A Aula de Criminologia
Por: Fernando Soubhia • 15/7/2021 • Projeto de pesquisa • 2.248 Palavras (9 Páginas) • 162 Visualizações
Processo Penal em Pessoas:
José e a Condenação sem pedido
Chamemos nosso protagonista de José. Tirando seu nome, todos os demais elementos dessa narrativa são fidedignos ao que transcorreu durante o processo.
José tem 21 anos. 19 à data dos fatos narrados. Suas características marcam praticamente todas as caixas de uma pesquisa criminológica, com a exceção da cor de sua pele: José é albino. Pobre, nascido em um lar desfeito, não avançou nos estudos para além da quarta série e viciou-se em drogas logo cedo. Pouco depois de completar a maioridade, José foi preso – e posteriormente condenado – por tráfico de drogas. Ainda hoje José nega que vendesse entorpecentes, afirmando que era apenas um usuário no lugar errado, na hora errada.
Diferente de muitos, porém, José teve uma segunda chance. Enquanto cumpria sua pena em regime semiaberto, uma família de classe média-alta se apiedou dele e o contratou para trabalhar em sua loja. Ainda assim, os laços com o passado e com a vida atrás das grades não foram cortados por completos e José manteve contato com pessoas vinculadas ao Comando Vermelho.
Conheci José em uma Audiência de Custódia. Não a do tráfico. Outra. Dessa vez José ‘caiu’ por roubo. Como as entrevistas ainda eram ao vivo naquela época, me sentei ao lado de José para explicar como o ato transcorreria e para fazer-lhe as perguntas de praxe: houve violência policial durante a abordagem? Possui residência fixa? Trabalha? E outras. Quando verifiquei que ele estava cumprindo pena em regime semiaberto quando foi preso, já adiantei que a chance de ele voltar para rua naquela ocasião era mínima. Mas havia espaço para luta, afinal, enquanto houver gelo, há esperança.
Segundo a narrativa do Auto de Prisão em Flagrante, José teria intermediado um roubo ocorrido na noite anterior. A vítima seria exatamente a família que deu uma segunda chance a José, oferecendo-lhe um emprego e tratando-lhe como um ser humano. Para os milicianos, José teria ‘dado a fita’, relatando aos seus comparsas que o casal possuía grandes somas de dinheiro em casa e detalhando a rotina do casal, bem como os locais da residência que deveriam ser revirados em busca dos valores.
Na noite do assalto, os dois supostos comparsas teriam entrado na residência do vizinho do casal, rendido o vizinho com uso de uma arma de fogo e, aproveitando que já estavam ali, teriam subtraído bens do vizinho (Roubo 01). Após algum tempo na residência do vizinho, os comparsas pularam o muro que dividia as casas e invadiram a residência do casal, de onde subtraíram mais alguns bens móveis (Roubo 02).
Na manhã seguinte, os policiais teriam recebido uma denúncia anônima relatando que José teria orquestrado o delito. Imediatamente se dirigiram à loja do casal, onde José já havia iniciado seu turno de trabalho e, durante a abordagem, José teria confessado seu envolvimento e ainda teria apontado um dos comparsas como sendo a pessoa que efetivamente adentrou a residência das vítimas. Em pouco tempo os policiais realizaram a prisão de um dos supostos comparsas e, graças a capacidade de persuasão e técnicas de investigação ímpar dos milicianos, o comparsa também confessou a prática do delito e, até por reciprocidade, delatou José. Curiosamente, tanto José quanto o comparsa negaram qualquer envolvimento com os fatos quando interrogados perante a autoridade policial. Talvez o delegado devesse fazer um curso com os PMs.
Como os únicos elementos que conectavam José ao fato eram sua suposta confissão e a confissão delatória do comparsa, ambas veementemente negadas já na Polícia Civil, requeri desde logo o relaxamento da prisão em flagrante de José por falta de indícios suficientes de sua participação na empreitada criminosa. Como fundamento, apontei que confissões obtidas durante o interrogatório de camburão, além de não ratificadas, são ilícitas por violarem o princípio do nemo tenetur se detergere, apontando como paradigma a ADPF 444/DF (a Reclamação Constitucional 33711/DF ainda não havia sido julgada). Demais disso, apontei que a chamada de corréu, por si só, não tem força probatória suficiente a afastar a presunção de inocência, citando precedentes sobre o tema, tal como o REsp 1113882/SP e o HC 84517 do STF.
Não adiantou. Os antecedentes criminais, rectius, O antecedente criminal (no singular) pesou mais e a prisão preventiva de José foi decretada para salvaguardar a ordem pública, tendo o Juízo destacado que o celular de José fora apreendido e tinha potencial para evidenciar que ele possuía vínculos com o Comando Vermelho (note a lógica de prender para investigar).
É claro que o pedido de Liminar em Habeas Corpus foi negado e o mérito do writ demorou quase 02 meses para ser julgado, apenas para seguir o mesmo caminho da liminar. Felizmente o princípio da celeridade vigorou ao menos na primeira instância e nesse mesmo período fora oferecida a denúncia, recebida a denúncia, agendada e realizada a Audiência de Instrução e Julgamento.
Durante a AIJ, que acabou sendo cindida por falta de algumas testemunhas, as vítimas passaram mais de uma hora cada contando sobre suas desconfianças sobre José e como, paradoxalmente, confiavam plenamente nele entregando-lhe diariamente grandes quantias em dinheiro para que ele fizesse os depósitos (até questionei se não seria mais fácil ele simplesmente se apropriar desses valores e dizer que foi assaltado, mas não obtive resposta). Sobre a efetiva participação de José, nada foi trazido. Ao final, requeri a revogação da prisão preventiva, insistindo que não havia elementos concretos que demonstrassem a participação de José. Mais uma vez, o pedido foi negado.
Durante a audiência em continuação, os policiais narraram o que já haviam narrado, até mesmo porque o Promotor de Justiça foi gentil o suficiente de só fazer perguntas fechadas e ler trechos dos depoimentos realizados na Delegacia. Sem novidades. José e o corréu negaram tanto a prática da infração quanto a suposta confissão e a delação que teriam feito. Admitiram apenas que já se conheciam. O relatório sobre os dados do celular de José, por outro lado, demonstrara que ele não teve qualquer contato com o corréu nos meses anteriores, mas que participava, sim, de um grupo de Whatsapp que levava o nome do Comando Vermelho. Gurpo esse, diga-se de passagem, que contava com diversas selfies de pessoas cumprindo pena (o que eu carinhosamente chamo de ‘celfies’).
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