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UMA INTRODUÇÃO A MAX WEBER E A "ÉTICA PROTESTANTE E O ESPÍRITO DO CAPITALISMO"

Casos: UMA INTRODUÇÃO A MAX WEBER E A "ÉTICA PROTESTANTE E O ESPÍRITO DO CAPITALISMO". Pesquise 862.000+ trabalhos acadêmicos

Por:   •  12/5/2014  •  3.705 Palavras (15 Páginas)  •  729 Visualizações

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“A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo” (Die protestantische Ethik und der Geist

des Kapitalismus) de Max Weber foi escolhido como o mais importante escrito teórico

publicado no século XX, por dez intelectuais convidados pelo jornal Folha de São Paulo,1

para elaborar a lista dos cem melhores livros de não-ficção ou ensaios do século (uma outra

obra de Weber, “Economia e Sociedade”, ocupa a terceira colocação). Um dos jornalistas

pergunta:

O que um livro publicado em 1904, que trata basicamente de características de um movimento

religioso pouco influente por aqui, o protestantismo – movimento de contestação dos dogmas e da

organização da Igreja Católica, no século 16 –, vem fazer no topo de uma lista das “melhores obras

de não-ficção do século” de um jornal brasileiro?

O ensaio histórico-sociológico de Max Weber buscou vincular o conteúdo doutrinário do

protestantismo com a economia capitalista – “este último caracteriza-se por uma

racionalidade específica, para a qual concorreu a noção de trabalho como vocação e ascese

intramundana, gerada no calvinismo. Sem postular uma causalidade estrita, o autor

demonstra haver uma afinidade entre ambos”.2 Neste estudo, buscaremos dar um resumo

das linhas gerais da mais importante obra de Weber.3 Também serão levantadas algumas

perguntas no decorrer do estudo, e, na conclusão, serão abordadas algumas questões

criticas, para estudo posterior. Por uma questão de brevidade não serão desenvolvidos os

pressupostos weberianos, “em seu esforço obstinado para estabelecer a eficácia histórica

* Ministro da Convenção Batista Brasileira, doutorando em Teologia pelo Seminário Teológico Batista do Sul

do Brasil, onde leciona Teologia Sistemática.

1 “Caderno Mais!” em Folha de São Paulo (Domingo, 11 de Abril de 1999). Participaram da escolha o crítico

literário e escritor Modesto Carone, o antropólogo Roberto DaMatta, o físico Rogério Cézar de Cerqueira

Leite, o economista Eduardo Giannetti, os historiadores Evaldo Cabral de Mello e Nicolau Sevcenko e os

professores de filosofia Maria Sylvia Carvalho Franco, Olgária Matos, Bento Prado Jr. e Renato Janine

Ribeiro. Sobre o fato de Max Weber ocupar a primeira e a terceira colocações, Maria Franco comenta: “Sua

erudição deixa tudo ao redor dele muito empalidecido”.

2 Ibid.

3 Wax Weber (nascido em Erfurt, Alemanha, em 1864; falecido em Mônaco, em 1920) foi professor de

economia primeiramente em Fribourg (1894), depois em Heidelberg (1897), Viena e, finalmente, Berlim. Foi

co-editor, com Werner Sombart (que em 1911 publicou Die Juden und das Wirtschaftsleben [Os judeus e a

vida econômica], uma tentativa de refutar a tese de Weber), da mais influente publicação de ciências sociais

de seu tempo – Archiv Fur Sozialwissenschaff und Sozialpolitik. Algumas de suas principais obras são: A

história agrária e sua significação para o direito público e privado (1891), As causas sociais da decadência

da civilização antiga (1896), A ética protestante e o espírito do capitalismo (1904-1905), As seitas

protestantes e o espírito do capitalismo (1906), e, postumamente, Economia e sociedade (1922). Para mais

informações biográficas e uma coletânea de ensaios weberianos, ver Ana Maria de Castro e Edmundo

Fernandes Dias (org.), Emile Durkheim, Max Weber, Karl Marx e Talcott Parsons: introdução ao

pensamento sociológico (São Paulo: Moraes, 1992), 97-156. Para um resumo de suas idéias principais, ver

Tânia Quintaneiro, Maria Ligia de O. Barbosa e Márcia Gardênia de Oliveira, Um toque de clássicos:

Durkheim, Marx e Weber (Belo Horizonte: UFMG, 1999), 105-147. Para a importância da sociologia como

ferramenta para ajudar a fazer teologia, ver a excelente introdução de David Lyon, O cristão e a sociologia

(São Paulo: ABU, 1996).

