de Rocha (2001) e Dassie (2001) analisam todos os debates e as polêmicas motivados pela nova proposta de organização do ensino de matemática. ZETETIKÉ – Cempem – FE – Unicamp – v. 16 – n. 30 – jul./dez. - 2008 149 revolucionário, a proposta didática de Euclides Roxo não ultrapassou a segunda edição: o livro resultou num fracasso editorial. O próprio Euclides Roxo abandonou sua proposta original quando interrompeu a escrita de sua coleção no terceiro volume e juntou-se a Cecil Thiré e Mello e Souza, escrevendo em parceria com eles uma outra coleção que vinha se revelando um sucesso editorial — fruto de apropriações e ajustes que tornaram menos inovadora a proposta para ensino da Matemática. Dessa forma, procuraram trazê-la para mais perto das práticas pedagógicas já sedimentadas no cotidiano escolar. Seguiram a coleção de Thiré, Mello e Souza e Roxo outras obras publicadas em São Paulo por Jacomo Stávale; no Paraná, por Algacyr Mader, dentre outros autores. Vale dizer, coleções que, reunidas, revelam a vulgata das décadas que precederam o Movimento da Matemática Moderna10. Por fim, um exemplo de obra didática que parece oferecer dificuldades ao tratamento teórico-metodológico apontado por Chervel para uso dos livros didáticos como fonte de pesquisa histórica: o livro pioneiro de matemática moderna de Osvaldo Sangiorgi, lançado em 1963. Trata-se do volume 1 de Matemática – curso moderno. Se há, certamente, dificuldades em encontrar o livro de 1929, de Euclides Roxo, no entanto, nenhum problema ocorrerá para achar os livros de matemática moderna de Osvaldo Sangiorgi em bibliotecas e alfarrabistas. Produzidos à casa dos milhões, os textos de Sangiorgi fizeram escola. Logo às primeiras páginas do livro, dirigido à quinta série ginasial, a novidade salta aos olhos: o tratamento didático da teoria dos conjuntos pela primeira vez surge em obras didáticas brasileiras destinadas ao curso ginasial. Um manual inovador? Certamente. A coleção inovadora — foram quatro os volumes, um para cada série ginasial — notabilizou Osvaldo Sangiorgi nacional e internacionalmente e seguiu passos totalmente diferentes daqueles dados pelos livros de Euclides Roxo. O estudo do trajeto da obra de Sangiorgi, em particular, da sua coleção Matemática – curso moderno 10 A bem da verdade, os anos 1950 constituíram um momento específico, referenciados pelo chamado “Programa Mínimo” de matemática. Essa diretiva oficial parametrizou uma série de obras para o período, originando uma nova vulgata. O estudo de Marques (2005) aprofunda a discussão sobre essa época. ZETETIKÉ – Cempem – FE – Unicamp – v. 16 – n. 30 – jul./dez. - 2008 150 para os ginásios coloca em discussão o esquema teórico de André Chervel. Como explicar que um manual inovador se tenha tornado um best-seller? Diferentemente de Euclides Roxo, Osvaldo Sangiorgi agiu como exímio articulador entre todas as instâncias que influenciavam o processo educacional em seu tempo. Sangiorgi tinha trânsito fácil na esfera pública; era reconhecido pelas elites como excelente professor e acadêmico, por sua formação na Universidade de São Paulo; teve, por circunstâncias do contexto político-econômico dos anos 1960 e, também, por relações pessoais com editores de jornais, franco acesso à mídia impressa; usou a mídia televisiva para, de modo inédito, promover cursos pela TV; constituiu-se autor didático em tempos em que as editoras brasileiras e, em particular, a Companhia Editora Nacional transformar-se-iam em grandes empresas, a partir de São Paulo. A articulação dessas diferentes instâncias, feitas por um personagem carismático, preparou devidamente o cotidiano escolar para a aceitação da grande novidade didática do início dos anos 1960: a matemática moderna. A cultura escolar de época parece não ter tido forças para resistir à tentação do novo, transformando as obras de Osvaldo Sangiorgi em manuais inovadores e vulgata ao mesmo tempo... A Companhia Editora Nacional e os livros didáticos de matemática Até a década de 1920, a referência maior para a produção de livros didáticos das diferentes disciplinas, inclusive a matemática, era o Rio de Janeiro. Impulsionar a venda das obras didáticas ligava-se diretamente a ter por autores desses livros os professores do Colégio Pedro II. Desde a sua criação (1837) como instituição-modelo para o ensino secundário, programas e livros didáticos saídos do Pedro II iriam difundir-se Brasil afora. O próprio reconhecimento oficial de instituições de ensino secundário tinha como parâmetro a adoção do modelo (programas de ensino e livros didáticos