Formação De Docentes Dos Cursos De Jornalismo: Uma Abordagem Sob A ótica Da Educação Inclusiva
Trabalho Escolar: Formação De Docentes Dos Cursos De Jornalismo: Uma Abordagem Sob A ótica Da Educação Inclusiva. Pesquise 862.000+ trabalhos acadêmicosPor: • 9/11/2014 • 5.687 Palavras (23 Páginas) • 408 Visualizações
Formação de docentes dos cursos de Jornalismo: Uma abordagem sob a ótica da Educação Inclusiva
Eloiza de Oliveira Frederico
Resumo
Este artigo visa problematizar o trabalho do docente universitário do curso de Jornalismo no que tange à relação com o educando portador de necessidades especiais. O objeto central é observar as dificuldades deste profissional do ensino superior em relação à educação inclusiva, a partir do relato de experiências e observações assistemáticas da autora, jornalista e professora em cursos de jornalismo em duas universidades situadas na região do ABC (Grande São Paulo). Para tanto, serão discutidas questões relativas à práticas pedagógicas, materiais didáticos, infraestrutura dos laboratórios e estúdios utilizados pelas disciplinas técnico-profissionalizantes de jornalismo de modo a colocar em pauta a discussão de caminhos e novas concepções de formação para o docente dos cursos de jornalismo sob a ótica da educação inclusiva.
Notam-se obstáculos ao exercício do direito a educação expresso na Carta Magna, em tratados internacionais e na LDB (Lei de Diretrizes e Bases) nos cursos de Jornalismo por meio de materiais didáticos, da infraestrutura física dos ambientes específicos do curso como estúdios de TV e Rádio, e da inadequação da metodologia de ensino e dos sistemas de avaliação.
O número de cursos de Jornalismo, no Brasil, registra crescimento desde o início do século XXI. Segundo dados do Censo da Educação Superior 2011, o número de cursos saltou de 260, em 2000, para 443, em 2003, o que corresponde a um aumento de 70%. O último levantamento publicado em janeiro de 2011, mostrou que existem no país 502 cursos de jornalismo, desses 100 são públicos e 304 privados.
Isto ratifica a importância da proposição deste artigo visto que os docentes - muitas vezes concomitantemente professores e jornalistas – formam os profissionais que investigam, produzem e veiculam matérias jornalísticas que têm como pauta central o (des) respeito aos direitos universais do homem e a inclusão social. No entanto, no cotidiano da universidade a chamada educação inclusiva ainda não integra as práticas pedagógicas do docente de jornalismo.
Palavras-chave: Ensino Superior, Educação Inclusiva, Docente de Jornalismo
Abstract
This article aims to discuss the work of Journalism university professors in terms of the relationship with the physical disabled students. The central object is to observe the difficulties this higher education professional faces, in terms of inclusive education, on the basis of experience and systematic observations reporting from the author, journalist and professor in journalism courses in two universities located in ABC ( as known as Grande São Paulo). For this matter, it’ll be discussed questions referring to pedagogic practices, teaching material, laboratories and studios infrastructure, used by the journalism technical education disciplines in order to put on the agenda the discussion of new ways and conceptions for the training of the journalism courses professors under the inclusive education’s vision.
Obstacles can be seen to the exercise of education’s rights expressed in the Constitution, in international treaties and in the LDB (Law of Directives and Bases) in the journalism courses, through teaching materials, physical infrastructure of specific environments of the course such as the TV and Radio studios, and the evaluating systems and teaching methodology’s inadequacy.
The number of Journalism courses, in Brazil, registers growing since the beginning of the twenty first century. According to the data available by the 2011 Census on Higher Education, the number of courses jumped from 260, in 2000, to 443, in 2003, which corresponds to a 70% increasing. The last public survey, published in January 2011, showed that there are 502 journalism courses in the country, being 100 of them public and 304 private ones.
