Psicologia comunitária: teoria e metodologia
Por: Gabriel Reis • 13/9/2021 • Artigo • 3.722 Palavras (15 Páginas) • 126 Visualizações
Psicologia comunitária: teoria e metodologia
Ronald J. J. Arendt1
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Resumo
Este texto pretende analisar o caminho percorrido pelos psicólogos comunitários desde a emergência da "crise" da Psicologia Social. Naquele momento, a crítica incidia sobre o psicólogo social experimental empírico-analítico, em contraste com o psicólogo comunitário, atento às metodologias qualitativas. Se o primeiro estava convicto do objeto de sua disciplina, o segundo, sensível aos aspectos sociais, históricos, antropológicos e políticos do contexto, não tem clareza quanto a seu objeto de estudo. Dos pressupostos teóricos e metodológicos imbuídos nestas práticas sugerir-se-á um retorno a questões psicológicas, enriquecidas com os referenciais das ciências sociais, numa tentativa de melhor precisar o "olhar" do psicólogo.
Palavras-Chave: Psicologia Social, comunidade, teoria, metodologia
Theoretical and methodological reflexions on community psychology
Abstract
This paper purpose is to analyse the trends in community psychology since the end of the Social Psychology "crisis". At this moment, the empirical-analytical experimental social psychologist was under criticism, in contrast to the community psychologist who employs qualitative methodologies. If the latter was convinced of his disciplines object, the former, sensitive to the social, historical, anthropological and political aspects of the context, does not have a clear object to study. An analysis the theoretical and methodological foundations of actual practices, suggest the need to return to psychological questions, enriched by the social sciences contributions, in an attempt to define more precisely psychologists actions.
Key words: Social Psychology, community, theory, methodology.
Em análise institucional, analisadores são acontecimentos que permitem fazer surgir, com mais força, uma análise, que fazem aparecer a instituição "invisível" (Lourau, 1993, p.35). Através do analisador torna-se possível investigar o que Ardoino (1985) denomina "arquitetura" de uma instituição em análise. Proponho, neste artigo, utilizar a Psicologia Comunitária, enquanto disciplina emergente no contexto da Psicologia Social, como um analisador da Psicologia. Minha tese é que a Psicologia Comunitária permite colocar em análise a instituição da Psicologia, tornando mais específicos seu objeto e suas práticas teóricas e metodológicas.
A Psicologia Comunitária é uma disciplina recente. Sua origem remonta, por um lado à psiquiatria social e preventiva, à dinâmica e psicoterapia de grupos, práticas "psi" que conceituavam uma origem social a seus objetos de estudo. Por outro lado, psicólogos sociais, após os decisivos acontecimentos de maio de 1968, na França e Itália, passaram a colocar em questão a neutralidade dos pesquisadores centrados no modelo empírico-analítico, dando início à assim chamada "crise"da Psicologia Social. Sob a influência da filosofia francesa e do movimento institucionalista, as práticas dos psicólogos passaram a ser criticamente avaliadas a partir de referenciais antropológicos, históricos e políticos. Embora as primeiras conceituações e práticas comunitárias em Psicologia tenham sido norte-americanas ou européias [ver, p.ex. Iscoe, Bloom e Spielberger (1974), Bender (1978), Saranson (1974)], é na América Latina que a disciplina ganha contornos característicos. Wiesenfeld e Sánchez (1991) procuraram sintetizar o conjunto de condições "que teriam criado o clima apropriado para seu crescimento" (p.113), a partir dos anos 70. Em primeiro lugar estava a preocupação de um grupo de psicólogos que sentiam a necessidade de mudar o foco da Psicologia Social, que à época, segundo eles, imitava predominantemente a abordagem experimentalista norte-americana. Segundo Wiesenfeld e Sánchez considerava-se que a Psicologia Social, na América Latina,
"não estava se baseando na realidade para a qual ela estava suposta de atuar, mas que o conhecimento que estava sendo importado era, de certa forma, questionável naquele contexto. Assim, a contribuição da psicologia social para a solução de problemas educacionais, de saúde, de moradia, de trabalho, entre outros, especialmente em grupos de baixa renda, passou a ser questionada por acadêmicos e pelos governos"(p.114).
Uma segunda condição para o surgimento da Psicologia Comunitária seria o desenvolvimento de movimentos que teriam se organizado como "resposta à histórica frustração dos cidadãos que sofriam de falta de atenção e interesse da parte de agências governamentais responsáveis pela solução de seus problemas e de organizações políticas que procuravam representá-los junto aos grupos locais detentores de poder" (p.114). Tais movimentos expressariam a consciência cada vez maior das comunidades da importância do seu envolvimento no processo de tomada de decisões em problemas vitais para a transformaçao das condições ambientais. Como uma terceira condição, para a emergência da nova disciplina, os autores ressaltam a influência do pensamento de autores como Paulo Freire e Orlando Fals Borda, introdutores da metodologia da pesquisa-ação como um procedimento "fornecido aos psicólogos sociais comunitários para promover a idéia de auto-gestão nas comunidades" (p.114). Envolvimento com problemas nacionais, questionamento de sistemas psicológicos instituídos, sensibilidade para a emergência de movimentos sociais, busca de abordagens conceituais e metodológicas alternativas. Wiesenfeld e Sánchez expõem com clareza as "raízes" da disciplina que, desde há vinte e cinco anos, direciona as estratégias de ação dos psicólogos latino-americanos envolvidos com o desenvolvimento comunitário.
Não é meu propósito questionar a legitimidade destas práticas que se mantém sem grandes modificações até hoje. Assim, por exemplo, DeSouza (1996), fala da "missão" da Psicologia Comunitária "em trazer uma voz humanitária nas ciências comportamentais" (p.06). O sentido psicológico da comunidade se desenvolveria entendendo as redes que conectam indivíduo e comunidade, "as forças sociais, políticas, culturais e filosóficas que moldam a vida do dia a dia" (p.07). Dadas as "carências crônicas de habitação, deficiências nos sistemas de saúde e de educação, pobreza generalizada, desemprego e desamparo" (p.11) os psicólogos comunitários na América Latina teriam concentrado seu trabalho nos níveis sócio-econômicos mais baixos. O treinamento de psicólogos no primeiro mundo ou com métodos e teorias americanas e européias teria "prejudicado o desenvolvimento de uma psicologia nativa nos países em desenvolvimento": psicólogos latino-americanos deveriam "superar sua colonização intelectual pelos países industrializados" (p.11). Comentando o processo chamado "problematización", desenvolvido em Porto Rico, e que visava atingir "a plena consciência dos habitantes da ilha com o objetivo de melhorar a situação sócio-econômica", DeSouza admite que os "projetos não foram tão eficazes como se esperava devido à extrema politização, à inexperiência dos pesquisadores, à resistência à mudança pelos líderes comunitários, e ao abismo entre acadêmicos e a população local" (p.12). Meu objetivo, neste artigo é inserir as práticas ditas comunitárias num contexto mais amplo de análise. Vou iniciá-la colocando algumas questões: qual o modelo de ciência, subjacente às práticas comunitárias? Ele difere do modelo de ciência usualmente adotado em Psicologia? Qual o objeto da Psicologia Comunitária, quando confrontado com o objeto da Psicologia Social, ou Psicologia? Mais especificamente, a prática do psicólogo comunitário difere em que da prática do psicólogo social ou do psicólogo "tout court"?
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