A RELAÇÃO TEORIA E PRÁTICA NA EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR: UM CONSTANTE DESAFIO EM QUESTÃO
Por: telmatereza • 29/5/2015 • Trabalho acadêmico • 5.498 Palavras (22 Páginas) • 419 Visualizações
A RELAÇÃO TEORIA E PRÁTICA NA EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR: UM CONSTANTE DESAFIO EM QUESTÃO Angélica Caetano da Silva1,2 Giovani De Lorenzi Pires1 1Laboratório e Observatório da Mídia Esportiva (LABOMÍDIA) – Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) 2Colégio de Aplicação – Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) 1. INTRODUÇÃO Um dos problemas que não só a Educação Física vem encontrado, mas essa de modo especial, desde sua construção até os dias atuais é a relação teoria e prática no âmbito de seu desenvolvimento escolar. Muito se publicou sobre tal assunto, ressaltando o quanto este componente curricular fixou-se aparentemente como uma prática ou atividade na escola. Historicamente, as práticas militares referentes à instrução física e a inclusão da ginástica nas escolas deu-se estritamente como uma atividade prática, bastante periférica ao núcleo curricular. Mesmo os currículos iniciais na sua formação acadêmica pautaram uma preocupação prática em relação às disciplinas que cunhavam o curso superior de Educação Física, isso é o que é demonstrado na grade curricular da Escola Nacional de Educação Física e Desporto, criada em 1939, a atual UFRJ (MELO, 1997). O autor, apoiado em Faria Jr. (1987), ainda comenta que a preocupação maior existente à época estava diretamente relacionada à formação de um profissional inicialmente considerado mais como um técnico do que como um professor, nos direcionando uma breve reflexão: o profissional (e talvez aqui não um professor) deveria saber fazer e preocupar-se primordialmente com a prática técnica. Mesmo que de maneira mitigada e talvez diferenciada, tal preocupação ainda persiste, embora existam consideráveis reflexões e movimentos contrários. Nas escolas, há 15 anos, por exemplo, caso fôssemos questionados como seriam as aulas de Educação Física escolar, provavelmente as respostas seriam do tipo: “ensino da técnica de algum esporte”; “aulas de Educação Física totalmente práticas”. Incrivelmente, ainda nos dias atuais, quando propomos, como professores de Educação Física comprometidos com o ensino, um refletir sobre a prática, sem dúvida nos deparamos com resistências dos alunos, que aparentam estar adaptados com uma prática que poderíamos dizer, pouco ou nada reflexiva, pois “sempre foi assim”. É nesse sentido que vamos aqui descrever a compreensão da relação teoriaprática dos alunos durante uma pesquisa de mestrado, realizada com os alunos do Instituto Federal de Santa Catarina, campus São José (CAETANO DA SILVA, 2011). O objetivo da pesquisa foi refletir sobre o discurso midiático a respeito de saúde e atividade física com alunos do Ensino Médio, a partir de uma intervenção pedagógica 1521 na Educação Física escolar. Buscamos investir na compreensão dos alunos sobre os discursos veiculados pela mídia sobre saúde e atividade física, que direta ou indiretamente, alcançam a Educação Física. A intervenção baseou-se em uma mediação escolar, apoiada no conceito de Mídia-Educação (FANTIN, 2006) e concretizou-se por um semestre, em colaboração com o professor responsável pela turma. Participaram do estudo 22 alunos da turma da 4ª fase (segundo ano) do Ensino Médio, sendo 13 meninos e 9 meninas, com idade média de 16 anos. Não tínhamos inicialmente como pretensão investigar a compreensão da relação teoria e prática nas aulas de Educação Física com os alunos, entretanto, foi impossível ignorar tal questão, mesmo porque abalou os limites e possibilidades do estudo. Dessa forma, de maneira um tanto breve, este artigo propõe-se a discutir e refletir sobre os entendimentos dos alunos referidos especificamente à relação teoria e prática na Educação Física escolar. 2. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS O estudo, quanto à sua natureza, teve como pretensão um olhar qualitativo sobre o fenômeno. Assumida a abordagem qualitativa, a pesquisa aproximou-se de aspectos práticos da concepção e da organização de uma pesquisa social orientada de acordo com os princípios da pesquisa-ação, ou também denominada investigaçãoação. Esta é entendida como aquela que é concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo e na qual os pesquisadores e participantes e representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo (THIOLLENT, 1994). No primeiro encontro com os alunos, os objetivos da pesquisa foram explicados e uma autorização foi entregue, a ser preenchida pelos pais/responsáveis (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido de acordo com o Comitê de Ética da UFSC). Todos os alunos trouxeram o documento preenchido e assinado no segundo encontro. Para a realização da pesquisa, foi realizado um período que denominamos de mediaçãoescolar. O período de mediação escolar compreendeu os meses de março a julho de 2010 e foi composto por sete estratégias de intervenção, sendo que as primeiras aproximações com a turma foram direcionadas para se obter um levantamento das temáticas significativas preparatórias para a mediação escolar propriamente dita. A mediação é fundamental nos processos de (re) significação e novas reflexões, que, em outras palavras, confere àqueles que estão envolvidos na prática da crítica, a possibilidade de atribuir outros significados ao discurso ou narrativa em estudo e se apropriar da mesma, transformando-a. As estratégias foram compostas de debates, práticas reflexivas com os alunos em que envolvíamos a temática da pesquisa: saúde e Educação Física, atividades interdisciplinares com o componente curricular Sociologia a respeito dos discursos midiáticos, discussões sobre saúde e Copa do Mundo, pois estávamos em período da realização dos jogos da Copa do Mundo da África do Sul/2010, produção midiática coletiva sobre a temática da pesquisa, entre outras. Para concretizarmos a tarefa de registro e coleta de dados, utilizamos o diário de campo, filmagens de algumas intervenções da pesquisadora e do professor, textos, produções midiáticas que foram utilizadas como tarefas para os alunos e ao final da 1522 pesquisa, entrevistas em grupos de 4 a 6 alunos em cada, alcançando o total 86% de todos os alunos da turma (19 alunos entrevistados do total de 22). Para a análise dos dados, recorremos a ferramentas conceituais e metodológicas fornecidas pela teoria social do discurso, de forma mais específica, a análise crítica do discurso (ACD), conforme propõe Fairclough em seu livro Discurso e Mudança Social (2008). Esta análise trabalha com uma tríade multidimensional que relaciona os conceitos de texto, prática discursiva e prática social. 3. RESULTADOS E DISCUSSÃO A VISÃO PRÁTICA DE EDUCAÇÃO FÍSICA DOS ALUNOS: CONFIGURAÇÕES DE UM “PRATICISMO” “Teoria/Prática” vem carregados de uma divisão, de uma cisão, que se apresenta como antagônica, muitas vezes, e que não deveria sê-lo, pelo próprio significado de cada um deles. Mas ainda, deveriam ser entendidos, englobados em um único conceito, que não lhes esgotasse a extensão, e não os colocassem em campos contraditórios (MARCELLINO, 1995, p. 74). Romero (1990) nos alerta sobre a problemática da rigidez de muitos estereótipos na sociedade, pois eles influem no processo de percepção das pessoas e simplificam a realidade objetiva, criando muitas vezes uma resistência às mudanças. É nesse sentido que esta discussão mostrará seu enredo, pois muitas construções estereotipadas historicamente se mantêm presentes ainda nos dias de hoje e nos oferecem obstáculos ou desafios, principalmente quando pensamos que a Educação Física inserida no currículo escolar deve buscar intervir no sentido de transformar o nível de compreensão dos alunos a respeito da cultura de movimento, passando de um saber no âmbito do senso comum (prático), para um saber elaborado (prática refletida). No início da pesquisa, percebemos de antemão que os maiores desafios seriam encontrados principalmente com os meninos, que demonstravam resistência a qualquer reflexão sobre a prática, seja trazendo um texto, seja interrompendo os momentos de prática para questionar, para refletir. A opção inicial foi de, aos poucos, ir trazendo para eles outras maneiras de se fazer Educação Física na escola, mesmo porque com o tema transversal mídia, adotado pelo conjunto da disciplina para a 4ª fase, conforme