This ratifies the importance of this article’s proposing as the professors – usually professors and journalists at the same time – forms the professionals that investigate, produce and inform the news’s stories that has as their agenda highlight the (des) respect to the universal human rights and in the social inclusion. However, in the university’s daily basis, the so called inclusive education still doesn’t fall within the journalism professor’s pedagogic practices.
Keywords: Higher Education, Inclusive Education, Journalism Professor
INTRODUÇÃO
A Constituição Federal brasileira de 1988 (art. 205) estabelece que educação é direito de todos, em total consonância com tratados internacionais onde o acesso à educação está no rol de direitos humanos.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948, assegura o princípio da não-discriminação por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opiniões, origem nacional ou social, riqueza, nascimento ou qualquer outra condição, inclusive a situação política, jurídica ou nível de autonomia do território a que pertençam às pessoas (artigo 2º). Em 1994, o Brasil tornou-se signatário da Declaração de Salamanca (UNESCO, 1994) quando reafirmou o compromisso de construir a educação inclusiva no país.
A Lei de Diretrizes e Bases, promulgada em 1996, definiu a Educação Especial como “modalidade de educação escolar oferecida preferencialmente na rede regular de ensino, para portadores de necessidades especiais”. Ou seja, a escolarização almejada pela LDB deve ser estendida de fato ao ensino superior que, ainda em número reduzido, registra o ingresso dos alunos portadores de necessidades especiais.
O Plano Nacional de Educação (Lei nº 10.172, de 09/01/01) aponta a redução das desigualdades sociais e regionais tendo o acesso e à permanência no ensino superior como uma das metas ao estabelecer a criação de
[..] políticas que facilitem às minorias, vítimas de discriminação, o acesso à educação superior, através de programas de compensação de deficiências de sua formação escolar anterior, permitindo-lhes, desta forma, competir em igualdade de condições nos processos de seleção e admissão a esse nível de ensino.
No entanto, os cursos universitários de jornalismo ignoram os direitos à educação expressa na Carta Magna, em tratados internacionais e na LDB. Restrições de acessibilidade de infraestrutura predial ou ao material didático, metodologias de ensino e sistemas de avaliação excluem educandos portadores de necessidades especiais e colocam o docente na berlinda, na maioria das vezes, por falta de interesse ou de capacitação para a inclusão escolar desde alunos.
Confesso que até a bem pouco tempo não me atentava para as dificuldades dos estudantes portadores de necessidades especiais. Como docente no curso de Jornalismo de disciplinas técnicas ou práticas (Radiojornalismo, Linguagem de Rádio, Documentário Radiofônico, entre outras) acreditava que minha atuação era influenciada apenas e tão somente pela minha experiência profissional, ou seja: reproduzia ipsis litteris as redações dos veículos de comunicação onde exerci várias funções jornalísticas.
Recentemente comecei a refletir sobre o ser docente e a (re) pensar minha atuação, pois a continuidade do exercício da carreira acadêmica pressupõe pré-requisitos que até então desconhecia ou menosprezava, por considerar-me jornalista e não professora. Tal reflexão mostrou o quão urgente se faz preparar o profissional que migra do mercado de trabalho direto, sem escalas, para as salas de aula, como ocorreu comigo (jornalista e professora em cursos de jornalismo em duas universidades situadas na região do ABC, Grande São Paulo). Ao cursar a pós-graduação denominada ‘ A Construção da Docência no Ensino Superior: Fundamentos e Práticas’ iniciei um processo de observação das deficiências e dificuldades deste profissional do ensino superior, particularmente, em relação à educação inclusiva o que resultou neste artigo, que tem como eixo central o relato de minhas experiências e observações assistemáticas embasadas na metodologia de pesquisa autobiográfica.
. O jornalista docente e os desafios da educação inclusiva
No início de 2011, o MEC divulgou os primeiros dados do Censo da Educação Superior que mostra um crescimento de 13% no número dos cursos de graduação em 2009 em relação a 2008. De acordo com o levantamento governamental foram registrados 28.671 cursos de graduação e 295 seqüenciais de formação específica. Eles estão mais concentrados em universidades (49,8% dos presenciais) do que em faculdades (35,6%). O restante está distribuído entre centros universitários (12,9%) e institutos federais de tecnologia (1,74%).