adotados, dentre outros elementos) para diplomar os seus alunos. A criação, em 1926, da Companhia Editora Nacional, em São Paulo, por Octales Marcondes e José Bento Monteiro Lobato, começou a modificar esse panorama. O surgimento da Nacional inaugurou uma ZETETIKÉ – Cempem – FE – Unicamp – v. 16 – n. 30 – jul./dez. - 2008 151 nova fase no mercado editorial brasileiro. Para a pesquisadora Eliana de Freitas Dutra, a Editora marcou a entrada do capitalismo de edição no Brasil dos anos 30: Junto com os investimentos tecnológicos e os novos métodos comerciais veio o gradativo desaparecimento da atividade de antigos artífices impressores, os quais assinavam por seus trabalhos, dando lugar a uma impressão anônima nas empresas comerciais de impressão. A Nacional, nesse particular foi também pioneira na separação do trabalho gráfico do trabalho de edição. Sua história, portanto, é reveladora da forma como se deram o surto editorial e a modernização do parque de edições que o Brasil conheceu naqueles anos. (DUTRA, 2004, p. 5). Inovadora em muitos aspectos da concepção, da produção e da distribuição de livros, a Nacional dedicou especial atenção às obras didáticas, com agressiva estratégia de divulgação. Um exemplo disso é trazido pela análise de Dutra relativamente ao estudo que fez do Catálogo de Livros Escolares de 1936: [...] sempre conciliando os interesses utilitários e pedagógicos, o catálogo dos livros escolares da Nacional em 1936 reserva espaço importante para ensinar aos professores e diretores dos estabelecimentos escolares – o público alvo do catálogo – como escolher o melhor livro didático. Dizendo querer facilitar a tarefa dessa escolha, a Companhia prepara o que diz ser um “guia” que indica os requisitos essenciais quanto à substância, à forma e ao método, nos quais, se valendo da autoridade do professor Sampaio Dória, elenca, prioritariamente, a exatidão da matéria tratada e a sua atualidade; a clareza da exposição, cujo conteúdo accessível responderia pela boa influência na mentalidade e caráter do aluno, despertando-lhe ainda o gosto e o hábito da leitura; a correção da linguagem, voltada ao aprendizado e bom uso da língua nacional e a didaticidade no desenvolvimento dos assuntos de forma a disciplinar o fenômeno do conhecimento; a perfeição tipográfica, ou seja, a saúde visual da obra; e ZETETIKÉ – Cempem – FE – Unicamp – v. 16 – n. 30 – jul./dez. - 2008 152 a boa cartonagem, capaz de assegurar a boa duração do livro. (DUTRA, 2004, p. 10). Com todo o aparato modernizador e de profissionalização para os novos tempos da era Vargas, a Companhia Editora Nacional teve um crescimento vertiginoso. Como atestam os estudos da historiadora da educação Maria Rita de Almeida Toledo: A Nacional se transformou na maior editora do Brasil, voltando seus negócios para os livros escolares. Em um rápido processo de expansão, a Editora ganhou maior especialização em seu funcionamento interno, chamando profissionais ligados às áreas de editoração, artes gráficas e contabilidade. Em 1930, a Nacional publicou 94 títulos, com uma tiragem total de 378.900 exemplares (no período, em São Paulo, a produção era em torno de dois milhões e meio de exemplares), já em 1957, produzia seis milhões de volumes anuais, com um acervo de 2.416 títulos, entre livros de diferentes gêneros. (TOLEDO, 2006, p. 208-209). No que toca às cifras relativas aos livros didáticos, a Nacional, em 1970, era responsável por 55% dos livros didáticos para o ensino primário e secundário publicados no Brasil. (HALLEWELL apud TOLEDO, 2006, p. 208). Autores como Jacomo Stávale, Ary Quintella, Osvaldo Sangiorgi, dentre outros, participaram dessa história impressionante de expansão da Nacional e transformaram-se em best-sellers para a educação matemática brasileira. Selecionados criteriosamente pela Editora, esses professores-autores de matemática foram trazidos para a Companhia por predicados que tendiam a emprestar sucesso às suas obras. Dentre eles, é possível citar: eram professores de grandes colégios, tinham penetração nos meios educacionais e bom relacionamento com instâncias oficiais da educação. Entretanto, é possível dizer que a Nacional se lançou na produção de livros didáticos de matemática através de uma primeira tentativa mal-sucedida: Em 1929, no Colégio Pedro II, o ensino de matemática sofreu uma completa reestruturação. Em lugar das disciplinas separadas da Aritmética, da Álgebra e da Geometria, a Congregação do colégio-modelo para o ensino secundário brasileiro
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