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POSSE NO DIREITO BRASILEIRO: PARA ALÉM DO ANIMUS E DO CORPUS

Por:   •  20/9/2016  •  Projeto de pesquisa  •  8.829 Palavras (36 Páginas)  •  966 Visualizações

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POSSE NO DIREITO BRASILEIRO: PARA ALÉM DO ANIMUS E DO CORPUS 

PAULO LÔBO[1]

Sumário: 1. Demarcação do fenômeno. 2. Um pouco de história da posse no brasil. 3. Animus ou corpus: a persistente disputa de predomínio. 4. Por que a posse é protegida pelo direito? 5. Modelo legal brasileiro de posse. 6. O modo de aquisição da posse determina sua natureza. 7. Titular de posse e detentor. 8. Posse autônoma. 9. Direito à posse. 10. Posse em confronto com a propriedade. 11. Concepções legais brasileiras da posse.

1. DEMARCAÇÃO DO FENÔMENO

         A posse é uma das mais longevas experiências de pertencimento de uma coisa a uma comunidade ou a uma pessoa, em todas as sociedades primitivas e avançadas. Todavia, permanece difícil sua qualificação no âmbito do direito. Os juristas resistem em enquadrá-la como fenômeno jurídico, mas não podem deixar de reconhecer os efeitos jurídicos dela originados.

        A razão desse inconcluso conflito entre a realidade da posse e sua concepção jurídica radica no triunfo da ideia do direito de propriedade individual, após o advento da modernidade liberal, na viragem do século XVIII para o século XIX, com as características ainda hoje predominantes. A concepção tradicional do direito de propriedade individual parece ser hostil à posse, que apenas é admitida como exercício daquele. A posse perdeu sua importância histórica como legitimação de pertencimento de coisa, fundado na utilidade real, em prol de uma titulação abstrata (ato jurídico com força de transmissão – modelo português – ou ato jurídico mais registro público ou tradição – modelo brasileiro) favorecedora da livre circulação. Contudo, a força dos fatos (a realidade da posse) é maior que a idealização da propriedade, como demonstram as vicissitudes por que passa a legislação brasileira, inclusive o Código Civil de 2002, que destina à posse regulamentação própria, introduzindo o direito das coisas.

        A concepção da posse não pode desconsiderar sua historicidade e a orientação adotada em cada sistema jurídico. É, portanto, fadada ao insucesso a concepção da posse que não leva em conta esses fatores determinantes e se eleva a um grau de abstração impreciso, na tentativa de abranger todos os sistemas possíveis.

        As teorias, concepções e definições de posse intentam responder determinados questionamentos:

        a) É direito ou estado de fato?

        b) É poder de fato sobre uma coisa?

        c) Se for estado de fato, por que há consequências jurídicas?

        d) Em que medida a posse pode confrontar a propriedade?

        e) O que é determinante para sua caracterização, o elemento intencional ou a exteriorização de comportamento típico de dono?

        A posse não se contém apenas no direito das coisas, pois é mencionada em outros campos do direito, com significados distintos. No direito de família, há a posse de estado de filiação (CC, art. 1.605) e a posse do estado de casados (CC, art. 1.545). No direito das sucessões, alude-se à posse da herança (CC, art. 1.791). No direito administrativo há a posse de cargo ou função públicos. Porém, é no direito das coisas que a posse assume maior relevância e afirma-se em singularidade, tendo em vista sua larga disseminação na sociedade, inclusive quando em tensão com a propriedade.

        As teorias jurídicas brasileiras sobre a posse inclinam-se, em grande maioria, para considerá-la estado de fato, ou poder de fato que o direito reconhece ao possuidor. Tito Fulgêncio, em obra dedicada à posse, na década de 1930, afirmou que a posse é “poder de fato, instaura-se pelo exercício de fato de algum poder do domínio”, razão porque o ladrão tem a posse, mas não a propriedade, que seria poder de direito adquirido por título justo (2008, p. 6). Esta é a razão de ser denominada a disciplina “direito das coisas”, tradicionalmente adotada no direito brasileiro, como se vê no Código Civil de 2002, e não “direito reais”. Em outro extremo, Darci Bessone pugnou pela pessoalidade da posse, por sua natureza de direito pessoal, situada no direito das obrigações (não é a posse em si que interessa, mas a violência que se pratica contra o possuidor) razão porque decidiu excluí-la da obra que destinou aos “direitos reais” (1996, p. 459).  