No entanto, o número de matrículas no ensino superior público brasileiro caiu 1,9% entre 2008 e 2009. A queda está relacionada à redução nas matrículas das instituições de ensino estaduais e municipais. Em apenas um ano, foram 143.971 vagas a menos nos Estados e 26.196 nas cidades.
O índice de toda a educação superior - públicas e particulares - só não foi negativo por conta do aumento nas instituições federais (crescimento de 2,5%, com 146 mil matrículas a mais). Elas responderam sozinhas, por 141 mil das novas matrículas, com um aumento de 20,2% em relação a 2008.
De acordo com o Censo, a área de Comunicação Social, que engloba normalmente cursos de Jornalismo, Publicidade e Propaganda, Relações Públicas e Rádio e Televisão, responde por 4% das matrículas do país, ocupando o sétimo lugar no ranking dos cursos presenciais mais procurados no Brasil, segundo o censo do MEC:
1 Administração (1.102.579 de alunos)
2 Direito (651.730 de alunos)
3 Pedagogia (573.898 de alunos)
4 Engenharia (420.578 de alunos)
5 Enfermagem (235.804 de alunos)
6 Ciências Contábeis (235.274 de alunos)
7 Comunicação Social (221.211 de alunos)
8 Letras (194.990 de alunos)
9 Educação Física (165.848 de alunos)
10 Ciências biológicas (152.830 de alunos)
FONTE: MEC- Censo da Educação Superior 2011
O número de cursos de Jornalismo, no Brasil, registra crescimento desde o início do século XXI. Segundo dados do Censo do Ensino Superior, o número de cursos saltou de 260, em 2000, para 443, em 2003, o que corresponde a um aumento de 70%. O último levantamento publicado em janeiro de 2011, mostrou que existem no país 502 cursos de jornalismo, desses 100 são públicos e 304 privados. Apenas o Estado de São Paulo contabiliza mais de 75 IES que oferecem o curso :
“[...] nos últimos anos surgiram muitos cursos sem as mínimas condições para a formação em jornalismo. [...] Precisamos de cursos de jornalismo, sejam em instituições privadas ou públicas, de qualidade, que tenham uma condição mínima de infraestrutura com laboratórios equipados, corpo docente qualificado e que realizem de forma sistemática e planejada pesquisa em jornalismo para a qualificação da atividade, da profissão” (MARTINS, Gerson, entrevista ao boletim FENAJ, 2006).
O fim da obrigatoriedade do diploma de jornalismo para atuar na área, definida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em junho de 2009 freou, indubitavelmente, o ritmo de crescimento no número de inscrições nos vestibulares e, posteriormente, no de matrículas nos cursos de jornalismo em todo o País. No entanto, há que se registrar que o fenômeno não se restringe à esta área do conhecimento. De acordo com o instituto Data Popular, a inclusão das classes C e D, por exemplo, na universidade já está perto da saturação. Em 2002, estas duas classes sociais representavam 44% do total de alunos nas faculdades brasileiras. Atualmente, elas representam mais de 73% dos estudantes universitários no país. Para Márcio Falcão, executivo do instituto, os jovens destas camadas sociais dão preferência hoje a cursos de tecnólogo, que demandam menor investimento e têm prazo de duração reduzido. O pragmatismo desta geração que ingressa nas fileiras universitárias deverá nortear também, segundo Falcão, as práticas pedagógicas das IES: "Quem se preparar para atender a essa nova demanda deverá ter mais sucesso em melhorar sua taxa de matrícula e freqüência na sala de aula". (Revista Ensino Superior –Ed.151- abril/2011).