2

das crenças religiosas contra as expressões mais reducionistas da teoria marxista”.4

INTRODUÇÃO

Depois de demonstrar a existência de uma “noção ingênua” de capitalismo em todas as

culturas, Weber busca definir o capitalismo como uma característica típica do mundo

ocidental. Em suas palavras,

chamaremos de ação econômica “capitalista” aquela que se basear na expectativa de lucro através da

utilização das oportunidades de troca, isto é, nas possibilidades (formalmente) pacíficas de lucro. Em

última análise, a apropriação (formal e atual) do lucro segue os seus preceitos específicos, e,

(conquanto não se possa proibi-lo) não convém colocá-la na mesma categoria da ação orientada para

a possibilidade de benefício na troca. Onde a apropriação capitalista é racionalmente efetuada, a ação

correspondente é racionalmente calculada em termos de capital.5

Este será seu ponto de partida, em busca das origens deste tipo específico de capitalismo: a

moderna organização racional da empresa capitalista, baseada na separação da economia

doméstica e na criação de uma contabilidade racional.

I. AS RAÍZES PROTESTANTES DO CAPITALISMO

A. Filiação religiosa e estratificação social

Weber partiu de uma constatação que o instigou: na região estudada no vale do Ruhr, na

Alemanha, geralmente os filhos dos católicos eram levados a escolher carreiras

profissionais humanísticas, enquanto os protestantes escolhiam as carreiras técnicas. Como

conseqüência, os protestantes estavam mais representados entre os industriais, dirigentes

empresariais e técnicos de nível superior. Instigado por estas constatações, ele desenvolveu

a pesquisa, na qual concluiu que alguns ramos do protestantismo (calvinismo, pietismo,

metodismo e anabatistas), por causa, aparentemente, de sua fé e da ética que a partir dela

desenvolveram, deram uma importante contribuição para a formação do espírito que

impulsiona a economia ocidental moderna.6

B. O espírito do capitalismo

Com a finalidade de determinar aquilo que ele chamava de “o espírito do capitalismo

organizado e racional”, Weber se volta para um documento que aparentemente reflete este

espírito, que “contém aquilo que procuramos numa pureza quase clássica e que”, ao mesmo

tempo, “apresenta a vantagem de ser livre de qualquer relação direta com a religião,

estando assim, para os nossos objetivos, livre de preconceitos”.7 Ele cita as conhecidas

4 P. Bourdier, “Uma interpretação da teoria da religião em Max Weber” A economia das trocas simbólicas

(São Paulo: Perspectiva, 1982), 79. Ver também John Patrick Diggins, Max Weber; Política e o espírito da

tragédia (Rio de Janeiro: Record, 2000). Junto com outros pesquisadores, Diggins sugere que a visão de

Weber sobre os conflitos na sociedade moderna foi moldada pelo entendimento da vontade de poder (expressa

na luta entre valores antagônicos), que ele recebeu do trabalho de Friedrich Nietzsche, e pela descrição dos

limites da responsabilidade moral, que ele desenvolveu a partir de seus estudos sobre o calvinismo, conceitos

estes que tornariam a realidade social, política e econômica compreensível.

5 Max Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo (11a edição. São Paulo: Pioneira, 1996 [1904-

05]), 4-5.

6 Ibid., 136, n. 8.

7 Ibid, 29. Aqui ele está citando duas obras de Benjamin Franklin, Necessary Hints to Those That Wold Be

Rich, de 1736, e Advice to a Young Tradesman, de 1748.