planejamento, era parte fundamental da pesquisa buscar e trazer reflexões sobre saúde nos discursos midiáticos que inclusive respaldavam as práticas de Educação Física vivenciadas por eles. Com base nos momentos vivenciados e a partir dos dados obtidos durante as estratégias de intervenção, verificamos evidências da concepção dos alunos sobre uma Educação Física direcionada à valorização da prática, ou seja, a primazia encontra-se na validade do sentido que a prática representa para a disciplina. Poderíamos considerar que os alunos demonstravam a representação de uma Educação Física como prática ‘coisificada’, resistindo à necessária abstração e adotando comportamentos que reproduzem as manifestações culturais, em especial o futebol (no caso dos meninos). De acordo com Pereira (1982, apud PIRES, 1995), ao 1523 1Uma prática discursiva é constitutiva tanto de maneira convencional como criativa: contribui para reproduzir a sociedade (identidades sociais, relações sociais, sistemas de conhecimento e crenças) como é, mas também contribui para transformá-la. 2Discurso como um termo que corresponde mais ou menos às dimensões textuais que, tradicionalmente, tem sido tratada por conteúdos, significados ideacionais, tópico, assunto, etc. (PEDROSA, 2008). adotar um ativismo, visto aqui como um fazer pelo fazer, deixa-se de refletir sobre os fatores sociais e culturais que condicionam a prática (ação), resultando na incorporação de um conhecimento pretensamente ‘neutro’, incapaz de se colocar como subsídio para uma ação projetada, consciente, humanizada. Assim, foram frequentes as situações em que os alunos solicitavam durante as aulas, momentos práticos, especialmente os meninos: “Eu gostaria que as intervenções da sua pesquisa tivessem mais prática” (Fala registrada em diário de campo, 18/05/2010). Tal comentário não nos afligiu, diante do nosso reconhecimento que a uma proposta pedagógica que vise mudanças não basta desenvolver uma atividade teórica ou puramente prática, mas é preciso consolidar uma ação refletida. O que de fato nos inquietou é a continuação de tal comentário do mesmo aluno: “Toda semana a gente estuda teoria [nos demais componentes curriculares] e aí o único momento da gente extravasar é na Educação Física”. A afirmação do aluno aparenta existir na escola certa hierarquia de saberes, cabendo às disciplinas consideradas essenciais, vistas com mais status porque naturalmente correspondem àquelas ligadas ao trabalho intelectual, tradicional, realizado geralmente dentro de salas de aula, enquanto a Educação Física estaria incluída no rol daquelas que não exercitam a dimensão intelectual, já que seu foco é o movimento e corresponde numa visão de senso comum, ao trabalho usualmente fora da sala de aula, ou seja, em quadras ou ginásios. Tal fato parece corroborar a pesquisa realizada por Carvalho (2007) com professores de outras disciplinas a respeito da sua concepção sobre o papel da Educação Física no currículo escolar. A pesquisa demonstra que uma das categorias elaboradas ressalta a ênfase da Educação Física aparentar uma atribuição que não ultrapassa a condição recreacionista; e que os mesmos professores das demais disciplinas a enxergam como um alívio das demais matérias do currículo, que retiram os alunos dos momentos extremamente teóricos pelos quais passam nas disciplinas com status intelectual. Ainda segundo a pesquisa supracitada, as percepções dos professores decorreriam do que eles conseguiam compreender diante da visualização das aulas de Educação Física. As representações dos professores e alunos são comuns no âmbito escolar. As práticas cotidianas interferem nas representações de todos os atores-sujeito do processo educativo, e estas interferem nas práticas, ou seja, a representação social é constituída pela realidade social na qual as práticas se inserem e constitui essa mesma realidade. Considerando que uma prática social dialeticamente constitui uma prática discursiva1 , podemos dizer que as práticas pedagógicas, as percepções e concepções dos sujeitos escolares constituem uma prática discursiva que envolve não somente os discursos dos alunos, mas dos professores de Educação Física e de professores de outras disciplinas, enfim, de todos