Ao sentido meramente utilitário, segundo o qual as necessidades imediatas e os atos para satisfazê-las são as bases de nosso cotidiano, chamamos de práxis utilitária (VÁZQUEZ, 2007). Do ponto de vista da produção capitalista, prático é o produtivo, é o que produz valor e mais-valia. Esta “adequação” utilitarista do “contexto e demanda” é responsável por uma série de problemas da sociedade contemporânea.
No intramuros escolar, Santos Neto vislumbrou o educador reprodutor para aquele docente que cede à filosofia neoliberal. No entanto, não é fácil combater esse pensamento que funciona como ácido corrosivo nas instituições de ensino superior que, diante da concorrência e da sobrevivência, classificam o aluno como cliente e, pior o educando incorporou tal classificação. Não raras vezes, temos a nítida impressão de que o estudante “comprou” o diploma em 48 parcelas transformando freqüência e atividades curriculares em atos meramente protocolares.
Pellanda, na introdução do livro Pedagogia da Utopia de Peter McLaren (2001), aponta cinco pressupostos básicos que dão sustentação ao neoliberalismo, um deles é “homogeneização das consciências, ou seja, a abolição das individualidades, da diversidade”.
A cultura dominante, apoiada nas mídias, trabalha no sentido do igual, do homogêneo, da repetição. (...) A mídia diz como deve ser nosso corpo, o que devemos comer, como devemos amar, nossas formas de lazer, etc. Corpos iguais, almas iguais, sujeitos colonizados.
Para Bourdieu e Passeron (1975), o sistema educacional contribui para a existência das desigualdades quando, no processo de seleção escolar, marginaliza aqueles pertencentes às classes populares e, ainda, reforça as desigualdades entre os gêneros quando conduz as ações e os comportamentos mais adequados ao ser feminino e o ser masculino.
No ensino superior, principalmente em cursos onde o tecnicismo é preponderante – caso o de jornalismo -, pouco ou nunca se discute a concepção dos projetos pedagógicos que são menosprezados, sem qualquer pudor, nas reuniões de planejamento. Não é incorreto afirmar que a maioria do corpo docente desconhece o projeto pedagógico da instituição em que está inserido e pior, rechaça-o quando acredita que o documento não está em consonância com o plano de aula. O projeto pedagógico, no entanto, é de fundamental importância, pois integramos vários “eus” para formar “nós ou nosso”, como aponta Santos Neto:
O Projeto Político-Pedagógico da escola é um instrumento fundamental para sua organização, para a articulação dos sujeitos individuais, para a construção do sujeito coletivo e como forma para permanentemente avaliar o que está sendo elaborado em direção ao sonho que foi assumido para aquele espaço de educação. Por isso precisa ser coletivamente construído.
O plano de ensino não é peça imutável. Além de permitir a inclusão de novos conceitos, dinâmicas e trabalhos, o documento deve respeitar as individualidades. As salas de aula são povoadas de pessoas diferentes, com necessidades diferentes e maneiras de absorção do conteúdo também diferentes. O estudante portador de necessidades especiais demandará deste docente, invariavelmente, alterações das práticas pedagógicas para que este aluno tenha formação igualitária, equiparando as chances de sucesso profissional, como analisa Correia (1997, p.11):
Se não houver mudanças de práticas e de atitudes, a igualdade de oportunidades nunca será alcançada e o futuro do aluno com deficiência será sempre incerto no que diz respeito a uma verdadeira integração social.
Comumente discute-se nos cursos de jornalismo a formação pedagógica ou a falta dela, pois muitos docentes são os chamados “profissionais de mercado”, ou seja, jornalistas gabaritados que resolveram ou foram convidados a transmitir este arcabouço de conhecimento prático aos estudantes. Saviani (2008, p.09) afirma que este “descompasso” na formação docente se configurou no século XIX, mas que as universidades o registraram muito antes:
“Ora, nessas instituições havia professores e estes deviam, por certo, receber algum tipo de formação. Ocorre que, até então, prevalecia o princípio do “aprender fazendo”, próprio das corporações de ofício”.
