Unicórnios no Deserto: sensibilidade e originalidade das práticas narrativas
Por: Rosana Barbosa Melo • 25/10/2022 • Artigo • 6.937 Palavras (28 Páginas) • 92 Visualizações
Unicórnios no Deserto: sensibilidade e originalidade das práticas narrativas
Nina Vasconcelos Guimarães
Resumo
Os resumos em português, espanhol e inglês devem ser formatados em parágrafos únicos, contendo no máximo 150 palavras cada.
Palavras-chave: Listar pelo menos três e no máximo cinco palavras-chave (em letras minúsculas e separadas por ponto e vírgula).
Introdução
Caro David,
Estou te escrevendo diretamente de Nárnia, lugar para onde você me transportou durante o seu curso e onde permaneço após alguns dias de nosso encontro presencial. Embora você povoe nossos corações, nossas mentes e asas, gostaria de deixar registrado o que mais me impregnou de suas últimas palavras, dos novos rumos da terapia narrativa, de como ser uma artista, um mago, em como trazer a arte e a magia para essas práticas. Em Nárnia, eu costumo dar asas a e qualquer imaginação, ao mesmo tempo em que tremo e temo que parte das minhas invenções possam não alcançar alguns dos objetivos terapêuticos mais literais e necessários à vida de meus clientes. Embora me assuste com o olhar que deles eu possa receber, também me conforto e me encorajo a abrilhantar os desejos e o fascínio mágico das intervenções que me invadem. Os sinos tocam, as metáforas pulam, os duendes acenam e, daqui de Nárnia, tudo parece possível. Quando me refiro a esse tudo, estou me referindo a qualquer sofrimento humano passível de ser aquecido com um bálsamo que dilua a dor. E não consigo pensar em nenhum outro bálsamo do que me fazer artífice em mãos das práticas narrativas. Vivenciar pela primeira vez a testemunha desde dentro foi uma excursão espetacular para os nossos mundos e diálogos internos através do que de melhor e mais apreciativo a gente percebe em nossos clientes. Poder encarnar os nossos clientes é o melhor presente que podemos oferecer-lhes. Mas também reafirmo parte da preocupação que foi lançada durante o curso, de que ao nos transportarmos imediatamente para o que de mais fantástico possamos oferecer, talvez corramos o risco de negligenciar as partes mais sombrias do cliente e, portanto, calemos neles os gritos que ainda não puderam sair. Mas o risco é uma escolha que, quando amorosamente afinada, acalma a angústia dos desesperados. Saímos de desertos rumo à unicórnios. Preciso esclarecer essas duas metáforas. A desertos, refiro-me às circunstâncias em que não encontramos os nossos recursos e acreditamos que falimos diante de nós mesmos. A unicórnios, por outro lado, exalto as preciosidades que desvendamos de nós mesmos face à mão terapêutica que nos é ofertada. Os unicórnios são a poesia que há tempos esquecemos, são a fantasia da nossa criança mais inocente, são as melhores notas musicais que garantem a orquestra. Aqui em Nárnia as orquestras, os sinos e os unicórnios galopam e, assim, temos a certeza do amanhã, temos um encontro verdadeiro com o melhor do outro, pois as luzes se acendem em meio a escuridão. Daqui de Nárnia eu te escrevo essa carta para manter o compromisso de levar asas às práticas narrativas rumo a uma contemporaneidade distante dos meros ventrículos robotizados que se perderam órfãos de originalidade. Prometo honrar a apropriação e a personificação de cada rota por mim percorrida. Fervilho pensando quais seriam as minhas melhores perguntas a fim de manter minha disponibilidade e devolver a dignidade restaurando o caráter tão merecido de meus clientes. Levarei a magia em minhas impressões digitais, devolvendo unicórnios aos desertos existenciais de quem me procura. Reverenciando o entusiasmo da existência, agradeço cada uma de suas palavras, deixando que elas cantem para minha alma. Com esperança, sempre, Nina.