envolvidos no trato pedagógico. O discurso2 , prática discursiva, não é apenas de representação do mundo, mas de significação do mundo, constituindo e construindo o mundo em significado (FAIRCLOUGH, 2008). Assim, cientes que uma realidade social constitui uma prática discursiva, tais 1524 percepções dos professores da pesquisa de Carvalho (2007) apresentam coincidências com as percepções dos alunos da pesquisa realizada (estes não como os que olham de fora a realidade da Educação Física, mas como aqueles que vivenciam tal realidade), expressas pelos seus discursos, demonstrando que a Educação Física assume perante eles talvez um papel secundário, face ao saber intelectual que as outras disciplinas oferecem e ao espaço não intelectual e de lazer que a Educação Física parece limitar-se a prometer. Jeber (1995) comenta que, neste sentido, “a Educação Física torna-se sinônimo de prática, de educação do físico, deixando a entender que existem outros espaços na escola que se ocupariam da educação intelectual, da educação espiritual e da educação social” (p. 83). Segundo Bracht et al. (2003, p. 59), pensar a Educação Física como um complemento ou compensação de outras disciplinas – ainda que para a simples movimentação necessária a uma quebra da rotina teórica – confere uma característica em enxergá-la como um prolongamento da aprendizagem da sala de aula, mesmo que vista como um descanso para os alunos. Entretanto, de acordo com os autores, quando a importância da Educação Física limita-se a uma compensação da atividade de sala de aula de outras disciplinas, a mesma deixa de ser um prolongamento, “mas a própria negação dos momentos vivenciados pelos alunos nas outras disciplinas”. Nesse contexto, para os alunos da pesquisa a Educação Física representa uma quebra dessa rotina “teórica” e toda tentativa de um esforço teórico, que não somente embasasse as práticas, mas que delas também contribuíssem para o olhar sobre a teoria, representou, em muitos momentos da pesquisa, uma violação ou um incômodo às práticas consolidadas (também historicamente) em seus cotidianos escolares. Um exemplo disto pode ser visualizado no seguinte comentário de uma aluna em uma conversa informal durante o período da pesquisa: O único momento de relaxamento para os meninos é na Educação Física e mesmo que sua proposta seja de uma prática com reflexão, eles consideram sua intervenção como a retirada daquilo que eles gostam e que estão acostumados ao longo das séries, que é jogar o futebol deles (Fala registrada em diário de campo, 05/04/2010). Ainda, quando realizamos uma entrevista ao final da pesquisa, comentamos sobre o que eles pensavam a respeito da inserção da proposta da pesquisa, ao que um aluno comentou: [...] a válvula de escape sempre foi a Educação Física [...] era o momento mais tranquilo que não tinha tanta pressão, não tinha [...] ninguém sufocava a gente com reflexão, era o momento de fazer nada, não pensar... e aí aparece você, que acaba quebrando essa rotina nossa (Fala transcrita retirada da entrevista, 08/07/2010). Com esses depoimentos descritos acima, podemos perceber que de uma maneira geral, trazer a reflexão sobre a temática da pesquisa aos alunos, aparentou ser um processo menos opressivo para as meninas do que os meninos, pois os últimos demonstravam estar sendo envolvidos com práticas esportivas nos momentos das aulas de Educação Física, ao tempo que as meninas declararam ficar apenas 1525 assistindo ou conversando. Entretanto, mesmo as meninas demonstraram um entendimento sobre a Educação Física como uma disciplina destinada à prática, principalmente antes da intervenção da pesquisa, o que com o decorrer da mesma, foram demonstrando novas percepções. A questão, que por ora devemos refletir, encontra-se aliada aos ditames ou exigências de uma prática historicamente esvaziada de elementos teóricos. Em lugar destes, temos toda uma rede de verdades estereotipadas, com a prática bastando-se a si mesma, numa atitude acrítica em relação a ela. Tais concepções de verdade aproximam-se de uma tendência de hipervalorização da prática, colocando-a como superior a qualquer outra coisa. Nesse sentido, resta aos alunos pensar a Educação Física como um espaço/tempo na escola onde não