Mas, com a organização dos sistemas de ensino, as universidades tiveram de adaptar e ampliar o conhecimento, formando professores de vários níveis (básico, fundamental e superior). A partir daí, Saviani (2008, p.10) afirma ter se configurado no sistema educacional dois modelos de formação docente:
a) modelo dos conteúdos culturais-cognitivos:
Para este modelo a formação dos professores se esgota na cultura geral e no domínio específico dos conteúdos da área de conhecimento correspondente à disciplina que o professor irá lecionar.
b) modelo pedagógico-didático:
Contrapondo-se ao anterior, este modelo considera que a formação propriamente dita dos professores só se completa com o efetivo preparo pedagógico-didático.
Observa-se que o primeiro modelo reina em boa parte das IES (Instituição de Ensino Superior) brasileiras, principalmente em cursos onde há predominância do tecnicismo – caso do jornalismo – e as necessidades mercadológicas se sobrepõe ao pedagógico. Dessa forma, o docente é apenas o “educador reprodutor” como classificou Santos Neto (2004), sem didática para trabalhar com quaisquer estudantes, inclusive os portadores de necessidades especiais:
De fato, o que está em causa aí não é propriamente uma omissão da universidade em relação ao problema da formação dos professores, mas a luta entre dois modelos diferentes de formação. De um lado está o modelo para o qual a formação de professores, propriamente dita, se esgota na cultura geral e no domínio específico dos conteúdos da área de conhecimento correspondente à disciplina que o professor irá lecionar. Considera-se que a formação pedagógico-didática virá em decorrência do domínio dos conteúdos do conhecimento logicamente organizado, sendo adquirida na própria prática docente ou mediante mecanismos do tipo “treinamento em serviço”. Em qualquer hipótese, não cabe à universidade essa ordem de preocupações. (SAVIANI, 2008, p.10)
Diante deste cenário qual seria o papel do educador, mais especificamente do professor universitário do curso de jornalismo que se relaciona com indivíduos, como os portadores de necessidades especiais, que têm objetivos e demanda práticas pedagógicas diferentes do universo deste docente?
O docente, o estudante e o jornalismo
A regulamentação da profissão de jornalista em 1969 estimulou, segundo Lopes (1999), a inserção de disciplinas práticas nos cursos, das oficinas de jornalismo, para suprir as necessidades de formação profissional.
A partir de 1996, com a LDB e as alterações nos currículos de Comunicação Social – habilitação em Jornalismo-, o MEC determinou parâmetros de qualidade como a implementação de infraestrutura tecnológica para o ensino das diversas linguagens jornalísticas. A partir daí, as instituições de ensino tiveram de se adequar para estes novos critérios demandados pelas chamadas disciplinas práticas, em rádio, TV, impresso e digital. Ainda segundo Lopes (1999), atualmente laboratório e/ou estúdio é o meio principal para treinar o aluno adequadamente e colocar em prática os conhecimentos obtidos nas temáticas técnico-profissionalizante (Radiojornalismo, Telejornalismo, Mídias Digitais, por exemplo).
Diante desse cenário faz-se necessidade premente em se capacitar o docente universitário da área de Jornalismo, no sentido de se estabelecer de fato a inclusão do estudante portador de necessidades físicas e sensoriais por meio de materiais didáticos, da infraestrutura física dos ambientes específicos do curso como estúdios de TV e Rádio, adequação de metodologia de ensino e sistemas de avaliação
O ‘eu’ docente
Lecionando de forma ininterrupta desde 2006, não me via como educadora. Era uma jornalista que “dava aula”, não uma professora universitária – rótulo que rechaçava até em formulários onde deveria indicar a profissão, mesmo estando hoje mais próxima das salas de aula do que das redações. O prazer em lecionar, em trocar conhecimento com os estudantes sempre foram vistos por mim como extensão natural de minha paixão pelo jornalismo, não pela docência.
