A FUNÇÃO DO ABRIGO:SEM PAI, SEM MÃE, SEM NADA
Por: Carla Picoli • 27/10/2017 • Artigo • 14.619 Palavras (59 Páginas) • 269 Visualizações
SEM PAI, SEM MÃE, SEM NADA: A FUNÇÃO DO ABRIGO.
Excertos da monografia apresentada no Curso de Pós-graduação em Direito da Criança e do Adolescente, como requisito parcial para a obtenção do grau de Especialista.
Orientador: Prof. Dr. Jorge Trindade.
Flávia Raphael Mallmann.
Porto Alegre, 2008.
INTRODUÇÃO
A trajetória das crianças vitimizadas ao longo dos séculos mostra uma rotina de institucionalizações.
Com o Código de Menores, as crianças eram afastadas da sociedade, as ruas eram “limpas” de “menores abandonados e infratores”, que eram colocados em grandes asilos ou orfanatos. Como isso, a comunidade “não via” essas crianças, que recebiam os atendimentos escolares e de saúde dentro do abrigo, para que fossem disciplinados naquelas instituições panópticas.
O Estatuto da Criança e do Adolescente propõem-se a alterar essa trajetória. Quer assegurar às crianças e adolescentes, que se encontram em medida de proteção de abrigo (art. 101, inciso VII, do Estatuto da Criança e do Adolescente), o direito constitucional da convivência familiar e comunitária.
Será que a realidade mudou tanto assim?
As crianças estão de fato protegidas nos abrigos?
O que esses equipamentos devem fazer para dar suporte a essas crianças?
É preciso que se tenha uma visão histórica da evolução da criança, tanto no aspecto jurídico, quanto psicológico.
A evolução jurídica permite-nos conhecer os modelos que já foram testados em prol da infância, as experiências que deram certo e as que não funcionaram, a fim de que não venhamos a repetir os mesmos erros do passado.
A evolução dos conhecimentos médicos e psicológicos sobre a infância permite que possamos entender melhor como as vivências traumáticas atingem o desenvolvimento infantil.
Aos profissionais que atuam na área da Infância e Juventude, especialmente da abrigagem, e também por toda a sociedade, é importante refletir sobre o que queremos para as crianças e adolescentes deste País, que são vítimas de abandono, maus tratos, abusos físicos, sexuais e psicológicos. De que maneira vamos protegê-los. De que maneira vamos prepará-los para seguir sua trajetória, seja através da colocação em família substituta, seja através de sua autonomia pessoal.
Afastados de uma visão maniqueísta a respeito das famílias e da abrigagem, é preciso que tenhamos um olhar realista para reconhecer que, se não podemos viver sem a existência de abrigos, o que seria o ideal, esses equipamentos devem se constituir em um espaço organizado, estruturante, continente e afetivo, capaz de permitir às crianças e adolescentes reinscreverem a sua história e constituírem-se como sujeitos.
CAPÍTULO 1 - O ABRIGO COMO MEDIDA DE PROTEÇÃO
1.1. Evolução dos direitos da criança e do adolescente:
- Antecedentes históricos:
Muito embora venha sendo contestado, podemos afirmar, com Ariès, que a infância somente passou a ter visibilidade no final do século XVII e início do século XVIII. Até então, em razão do elevado índice de mortalidade infantil, das precárias condições de saúde e habilitação, essas crianças não eram sequer retratadas em álbuns de família, nos registros das paróquias ou nos documentos que seus pais possuíam. De fato, não fazia sentido nutrir grande apego por esses pequenos seres, indefesos, que dificilmente chegavam à fase adulta.
Philippe Ariès[1] relata que:
[...] ninguém pensava em conservar o retrato de uma criança que tivesse sobrevivido e se tornado adulta ou que tivesse morrido pequena. No primeiro caso, a infância era apenas uma fase sem importância, que não fazia sentido fixar na lembrança; no segundo, o da criança morta, não se considerava essa coisinha desaparecida tão cedo fosse digna da lembrança: havia tantas crianças, cuja sobrevivência era tão problemática.
[...] As pessoas não podiam se apegar muito a algo que era considerado uma perda eventual.
Até mesmo nas artes, as crianças eram retratadas, ora como anjos, representando a alma, ora como adultos em miniatura, como bem demonstra o quadro “As meninas”, de Velasquez, que se encontra no Museu do Prado, em Madri.
Eram, pois, adultos em miniatura, que possuíam direitos em miniatura.
Foi com os conhecimentos da medicina, com a melhoria das condições sanitárias e com os estudos da psicologia e da psiquiatria, que a criança passou a ser vista (a adolescência, então englobada naquela fase do desenvolvimento, passou a ser destacada bem mais tarde, uma construção social dos anos 50 em diante, e, hodiernamente, estende-se até a fase adulta).
Prossegue Ariès[2]:
A descoberta da infância começou sem dúvida no século XIII, e sua evolução pode ser acompanhada na história da arte e na iconografia dos séculos XV e XVI. Mas os sinais de seu desenvolvimento tornaram-se particularmente numerosos e significativos a partir do fim do século XVI e durante o século XVII.
É a descoberta da infância moderna. E essa descoberta é a descoberta da sua incapacidade.
- Evolução legislativa:
Dentre nós, no Brasil-Colônia, as Ordenações do Reino tiveram larga aplicação, segundo o modelo da família patriarcal. Sobre a origem do patriarcado, refere Maturana[3]:
[...] o patriarcado como modo de vida não é uma característica do ser do homem. É um cultura, e portanto um modo de viver vivível por ambos os sexos. Homens e mulheres podem ser patriarcais, assim como ambos podem ser, e foram, matrísticos.
Seguiram-se o Código Penal do Império (1830) e o Primeiro Código Penal dos Estados Unidos do Brasil.
Surge, então, a primeira forma de abrigamento:
Já em 1551 foi fundada a primeira casa de recolhimento de crianças do Brasil, gerida pelos jesuítas que buscavam isolar crianças índias e negras da má influência dos pais, com seus costumes ‘bárbaros’. Consolidava-se o início da política de recolhimento.[4]
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