3

máximas: “tempo é dinheiro” (qualquer tempo em que não se está trabalhando custa o

dinheiro que poderia ter sido ganho); “crédito é dinheiro” (por seis pences por ano, pode-se

fazer uso de centenas de pences); “o dinheiro pode gerar dinheiro” (aquele que desperdiça

uma coroa destrói tudo o que ela poderia ter produzido, uma grande quantidade de coroas).

Para Winn, “temos aqui a religião secular do trabalho”. O primeiro e maior mandamento é

o de trabalhar do modo mais árduo possível, durante o máximo possível de horas, para se

ganhar o maximo possível de dinheiro. O pecado cardeal é perder tempo ou dinheiro.

Segundo a interpretação weberiana, a disciplina monástica e ascética estabelece que o

dinheiro ganho dessa maneira não deve ser gasto em divertimento ou conforto, mas

diretamente investido para gerar mais dinheiro, e as virtudes cardeais passam a ser a

frugalidade, a laboriosidade, a pontualidade nos pagamentos e a fidelidade nos acordos –

todas as quais aumentam o crédito e habilitam a fazer uso do dinheiro dos outros. “Essa

religião parece ter sido destinada a concretizar a acumulação de capital. Todos nós

conhecemos e observamos seus devotos”.8

A peculiaridade desta filosofia da avareza parece ser o ideal de um homem honesto, de

crédito reconhecido e, acima de tudo, a idéia do dever de um indivíduo com relação ao

aumento de seu capital, que é tomado como um fim em si mesmo. Em seu entendimento, na

verdade, o que é aqui pregado “não é uma simples técnica de vida, mas sim uma ética

peculiar, cuja infração não é tratada como uma tolice, mas como um reconhecimento do

dever”. Esta é a essência do problema. “O que é aqui preconizado não é mero bom senso

comercial – o que não seria nada original – mas sim um ethos”.9 Em seu entendimento

desta filosofia, ganhar dinheiro dentro da ordem econômica moderna e, enquanto for feito

legalmente, é o resultado e a expressão de virtude e de eficiência em uma vocação – e estas

virtude e eficiência são o coração da ética de Benjamin Franklin.

C. A concepção de vocação de Lutero – a tarefa da investigação

No terceiro capítulo desta obra, o autor busca a raiz do moderno sistema capitalista na

concepção protestante de vocação. Em suas palavras, “não há duvida de que já na palavra

alemã Beruf, e, quem sabe, ainda mais, na palavra inglesa calling, existe uma conotação

religiosa – a de uma tarefa ordenada, ou pelo menos sugerida por Deus, – que se torna tanto

mais manifesta, quanto maior for a ênfase do caso concreto”.10 Para João Calvino, para

vivermos de modo digno, devemos levar em conta nossa vocação:

Finalmente, de levar-se em conta é isso: que o Senhor a cada um de nós em todas as ações da vida

ordena atentar para Sua vocação. Pois, [Ele] sabe com quão grande inquietude efervesça o engenho

humano, de quão inconstante volubilidade seja levado para cá e para lá, quão ávida lhe seja a

ambição em abraçar diversas cousas a um só tempo. Portanto, para que através de nossa estultície e

temeridade de cima abaixo se não misturem todas [as cousas, Deus] ordenou a cada um os seus

deveres em distintos gêneros de vida. E para que não ultrapasse alguém temerariamente os seus

limites, a essas modalidades de viver chamou vocações. Logo, para que não sejam levados em volta

às cegas pelo curso da vida, foi pelo Senhor atribuída a cada um, como se fora um posto de serviço,

sua forma de viver. (...) Daqui também insigne consolação surdirá: que, desde que obedeças à tua

8 Albert Curry Winn, “A tradição reformada e a teologia da libertação”, Donald K. McKim (ed.), Grandes

temas da tradição reformada (São Paulo: Pendão Real, 1998), 354.

9 Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo, 31.