Não havia me apercebido que carrego minha história toda vez que entro em sala de aula. Como aponta Santos Neto (2004)
a identidade se constrói numa rede complexa de motivos, influências, relações e interações, desde a concepção até a morte: o fato de ter sido desejado ou não na concepção; o tipo de vida intra-uterina que se vive; a história do parto no momento do nascimento; a herança genética; a experiência familiar na relação com pai, mãe, irmãos e parentes; a educação religiosa e moral; a influência dos diferentes instrumentos de comunicação da ideologia dominante na sociedade em que se vive; a experiência escolar; a experiência da amizade; a experiência com as alteridades não-humanas; a experiência com o ócio, o lazer e o prazer; a experiência amorosa; o sentido atribuído ao morrer.
Considero hoje que meu “eu” docente é pautado também pela minha formação humanista e atuação como jornalista, na medida em que o exercício da docência é consubstanciado em uma discussão do processo educativo e um olhar diferente sobre o educando portador de necessidades especiais, retirando-me de vez da zona de conforto em que outrora me encontrara.
O primeiro estudante portador de necessidades especiais com que trabalhei foi há cinco anos. Ele se locomovia de cadeiras de rodas e tinha o corpo pouco desenvolvido – o tamanho de uma criança – e um apaixonado pelo meio rádio. As únicas barreiras didáticas a serem vencidas eram a impostação vocal – devido ao tom infantil - e a altura da mesa de áudio do estúdio. Obstáculos simples e de fácil solução: exercícios vocais e almofadas para alcançar o microfone.
Porém, os desafios aumentaram com o passar do tempo, ao recebermos alunos cm deficiências mais severas, como distúrbios neurológicos, déficit de visão, entre outras limitações. Observei que o meio rádio é muito popular entre estes educandos, não apenas devido às características básicas como simplicidade, abrangência, penetração e heterogeneidade, mas também devido à acessibilidade que tal meio de comunicação proporciona à maioria dos portadores de necessidades especiais, excetuando-se os de deficiência auditiva. A paixão pelo meio rádio é reproduzida no curso de jornalismo pelo estudante especial que pode participar, ativamente, do processo de produção radiofônica. A euforia do primeiro dia letivo, no entanto, pode transformar-se em frustração quando nos deparamos com metodologias e infraestrutura física que restringem o acesso destes educandos ao universo radiofônico.
Antes de entrarmos nos estúdios de gravação, lecionamos conceitos teóricos acerca da linguagem radiofônica. Atualmente, os docentes se servem de recursos multimídia como método didático, que estabelecem maior vínculo com jovens acostumados à tecnologia. No entanto, o uso de slideshow, por exemplo, excluiu alunos portadores de deficiências visuais e só me apercebi do fato quando um deles fez piada ao dizer “que nada enxergava”. O bom humor do estudante, no entanto, não diminuiu meu desconforto diante daquela situação, para a qual descobri estar despreparada.
Em outra aula, um estudante com graves problemas neurológicos, que o obrigava a ficar inclinado na cadeira de rodas e a movimentar apenas dois dedos, ficou eufórico ao ouvir o nome sorteado como sendo o locutor do radiojornal, função que ele apontava como “um sonho antigo” a ser realizado. Mas, o grupo confidenciou-me preocupação porque o colega apresentava, devido aos problemas de saúde, hipersalivação episódica seguida de engasgos. O receio deles era ter o trabalho que envolvia um processo de produção similar ao das emissoras jornalísticas, com redatores, pauteiros, repórteres e editores, prejudicado por causa do colega portador de necessidade especial e, consequentemente, uma nota aquém do esforço empreendido pelo grupo.
Mais uma vez, como docente do curso de jornalismo vi-me despreparada e desamparada para atender demandas diferentes e legítimas, pois tanto um tinha o direito de exercer a função sorteada (avisei antes que não poderiam ser trocadas, para que todos exercitassem os postos básicos de um radiojornal) como os outros de terem a execução do produto jornalístico dentro da “normalidade”. E sobre qual normalidade falamos aqui? Como tratar todos de maneira igual se meios e objetivos são tão diferentes?