        Partindo de sua conhecida definição de direito como interesse juridicamente protegido, Ihering conclui não haver dúvida de que se deve reconhecer o caráter de direito à posse; se a posse não fosse protegida, constituiria apenas puro fato sobre a coisa, mas só porque é protegida, assume o caráter de relação jurídica, que seria sinônimo de direito (1976, p. 90). Na doutrina portuguesa, José de Oliveira Ascensão (1973, p. 296) afirma que a posse “é um direito verdadeiro e próprio”, porque a situação do possuidor não é apenas um reflexo da defesa da legalidade por parte dos órgãos públicos, é ela própria autonomamente protegida. Há autores brasileiros que sustentaram a tese da posse como direito real, a exemplo de Orlando Gomes (2004, p. 42) e San Tiago Dantas (1979, p. 22).

        A orientação majoritária no Brasil da posse como estado de fato, ou poder de fato que o direito reconhece ao titular da posse, é influenciada pela opção centenária do projeto do Código Beviláqua, enunciado no art. 485 do Código Civil de 1916 e mantido, quase integralmente, no art. 1.196 do Código Civil de 2002, de seguinte teor:

        “Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”.  

                

2. UM POUCO DE HISTÓRIA DA POSSE NO BRASIL

        Nos primeiros séculos da existência do Brasil, após o descobrimento pelos portugueses, a posse/utilidade era o título por excelência de pertencimento das coisas. As terras foram concedidas, durante o longo período do sistema de sesmarias, com a condição suspensiva de sua utilização efetiva, sob pena de devolução ao Estado. Ou seja, sem posse efetiva, a concessão se extinguia ou deveria se extinguir.

        No Brasil colonial não se transferiam propriedade ou domínio definitivos. As sesmarias foram os instrumentos legais mais utilizados pela metrópole portuguesa, mediante as quais eram concedidas ou legitimadas posses ou direitos de uso sobre vastas extensões de terras, com intuito de povoamento da colônia, desde que fossem efetivamente exploradas dentro do prazo de cinco anos (Ordenações Filipinas, L. 4, T. 43, 3), mas sem transmissão do domínio, que permanecia sob a titularidade do Reino. Não era a terra que o Reino dava, mas a posse ou usufruto dela; um verdadeiro feudo concedido. Esse sistema repercutia o modelo medieval de pluralidade de titularidades sobre o mesmo imóvel. Deu resultado em Portugal, país de pequena extensão territorial, onde foi introduzido em 1375, promovendo a exploração por pequenos agricultores de áreas não ocupadas, para aproveitamento do solo e cultivo, admitindo-se inclusive o confisco de propriedades particulares incultas para tais fins. As cartas de sesmarias, concedidas pelos capitães donatários e pelos governadores gerais haviam de receber confirmação régia, exigência essa de difícil cumprimento, dirigida ao Brasil a partir do final século XVII, na vã tentativa de controlá-las. Nas Ordenações, sesmeiro era o encarregado de dar a carta, mas no Brasil designava o que recebia a sesmaria. A transplantação desse sistema ao Brasil promoveu efeito inverso, pois foi a causa do surgimento de latifúndios largamente improdutivos; não tinha por fito o abastecimento, como em Portugal, mas o povoamento. No Nordeste foram frequentes concessões de terras mais extensas que os territórios dos atuais Estados. Não havia controle da efetiva utilidade, resultando as cartas de sesmarias em títulos abstratos perpétuos e hereditários. “Os sesmeiros, quase sempre potentados de Olinda e Salvador, pediam a terra, legalizavam o domínio e passavam a ganhar dinheiro às custas do sertanista anônimo” (Porto, s/d, p. 71), muitas vezes expulsando os posseiros pobres que já exploravam a terra. Havia, ainda, as terras concedidas para instalação das Vilas, as quais podiam aforar as não utilizadas, as terras reservadas de interesse da Coroa, as terras de marinha e as posses não legitimadas.

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