se deve falar, não se deve sentar e discutir, nem utilizar recursos pouco típicos em aulas, tais como textos, fotos, cartazes, vídeos, seminários, grupos de discussões, pesquisa, etc. A isto pudemos perceber tanto nas falas das meninas como dos meninos, já que enquanto uns ficavam apenas utilizando a Educação Física como prática desportiva própria, outros (na maioria meninas) ficavam observando ou jogando jogos de mesa livremente. Para além de um pragmatismo-utilitarista, que adiante falaremos, a Educação Física presente nos discursos dos alunos aparenta privilegiar uma determinada prática, não como critério de crítica e validação da teoria, mas como sua negação, tornando-se uma a prática pela prática, ou mero praticismo. Neste sentido, corre-se o risco de desconsiderar o questionamento teórico sistemático das práticas e considerar a reprodução acrítica de fazeres estereotipados, contribuindo para a condição de inferioridade em que é percebida hoje a Educação Física na maioria dos currículos escolares. Esta, como um fazer por fazer, acaba por justificar sua presença na escola como mera experiência limitada em si mesma, ou compensação para o esforço intelectual empreendido nas demais disciplinas. Estaria, pois, destituída da sistematização e compreensão do conhecimento, existindo apenas empiricamente como exercitação do físico. Nesse sentido, além da Educação Física apresentar para alguns alunos uma visão secundária, no qual o momento destinado não é para refletir, pois já fariam isso durante quase todo o horário escolar, percebemos na Educação Física uma redundância ao papel de exercitar/treinar/ensinar esportes, e na turma em questão, em especial os meninos, com o futebol. Tal reflexão pode ser visualizada em dois comentários em momentos distintos da pesquisa. Primeiro durante uma conversa com um aluno: “A Educação Física é o único momento que podemos jogar o nosso futebol” (Diário de campo, 18/05/2010). Ao final da pesquisa, durante a entrevista realizada em grupo, um aluno comentou que, antes da intervenção da pesquisadora: [a aula de Educação Física] “sempre foi prática, estamos acostumados a jogar duas aulas seguidas, perdia uma aula treinando e depois jogava [o futebol] na última aula” (Fala transcrita da entrevista, 08/07/2010). O discurso dos alunos apresenta ainda uma tendência utilitarista de Educação Física, já estabelecida anteriormente em sua história, cujo conteúdo primordial para atingir os objetivos foi a ginástica e hoje se mantém no esporte, conforme comentam Gueriero e Araújo (2004). Contudo, podemos pensar, a partir daí, certa ambiguidade de interesses dos alunos, em relação ao esporte na Educação Física escolar. 1526 Por um lado, ao solicitarem o “futebol deles”, demonstram uma mudança na perspectiva tecnicista (que consistia no uso da aula de Educação Física para a formação de atletas e a visualização do professor como formador de atletas), abandonando a crença de que é na Educação Física escolar o suporte “sustentador” do esporte de rendimento e o professor como fomentador deste. Como comenta Bracht (2001), está cada vez mais difícil para a Educação Física escolar sustentar um discurso no esporte de rendimento e sua articulação com a saúde, mesmo porque este reconhece outros espaços para sua concretização, como clubes e escolinhas; e ainda, o esporte de rendimento é hoje um problema relacionado à saúde e não o fator de sua promoção (ainda que insistentemente, no senso comum, as pessoas acreditam que o esporte de rendimento pode promover saúde). O fato de ‘perder um tempo treinando’ e ao desconsiderarem a intervenção pedagógica reforça essa descrença dos alunos em relação ao esporte de rendimento e formação de atletas na Educação Física escolar. Por outro lado, ao exigirem “o nosso futebol”, os alunos demonstram requerer um futebol apreendido a partir de suas vivências e experiências, o que inclui a mídia para a construção do imaginário deste. Além disso, apresentam uma tradução e reprodução das regras naturalizadas socialmente para o espaço escolar, ou seja, esporte que contenha competição, performance, técnica, não exigindo, necessariamente, a presença do professor. Sem dúvida, há uma hegemonia do esporte sobre os conteúdos da Educação