Por uma semana, montei esquemas, tracei estratégias e elaborei desculpas para não realizar o radiojornal ou retirar o estudante portador de necessidade especial da função-chave. Mas, sempre esbarrava em duas palavras que eram pilares em minha atuação jornalística: justiça e igualdade. Ora era injusta com um lado e ora corria o risco de tratar o outro de forma desigual.
E de forma instintiva coloquei em prática um dos ensinamentos preconizados por SANTOS & PAULINO quando afirma que igualdade é diferente de tornar igual, ou seja, “não é nivelar nem uniformizar o discurso e a prática, mas exatamente o contrário: as diferenças, em vez de inibidas, são valorizadas” (2006, p.12).
Resolvi o impasse por meio de um diálogo franco, mas com delicadeza para não ferir suscetibilidades ou macular imagens, e sugerindo um plano de ação: ao invés dos tradicionais dois locutores teríamos três vozes, sendo a terceira voz acionada somente nos casos em que o estudante especial ficasse impossibilitado de locutar. O pai do educando, que sempre o acompanhava nas aulas devido às dificuldades de mobilidade do filho, seria o encarregado de ordenar e indicar as laudas a serem lidas. Todos aprovaram minhas sugestões e a tensão inicial da gravação do radiojornal foi substituída, no final, por calorosos e emocionados abraços e gritos no estúdio da universidade.
Mas, será que agi corretamente? O mesmo educando que realizou um sonho no estúdio foi reprovado por mim, porque não atendeu aos requisitos básicos da disciplina de Técnicas de Redação de Rádio. Ouvi dele que era a única professora a deixá-lo em dp (dependência por nota) na universidade, apesar dos freqüentes e contínuos problemas de coesão e coerência verificados na produção textual dele.
Novamente a falta de suporte, treinamento, capacitação e orientação me rondavam. Para fundamentar minha argumentação para o aluno e para mim mesma, confesso, explicava que um jornalista deve ter uma boa base cultural e fazer bom uso da norma gramatical porque um texto, independentemente da plataforma-rádio, TV, impresso ou internet- deve ter clareza. Gosto de recorrer ao jornalista decano e ex-ministro, Franklin Martins (1999), quando um aluno me pergunta o que seria um bom texto jornalístico:
Um bom texto é fundamental no jornalismo. Jornalista que não escreve bem e não sabe usar as palavras é como o pintor que não sabe lidar com o pincel e as cores, ou a cozinheira que não tem intimidade com o fogão e os temperos, ou o jogador de futebol que não sabe usar os pés e dominar a bola. Ou seja, um bom texto é algo indispensável no jornalismo. Sem ele, não se pode exercer bem a profissão. Jornalista que não escreve bem, no máximo, é um profissional capenga.
Há que se notar que todos, absolutamente todos os estudantes portadores de necessidades especiais apresentaram até hoje sérios problemas na construção textual. E todos tiveram atenção redobrada e exigente de minha parte. Não teria eu uniformizado o discurso e nivelado os educandos?
A educação inclusiva e a universidade
Os desafios da educação inclusiva no ensino superior são objetos de estudo de vários pesquisadores, com ênfase no primeiro decênio do século XXI. No entanto, deve-se ressaltar a escassa bibliografia brasileira direcionada ao estudo da formação docente universitária no que tange ao ensino inclusivo. Marian A. L. Dias Ferrari e Marie Claire Sekkel no artigo “Educação Inclusiva no Ensino Superior: um novo desafio” (2007) apontam os desafios a serem enfrentados em três níveis :
[...] a tomada de posição das instituições sobre os objetivos e a elegibilidade dos alunos para seus cursos, a necessidade de formação pedagógica dos professores do ensino superior para a educação inclusiva e, por fim, uma prática educativa que propicie a participação de alunos e professores no reconhecimento das diferenças e na criação de estratégias para a superação das dificuldades que surgirem.