10 Ibid, 53

4

vocação, nenhuma obra tão ignóbil e vil haverá de ser que diante de Deus não resplandeças e sejas

tida por valiosíssima.11

No entendimento de Weber, foi a partir deste conceito de vocação que se manifestou aquilo

que ele entende como o dogma central de todos os ramos do protestantismo, segundo o qual

a única maneira de viver aceitável para Deus não estava na superação da moralidade secular

pela ascese monástica, mas sim no cumprimento das tarefas “do século”, impostas ao

individuo pela sua posição no mundo.12 Então,

o calvinismo é, precisamente, a primeira ética cristã que deu ao trabalho um caráter religioso.

Anteriormente, o trabalho fazia parte das atividades pertencentes à vida material; ele se impunha

porque, de uma forma ou outra, não se podia dispensá-lo; mas, como atividade temporal, nenhuma

relação tinha com a salvação eterna ou com a vida espiritual. Para o calvinismo, ao contrário, o

trabalho, considerado uma vocação, torna-se atividade religiosa. Importa trabalhar, custe o que

custar, haja ou não necessidade de prover seu sustento, porque trabalhar é uma ordem de Deus.13

A partir deste ponto, ele busca descobrir o extraordinário papel desempenhado pelo

calvinismo e pelas seitas protestantes na história do desenvolvimento capitalista. Em seu

entendimento, basta uma observação superficial para verificar que podemos encontrar um

tipo de relação entre a vida religiosa e os atos seculares completamente diferentes, tanto do

catolicismo como do luteranismo – e isto seria evidente até em obras de teor puramente

religioso. Seu exemplo é o trecho final da Divina Comédia, no qual o poeta, no paraíso, fica

sem fala diante das obras de Deus e a forma como John Milton encerra o último canto do

Paraíso Perdido, depois de haver descrito a expulsão do paraíso:

Eles olharam para trás, e contemplaram toda a parte oriental do Paraíso, ainda há pouco sua feliz

mansão, ondulada por essa espada chamejante; a porta estava interceptada por horríveis rostos e

armas ardentes. Adão e Eva deixaram cair algumas lágrimas sentidas, que logo enxugaram. O mundo

todo estava diante deles, para escolherem, lá, um lugar para o seu descanso. A Providência era o seu

guia. De mãos dadas, com passos incertos e lentos, tomaram, através do Éden, o seu caminho

solitário.

Fora só uns momentos antes que o arcanjo Miguel dissera a Adão:

Ajunta somente ao teu conhecimento ações louváveis, ajunta a fé, a virtude e a paciência, a

temperança, ajunta o amor, chamado no futuro, caridade, alma de tudo o mais; então, não te

lastimarás de deixar este Paraíso, pois que possuirás em ti mesmo um Paraíso muito mais feliz.14

Em seu entendimento, “percebe-se logo que essa poderosíssima manifestação do

puritanismo de apego ao mundo, de valorização da vida secular como dever, teria sido

inconcebível da parte de um autor medieval. Mas, igualmente deixa de ser afim ao

luteranismo, pelo menos ao de Lutero e de Paul Gerhard”.15

11 João Calvino, As Institutas ou Tratado da Religião Cristã, vol. III (SP: CEP, 1989), 186, 187.

12 Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo, 53.

13 André Biéler, O humanismo social de Calvino (São Paulo: Edições Oikoumene, 1970), 68.

14 John Milton, O Paraíso Perdido XII (Rio de Janeiro: Ediouro, s/d [1667]), 258, 260.

15 Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo, 59.

5

II. A ÉTICA VOCACIONAL DO PROTESTANTISMO ASCÉTICO

A. Fundamentos religiosos do ascetismo laico

Na segunda parte de seu trabalho de investigação, Weber passa a estudar aquilo que ele

considera “os representantes históricos do protestantismo ascético”16 que são,

principalmente, os quatro seguintes: “o calvinismo na forma que assumiu na sua principal

área de influência na Europa Ocidental, especialmente no século XVII; o pietismo; o

metodismo; e as seitas que se derivaram do movimento [ana]batista”.17 O interesse de autor

se concentra “na influência daquelas sanções psicológicas que, originadas na crença

religiosa e da prática da vida religiosa, orientavam a conduta e a ela prendiam o

indivíduo”18 – e em torno desta questão central que gira a tese de Weber.