Física, entretanto, a presença do esporte na escola demonstra ser pautada na reprodução de um esporte que eles não conhecem pela Escola, mas por outros meios, com características articuladas ao consumo do mesmo como uma mercadoria, representativos de um esporte que podemos encontrar no cotidiano da sociedade, realimentado pelos meios de comunicação de massa. Este discurso aponta um desconhecimento sobre os outros conteúdos que fazem parte da cultura corporal de movimento e que pouco são trabalhados no cotidiano escolar, limitando à aprendizagem de esportes, como nos assinala a pesquisa de Gueriero e Araújo (2004). A escolha do conteúdo futebol pelos alunos (os meninos) representa claramente essa relação entre conteúdo escolar e conteúdo midiático. Portanto, questões como: - para quê um professor de Educação Física se podemos realizar o “nosso esporte” (ou o “nosso futebol”) ? - parecem ser cotidianamente realizadas, já que a cultura da mídia, a partir dos seus discursos, contribui para possíveis formas simbólicas e ideológicas que alcançam tanto a sociedade como a Escola. Cabe ressaltar que as formas simbólicas e, portanto, ideológicas, presentes no discurso da mídia sobre esporte se relacionam com a prática discursiva dos professores, de tal forma que muitos reproduzem tais discursos, especialmente de forma naturalizada, e ajudam a configurar os discursos dos alunos, por meio das práticas pedagógicas dos professores. Além disso, as ideologias possuem manifestações que variam de acordo com o contexto social e histórico; isso nos retorna a reflexão do momento que os alunos se encontravam durante a pesquisa (Copa do Mundo da África do Sul/2010), assim como as práticas pedagógicas, às quais estavam acostumados, expressas em seus discursos já citados anteriormente. A própria Educação Física, quando resiste a uma abstração necessária e adota 1527 procedimentos reprodutivos da cultura, não ascende à condição de práxis, muito menos contribui para a mudança social que Fairclough (2008) aponta, a partir de uma prática discursiva própria. Por práxis, entendemos como um conceito que, baseado em Marx, explica a intervenção humana (ação), intencional e refletida (teoria), no sentido da transformação da natureza e da sociedade. Isso se reflete na formação de professores de Educação Física para a ascensão de práticas pedagógicas concernentes com determinadas concepções de critério de verdade para a promoção de conhecimento e opções mesmo políticas, envolvendo a relação teoria-prática. Essas práticas pedagógicas docentes constituem-se a partir de diferentes concepções. A literatura nos apresenta três concepções, sendo as duas primeiras abordagens representativas que se localizam em pólos opostos de um contínuo de interpretação que tem em comum a busca da união ou equilíbrio entre a teoria e prática. Estas negam consequentemente, o conflito e a tensão dialética entre esses fatores. Essas duas concepções representam: a) o que denominamos de racional-idealismo, na qual a teoria tem primazia e a prática vem a ser uma projeção e extensão das ideias; e b) a que se coloca no pólo oposto ao racional-idealismo, o pragmatismo-utilitarista, que defende a prática como critério de verdade, (GAMBOA, 1995). Nesta última, a prioridade absoluta corresponde à prática, e tanto mais compreende a uma verdade, quanto menos impregnada estiver de elementos teóricos (VÁZQUEZ, 1986). Para seus seguidores, a prática experimental é o único critério da verdade científica e a teoria forma-se com base nos resultados eficazes da ação humana. Convém ressaltar que o pragmatismo é a expressão de uma posição empirista e uma das tendências do espírito positivista, interessado em descobrir os critérios objetivos que permitem avaliar as ideias morais e as instituições políticas. Por último, e diferente das abordagens anteriores, a literatura ressalta a concepção dialética que concebe a relação entre teoria e prática não como o ajuste entre uma e outra, seja adequando a teoria à prática ou vice-versa, mas como uma relação que expressa conflito, tensão e confronto entre elas, resultando na práxis como síntese dinâmica. Essa tensão gera um movimento dinâmico de superação. A práxis envolve uma atividade. De acordo com Vázquez (1986), toda atividade propriamente humana só se verifica quando os atos dirigidos a um objeto para transformá-lo se iniciam com um resultado ideal, ou finalidade, e terminam com um resultado, real. Em virtude dessa antecipação do resultado que se deseja obter, a atividade propriamente humana tem um caráter consciente. [...] Nesse caso, os atos não só são determinados casualmente por um estado anterior que se verificou efetivamente – determinação do passado pelo presente – como também por algo que ainda não tem uma existência efetiva e que, não obstante, determina e regula os diferentes atos antes de culminar num resultado real (VÁZQUEZ, 1986, p. 187). A atividade da consciência possui um caráter teórico na medida em que não pode buscar um resultado, por si só, a uma transformação da realidade, natural ou social; e também apresenta um resultado, que é uma ação, assim como Pinto (1995, p. 137) comenta: “Toda práxis tem um lado teórico ideal e um prático concreto possível”. Por muito tempo, a Educação Física enfrentou (e ainda enfrenta) esse embate, 1528 3 Rola-bola é uma expressão utilizada no universo escolar (especificamente na Educação Física) para descrever práticas em que os docentes permitem que os alunos joguem sem qualquer intervenção pedagógica, evitando conflitos e os agradando. não somente com discursos provenientes dos alunos, mas também com expressões comumente ditas por professores: “eu sou do agir, não tenho tempo com falatório” ou “é bonita a sua teoria, quero ver você fazer isso na prática”. Isso se dá, em parte, pelo entendimento do senso comum que se articula sobre os conceitos de teoria e prática. Estas expressões apresentam uma concepção de que a verdadeira prática é a que coincide com o pensamento e o pensamento verdadeiro é o que coincide com o real. Uma situação muito comum nos anos 70 refere-se à formação profissional de professores “capacitados” a um “saber fazer prático”, em que muito visivelmente a condição de ex-atleta era o maior certificado de competência para “ensinar” Educação Física. Entretanto, a partir especialmente dos anos 80, novas reflexões foram surgindo na tentativa de legitimar a Educação Física escolar, transcendendo a visão exclusivamente prática que até então nos apresentava. E aí, apareceram expressões, igualmente de senso comum, tais como: “ele é visivelmente teórico”. Ambas as abordagens polarizadas, a racionalista e a pragmatista, ainda que apresentem uma aparente oposição (a primazia da teoria ou primazia da prática), promovem a aproximação por justaposição entre elas, afastando-se de uma possível práxis. No campo da Educação Física, essa dicotomia entre teoria e prática tornou-se mais visível. É comum, os professores, no senso comum, associarem a prática à alguma modalidade de atividade corporal, de movimento, como exercício, e o correspondente à teoria seriam situações de ensino em que a reflexão e observação são o fim. Isso também reflete a maneira como a relação corpo e mente foi concebida na sociedade ocidental e historicamente apropriada pela Educação Física. Assim, a “prática” na Educação Física foi compreendida pelos alunos da pesquisa como exercitação do corpo (atividade física), desvinculada da “teoria”, o que a transforma, via de regra, em tarefa, ou ação desprovida de sentido. Um comentário de uma aluna, durante a entrevista nos releva isso: Eu acho que a Educação Física deveria ser um retorno para os alunos se exercitarem fisicamente porque a gente já fica muito tempo dentro da sala de aula, tendo aula teórica (Fala transcrita de uma aluna, 08/07/2010). O que se percebe então é que, no caso da Educação Física escolar, em que a dicotomia teoria/prática é mais perceptível, para além da valorização da prática como fruto de saber, como defendido pelo pragmatismo-utilitarista, essa prática tem se tornado cada vez mais valorizada, entretanto não como um critério que reside no valor prático, no sucesso e na eficácia (GAMBOA, 1995), mas um fazer pelo fazer, o dito “rola bola” 3 , um verdadeiro praticismo, que é visto pelos alunos não como produtor de conhecimentos, mas como momento de reprodução de uma Educação Física destinada à vivência descomprometida de algumas práticas corporais, em especial, a prática