A UMESP – Universidade Metodista do Estado de São Paulo-, situada em São Bernardo do Campo, Grande São Paulo, não apresenta de forma clara e objetiva como se dá a educação inclusiva nos 53 cursos presenciais e 18 na modalidade à distância. Com mais de 70 anos, a UMESP registra hoje mais de 26.500 alunos, sendo quase 800 matriculados no curso de jornalismo. O site da universidade não destaca a educação inclusiva e somente uma busca mais detalhada descobre-se que a biblioteca FaTeo (Faculdade de Teologia) instalou os softwares Virtual Vision e Dosvox “para dar maior acessibilidade para Deficientes Visuais”.
Em um material também publicado no site da universidade, em 2002, a Metodista anuncia investimentos para adaptar os campi no sentido de atender os portadores de necessidades especiais – funcionários e alunos:
A UMESP (Universidade Metodista de São Paulo) tem buscado atender ao desafio de incluir os portadores de necessidades especiais; física, auditiva, visual, mental ou múltipla - ao dia-a-dia da instituição.
Em relação aos alunos, “principalmente os com limitações físicas” a reportagem centra-se nas adaptações da estrutura predial “para facilitar o acesso e a integração dessas pessoas ao ambiente universitário”. Não há menção sobre adaptações ou concepções de projetos pedagógicos voltados para o ensino inclusivo.
A USCS – Universidade Municipal de São Caetano do Sul- possui desde 2007 o Núcleo de Acessibilidade que tem o objetivo de “possibilitar uma maior acessibilidade atitudinal, física e pedagógica aos alunos com necessidades especiais e, mais especificamente aos alunos com deficiências físicas e sensoriais”. No entanto, na descrição dos serviços do Núcleo que consta no site da universidade, considerados como foco prioritários, percebe-se desprezo pela capacitação docente para educação inclusiva. O professor é citado somente uma vez, mas para a realização de trabalho meramente instrumental: “Orientação aos docentes quanto às adaptações de materiais didático-pedagógicos para as disciplinas”.
Por meio do uso da noção de violência simbólica, Bordieu e Passeron (1975) tentam desvendar o mecanismo que faz com que os indivíduos vejam como natural a representação ou ideologia dominantes. A violência simbólica é desenvolvida pelas instituições e pelos agentes que as animam e sobre a qual se apóia o exercício da autoridade. Os sociólogos consideram que a transmissão pela escola da cultura escolar (conteúdos, programas, métodos de trabalho e de avaliação, relações pedagógicas, práticas lingüísticas) à classe dominante, revela uma violência simbólica exercida sobre os alunos de classes populares.
As restrições de acessibilidade de infraestrutura predial ou ao material didático, metodologias e sistemas de avaliação excluem educandos portadores de necessidades especiais e a falta de capacitação do docente do curso de jornalismo em educação inclusiva é a exemplificação da violência simbólica, tendo as IES e o sistema educacional como agentes da exclusão e da marginalização de docentes e discentes do processo de inserção social.
Considerações Finais
A partir do relato de experiências da autora com estudantes portadores de necessidades especiais, notam-se os problemas advindos desta preponderância em temáticas técnico-profissionalizantes, que tem nos estúdios de rádio/televisão e nos laboratórios de informática os principais campos para colocar em prática os conhecimentos das linguagens jornalísticas. Este artigo pretende colocar em pauta, de fato, a educação inclusiva no ensino superior de jornalismo para que possamos refletir e discutir caminhos ou iniciativas que capacitem o docente universitário da área, no sentido de inserir o estudante portador de necessidades físicas e sensoriais por meio de materiais didáticos, da infraestrutura física dos ambientes específicos do curso como estúdios de TV e Rádio e adequar metodologia de ensino e os sistemas de avaliação.
Haja vista que tais docentes - muitas vezes concomitantemente professores e jornalistas – formam os profissionais que investigam, produzem e veiculam matérias jornalísticas que têm como pauta central o (des) respeito aos direitos universais do homem e a inclusão social. No cotidiano da universidade a chamada educação inclusiva ainda não faz parte das práticas pedagógicas do docente de jornalismo.
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