O primeiro grupo abordado é o calvinismo, que “foi a fé em torno da qual giraram os países

capitalisticamente desenvolvidos – Países Baixos, Inglaterra e França – as grandes lutas

políticas e culturais dos séculos XVI e XVII”, associado principalmente a João Calvino.19

Em seu entendimento, “naquela época, e, de modo geral, mesmo hoje, a doutrina da

predestinação era considerada seu dogma mais característico. (...) Os grandes sínodos do

século XVII, principalmente os de Dordrecht e Westminster, além de numerosos outros

menores, fizeram de sua elevação à autoridade canônica o objetivo principal de seus

trabalhos”.20 Na interpretação weberiana da doutrina da predestinação, aos fiéis “mantevese

como um dever absoluto, de cada um considerar-se escolhido e de combater todas as

dúvidas e tentações do demônio”, já que a falta de autoconfiança era o resultado da falta de

fé, e, portanto, de graça imperfeita. A exortação do apóstolo de fortalecimento da própria

vocação (2Pe 1.10) “é aqui interpretada como um dever de obter certeza da própria

dedicação e justificação na luta diária pela vida”. Então, no entendimento de Weber desta

doutrina, uma intensa atividade profissional era recomendada, como o meio mais adequado

para alcançar a autoconfiança.21

16 Para as tipologias de “ascetismo” e “misticismo”, ver Max Weber, “Rejeições religiosas do mundo e suas

direções”, Os Pensadores (São Paulo: Abril Cultural, 1980), 242-244, onde ele contrasta “como renúncias do

mundo, o ascetismo ativo, que é uma ação, desejada por Deus, do devoto que é instrumento de Deus e, por

outro lado, a possessão contemplativa do sagrado, como existe no misticismo, que visa a um estado de

‘possessão’, não de ação, no qual o individuo não é um instrumento, mas um ‘recipiente’ do divino. A ação no

mundo é vista, assim, como um perigo para o estado irracional e outros estados religiosos voltados para o

outro mundo. O ascetismo ativo opera dentro do mundo; o ascetismo racionalmente ativo, ao dominar o

mundo, busca domesticar o que é da criatura e maligno através do trabalho numa vocação ‘mundana’

(ascetismo do mundo). Tal ascetismo contrasta radicalmente com o misticismo, se este se inclina para a fuga

do mundo (fuga contemplativa do mundo)”.

17 Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo, 65.

18 Ibid, 67.

19 Ver Ibid, 163, n. 1. Weber não discutiu separadamente o zuinglianismo já que este, após um curto período

de poder, rapidamente perdeu importância. No entendimento dele, o arminianismo ficou limitado, em sua

influência, à Holanda e aos Estados Unidos, e seu impacto social resumiu-se em ter sido “a religião do

patriciado mercantil da Holanda”. A posição política arminiana era ‘erastiana’ (isto é, favorável à soberania

do Estado mesmo em assuntos eclesiásticos), pensamento comum a todas as entidades de interesses

puramente políticos, como por exemplo, a rainha Elisabeth I e os Estados Gerais holandeses.

20 Ibid, 68.

21 Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo, 77.

6

Para Weber, baseando sua ética na doutrina da predestinação, os calvinistas substituíram a

aristocracia espiritual dos monges, alheia e superior ao mundo, pela aristocracia espiritual

dos predestinados santos de Deus, integrados no mundo.22 “A união da fé, em normas

absolutamente válidas, com o determinismo absoluto, e a completa transcendência de Deus

foi, a seu modo, um produto de grande genialidade... uma ordenação racional sistemática da

vida moral global”.23 Em seu entendimento, ao luteranismo, em razão de sua doutrina de

graça centrada nos sacramentos e na igreja visível, faltava justamente uma “sanção

psicológica de conduta sistemática que o compelisse à racionalização metódica da vida”.24

