O andar com experiencia estética
Por: Rafaella Butrago • 5/5/2017 • Dissertação • 8.525 Palavras (35 Páginas) • 358 Visualizações
Caín, Abel e a arquitetura
A primeira separação da humanidade entre nômades e sedentarios traria como consequência duas maneiras distintas de habitar o mundo e, por tanto, de conceber o espaço. Existe uma convicção generalizada de que enquanto os sedentarios devem ser considerados os “arquitetos” do mundo, os nomades deveriam ser considerados como “anarquitetos”, como experimentadores aventureiros e, por tanto, contra a arquitetura e, em geral, à transformação da paisagem. Contudo, talvez as coisas são realmente mais complexas. Se revermos o mito de Abel e Caín na visão arquitetônica, podemos observar que a relação que institui o nomadismo e o sedentarismo com a construção do espaço simbólico surge, pelo contrário, de uma ambiguidade originaria. Como se pode ler no Genesis, trás uma primeira divisão sexual da humanidade – Adão e Eva – segue, na segunda geração , uma divisão do trabalho e, por tanto, do espaço. os filhos de Adão e Eva encarnam as duas almas em que foi dividida, desde seu princípio, a espécie humana: Caín é a alma sedentaria e Abel é a alma nomade. Por desejo expresso de Deus, Caín havia se dedicado à agricultura, y Abel ao pastoreio. Desse modo Adão e Eva deixaram aos seus filhos um mundo bastante repartido: correspondeu a Caín a propriendade de toda a terra, e a Abel de todos os seres vivos.
Os pais, contudo confiando ingenuamente no amor fraterno, não se deram conta do feito de que todos os seres vivos necessitavam da terra para mover-se e, sobre tudo que também os pastores necessitavam da terra para alimentar seus rebanhos. Assim, tras uma disputa, Caín acusou Abel de ter se excedido e, como todo mundo sabe, o matou, se condenando à condição de eterno vagabundo por causa de seu pecado.
Segundo as raízes dos nomes dos irmãos, Caín pode ser identificado como Homo Faber, o homem que trabalha e que se apropria da natureza com o fim de construir materialmente um novo universo artificial, enquanto Abel, ao realizar afinal de contas um trabalho menos cansativo e mais interessante, pode ser considerado como aquele Homo Ludens , o homem que joga e que constrói um sistema efímero de relações entre a natureza e a vida. Seus distintos usos de espaço se correspondem “de hecho a unos usos del tiempo” também distintos, resultantes da primeira divisão do trabalho. O trabalho de Abel, que consistia em andar pelos “prados” pastoreando seus rebanhos, constituía uma atividade privilegiada comparada com as fadigas de Caín, que teria de estar no campo arando, semeando e coletando os frutos da terra. Se a maior parte do tempo de Caín estava dedicada ao trabalho, pelo qual se tratava por inteiro de um tempo útil-produtivo, Abel dispunha de muito tempo livre para se dedicar a especulação intelectual, à exploração da terra, à aventura, ou seja, ao jogo: um tempo não utilitário por excelência. Seu tempo livre é, por tanto, lúdico e levara a Abel a experimentar e a construir um primeiro universo simbólico em torno de si mesmo. A atividade de andar através da paisagem com o fim de controlar a “grey” dará lugar a um primeiro mapeamento do espaço e, também, àquela dotação dos valores simbólicos e estéticos do território que levará ao nascimento da arquitetura da paisagem. Por tanto, ao ato de andar vão associados, já desde a sua origem, tanto a criação artística como uma certa rejeição de trabalho, e por tanto da obra, que mais tarde desenrolaram os dadaístas e os surrealistas parisienses; uma espécie de preguiça lúdico-comtemplativa que esta na base da flânerie antiartística que cruza todo o século XX.
É interessante observar que, depois do fraticídio, Caín será castigado por Deus com o vagabundeio. O nomadismo de Abel deixa de ser uma condição privilegiada e se converte em um castigo divino. O erro fraticida se castiga com o errar “sin patria”, uma perdição eterna pelo país de Nod, o deserto infinito pelo qual havia vagabundeado Abel antes de Caín. Cabe ressaltar que, imediatamente depois da morte de Abel, a especié de Caín será a primeira em construir as primeiras cidades. Caín, agricultor condenado ao “errabundeo”, dará início a vida sedentaria e, por tanto a um novo pecado, posto que leva dentro de si tanto as origens sedentarias do agricultor como as origens nomades de Abel, vividos respectivamente como castigo e como erro. Contudo, segundo o Genesis, é realmente Jabel, um descendente direto de Caín, “o pai de todos aqueles que vivem nomades e sedentarios”. Assim, os nomades provém da especie de Caín, um sedentario obrigado ao nomadismo, e levam em suas raízes o “errabundeo” de Abel.
Bruce Chatwin recorda que jamais nenhum outro povo “sentiu de um modo tão forte que os judeus as ambiguidades morais inerentes ‘a los assentamientos’. Seu Deus é uma projeção de sua perplexidade [...]. Na sua origem, Yahvé é o Deus do Caminho. Seu santuário é a Arca Móvil, sua morada é uma tenda, seu altar é um monte de pedras toscas. E ainda promete a Seus Filhos uma terra bem irrigada [...], em seu coração deseja para eles o deserto”. E Richard Sennet afirma que por sua parte que realmente “Yahvé foi um Deus do Tempo mais que do Lugar, um Deus que prometeu a seus seguidores dar um sentido divino a sua triste peregrinação”.
Essa incerteza com respeito à arquitetura tem suas origens na infância da humanidade. As das grandes famílias em que se divide o genero humano vivem duas especialidades distintas: a da tenda colocada sobre a superficie terrestre sem deixar nela vestígios persistentes. Essas duas maneiras de habitar a Terra se correspondem com dois modos de conceber a propria arquitetura: uma arquitetura entendida como construção física de espaço e da forma, contra uma arquitetura entendida como percepção e construção simbólica de espaço. se observamos as origens da arquitetura através do binomio nomades-sedentarios, parece como se a arte de construir o espaço – ou seja, isso que que normalmente é chamado de “arquitetura” – foi em sua origem uma invenção sedentaria que foi evoluído desde a construção dos primeiros povoados agrícolas e a das cidades e os grandes templos. Segundo a opinião mais comum, a arquitetura havia nascido a partir da necessidade de um “espaço do estar” em contraposição ao nomadismo, entendido como “espaço do andar”.
Na realidade, a relação entre arquitetura e nomadismo não pode se formular simplesmente como “arquitetura ou nomadismo”, sendo que se trata de uma relação mais profunda, que vincula a arquitetura ao nomadismo através da noção de viagens. Em efeito, é muito provavel que o nomadismo e o “errabundeo” que deu vida à arquitetura, ao fazer emergir a necessidade de uma construção simbólica de paisagem. Tudo isso começou antes do nascimento do mesmo conceito de nomadismo, e se produziu durante los “errabundeos” intercontinentais dos primeiros homens do paleolítico, muitos milênios antes da construção dos templos e das cidades.
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