Esta carta foi escrita em outubro de 2019, logo após o curso “Re-imaginando a Terapia Narrativa”, ofertado por Marilene Grandesso em São Paulo, proferido por David Epston, Tom Carlson e Sanni Paljakka. Éramos aproximadamente duzentas e cinquenta pessoas, uma audiência que testemunhou momentos marcantes da história da terapia narrativa a três mãos, que, conosco, dialogaram sobre o compromisso e a responsabilidade de seguirmos em direção aos novos rumos das práticas narrativas. No propósito de honrar esses mestres apresento este artigo, inicialmente, retomando historicamente alguns dos principais pressupostos da Terapia Narrativa de Michael White e David Epston (1993) e prossigo fazendo um recorte dessas práticas, explorando as relações de poder em nossa sociedade, em como os discursos totalizadores podem obstruir nossas opções de vida, ao mesmo tempo em que podemos amplia-las através do resgate de pessoas significativas que fazem parte dela, recuperadas como sócios de nosso clube da vida, que nos dão subsídios para construirmos versões mais apreciativas de nós mesmos a partir do olhar delas sobre nós. Vivas ou mortas, essas pessoas compõem um acervo afetivo importante que contribui para nossa constituição identitária, para a recuperação de uma visão mais respeitosa e autoral de nós mesmos quando estamos diante de momentos críticos de desesperança.
Para ilustrar a vertente ativista política e do uso das cartas terapêuticas defendido pelas práticas narrativas, faço uso de outra carta de teor distinto da primeira que abre esse artigo, que foi mais poética. Esta segunda, com um teor mais político, foi escrita por Danielle Miterrand (comunicação pública, janeiro de 1996) ao povo da França quando, inundada pela coragem de convidar para o velório de seu marido, o então presidente François Mitterand, sua filha bastarda, chocou a sociedade com a sinceridade do descarte à hipocrisia, respondendo coerentemente, através de sua atitude, a todos os valores e condutas que acompanharam a trajetória dessa feminista ativista durante seu legado de vida e como primeira dama da França. Aproveito a potência desta carta para ativar as vozes internalizadas de nosso clube da vida, daqueles que influenciam nossa trajetória de vida através dos discursos que deles internalizamos, fazendo valer a voz representativa de Danielle Mitterand como inspiração para todos os filhos bastardos ou amantes que, de alguma forma, se sentiram legitimados pela expressividade do discurso em defesa daqueles marginalizados por uma condição de invisibilidade.
Por fim, inspirada por uma vertente mais atual de David Epston, gostaria de “flutuar pelo território de Nárnia”, esse cenário majestoso de unicórnios, duendes, fadas e magia que habitamos com nossos clientes quando sustentamos a esperança de sermos o artista narrativo, aquele que inventa sua própria prática e resgata a dignidade e o caráter por vezes estremecidos neles, acreditando que a terapia é, também, um reino de deliberação moral.
A História para chegar em Nárnia
As nossas práticas terapêuticas testemunharam uma extraordinária mudança em torno da década de oitenta quando o paciente, o problema, o mundo obscuro e árido dos sofrimentos humanos pôde se deparar com a sensibilidade e a originalidade de dois terapeutas de enormes repercussões mundiais. Michael White, um consistente forasteiro que nos permitiu sair do deserto de narrativas restritivas de nossos clientes para um colorido esperançoso que introduziu a fantasia, o otimismo e a criatividade em nosso ofício terapêutico. David Epston, na sólida fratria por eles constituída, esteve sempre ao seu lado, convicto e cuidadoso em manter suas próprias digitais. Ele prosseguiu dando asas à narrativa através da magia, da arte e da poesia, tão presentes na atualidade. A metáfora que aparece na carta e no título desse capítulo traz o deserto como um território árido, sem perspectivas e, de certa maneira, presunçoso, como se as possibilidades exploratórias fossem restritas e já exploradas, sem chances do terapeuta acreditar em um percurso construído conjuntamente com seu cliente, onde ambos pudessem se maravilhar com o inédito e, ainda, inexplorado. Éramos acostumados a prever o resultado de uma narrativa mesmo antes do cliente terminá-la, fazendo de nosso arsenal técnico e de nossa experiência profissional o terreno previsível e determinístico de qualquer resultado terapêutico.
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