esportiva e que dispensa qualquer reflexão. Durante uma entrevista realizada, um aluno comentou que a Educação Física dele em outra escola poderia ser validada como qualquer prática, inclusive aquela realizada fora da escola: 1529 Eu podia fazer fanfarra no colégio, ou karatê, ou natação, e aí ao invés de fazer aula de Educação Física, eu escolhi fazer natação fora. Tinha gente que podia também fazer academia e o próprio professor da academia mandava nota, validando a Educação Física (Fala transcrita da entrevista, 08/07/2010). Como podemos perceber, ao chegar ao limite de ser terceirizada, a Educação Física nos discursos dos alunos tornou-se aliada a uma concepção de prática irrefletida. Os resultados encontrados indicam que a produção desta representação ocorre por influência de fatores advindos de fora da escola, da própria Educação Física, tais como as influências institucionais e a visão dicotômica do ser humano. Pensar teoria e prática em uma relação dicotômica ou mesmo hipervalorizar a prática, como aplicação de receitas prontas que não levam a um novo conhecimento, afastam de uma verdadeira práxis social e da mudança social que Vázquez e Fairclough comentam. Apesar destas reflexões postas até o momento, não podemos generalizar (e não é a intenção aqui generalizar) afirmando que este foi o pensamento e posicionamento fechado de todos os alunos. Algumas poucas meninas demonstraram ao final da intervenção (talvez a partir da intervenção) apresentar outra compreensão, como a fala de uma menina realizada durante uma entrevista: Eu acho que os meninos têm confundido aula de Educação Física com aula só de esporte, sabe? Eu acho que tem muita coisa além disso, tipo as dinâmicas como a outra professora fazia conosco...ela fazia a gente pensar. Foi muito diferente, tivemos aulas que nunca tivemos, dinâmicas que sacam coisas que estão na cara, e o ser humano não vê (Fala transcrita da entrevista, 08/07/2010). 1530 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Parece que, mesmo em pleno século XXI, e 30 anos após a chamada fase crítica da Educação Física, situada na década dos anos 80, a Educação Física ainda perpetua em suas práticas pedagógicas uma prática, entretanto, tem demonstrado ser uma prática pela prática, ou prática coisificada. Tal situação estabiliza e mantém estereótipos criados historicamente e se apresenta aos professores que buscam além de uma prática, certo desafio ao romper com isso. Referenciado em Betti, Mendes (2008) comenta que a possibilidade de implementar à cultura de movimento uma ação pedagógica sistematizada e crítica caracteriza-se como um avanço, já que a área tem limitado o potencial crítico de suas interlocuções escolares, fundamentando-se em alguns pressupostos reducionistas que tem a Educação Física apenas como forma de domínio e desenvolvimento do aspecto motor (incluída no paradigma biológico). Nesta perspectiva, é preciso ter claro alguns pontos: é fundamental compreender o fato de que não devemos basear nossa prática pedagógica em referenciais de prática já socialmente consolidadas (como o futebol, por exemplo), em aulas que apenas as reproduzam, sem a reflexão da unidade dialética concebida em uma práxis social. Isto não significa que devemos abandonar nossas referências históricas, o crescimento que a Educação Física nos apresenta; ao contrário, as referências são peças-chave que nos ajudam na reflexão de nossa ação pedagógica, de nosso trabalho docente. Ainda, uma ação pedagógica reclama por um exercício constante de prospecção, de ideal a ser atingido, o que de certa forma, implica no abandono de uma rigidez planificadora, a favor de uma postura na qual os delineamentos são pensados tendo em conta que é da tensão permanente entre a dimensão da realidade e a dimensão do que se idealiza que se materializa a vida possível (CAPARROZ; BRACHT, 2007), ou dita de outra forma, uma educação’ possível. REFERÊNCIAS BRACHT, V. Saber e fazer pedagógicos: acerca da legitimidade da Educação Física como componente curricular. In: Caparróz et al. (Org). Educação Física escolar: política, investigação e intervenção, v. 1. Vitória, Espírito Santo: Proteoria, 2001. BRACHT, V. et al. 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