Mas, segundo Biéler,

Que este dogma [da predestinação] foi importante no pensamento de Calvino ninguém poderia

contestar; que, no entanto, tarjasse com seu timbre toda a vida religiosa e profana das comunidades

calvinistas desde a origem, ao ponto de desencadear entre seus membros reflexos profissionais

específicos, eis o que é bastante exagerado e abertamente contraditado pelos fatos da época, já que

nos mostram os calvinistas bem pouco inclinados às práticas capitalistas.25

Mas, aqui, precisamos já levantar uma questão: será que Weber está sendo inteiramente

justo em sua leitura de Calvino – e da tradição reformada que se seguiu? Quando

comparamos “o espírito do capitalismo”, conforme sua descrição feita por Weber e

reconhecido por nós em nós mesmos e nos outros, com as idéias do próprio Calvino a

respeito do dinheiro e dos negócios, passamos a descobrir que ele considerava os negócios

como uma forma legítima de servir a Deus e de trabalhar para a sua glória. Ele via a

circulação de dinheiro e os bens e serviços como uma forma concreta da comunhão dos

santos, e defendia que aqueles que se envolviam nos negócios deveriam ter como objetivo

ajudar os pobres e os ricos. Ele pensava que seria bom restaurar o Ano do Jubileu – uma

redistribuição periódica da riqueza de modo que essa brecha nunca se tornasse

permanente.26

Os pastores em Genebra também intercediam continuamente diante do Conselho em favor

dos pobres e dos operários. O próprio Calvino intercedeu várias vezes por aumentos de

salários para os trabalhadores. Os pastores pregavam contra a especulação financeira, e

fiscalizavam parcialmente os preços contra a alta provocada pelos monopólios. Debaixo da

influência dos pastores, o Conselho limitou a jornada de trabalho dos operários. A

vadiagem foi proibida por leis: os vagabundos estrangeiros que não tivessem meios de

trabalhar deveriam deixar Genebra dentro de três dias após a sua chegada. E os vagabundos

da cidade deveriam aprender um ofício e trabalhar, sob pena de prisão. O Conselho instituiu

cursos profissionalizantes para os vadios e os jovens, para que eles pudessem entrar no

mercado de trabalho.27

22 Ibid, 85.

23 Ibid, 88.

24 Ibid, 89.

25 André Biéler, O pensamento econômico e social de Calvino (São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1990),

641.

26 Winn, “A tradição reformada e a teologia da libertação”, 355. Ver também outras criticas em Robinson

Cavalcanti, Cristianismo & política; teoria bíblica e prática histórica (Rio de Janeiro: Vinde & São Paulo:

CPPC, 1988), 126-127.

27 Augustus Nicodemus Lopes, O Ensino de Calvino Sobre a Responsabilidade Social Da Igreja (São Paulo:

PES, 1998), 20.

7

Os autores da Confissão de Fé de Westminster e dos dois Catecismos foram profundamente

influenciados neste aspecto pelo ensino de Calvino. No capítulo sobre o “Magistrado Civil”

(Cap. XXIII) a Confissão de Fé reflete o ensino de Calvino sobre a vocação social e política

dos cristãos (par. 2), a independência da Igreja do Estado, para gerir seus próprios

interesses, e o dever do Estado de proteger a Igreja cristã (par. 3), o dever do Estado de

assistir e proteger os necessitados independentemente das convicções religiosas dos

mesmos (par. 3), bem como o dever dos cristãos de honrar e de submeterem-se ao Estado

(par. 4). Eles também fizeram contínuas referências às questões sociais e econômicas. A

exposição no Catecismo Maior do sexto mandamento (“não matarás”) inclui os seguintes

deveres exigidos “... a justa defesa da vida contra a violência... o uso sóbrio do trabalho e

recreio... confortando e socorrendo os aflitos, e protegendo e defendendo o inocente”.

Como pecado, são incluídos “... a negligência ou retirada dos meios lícitos ou necessários

para a preservação da vida... o uso imoderado do trabalho... a opressão... e tudo que tende à

destruição da vida de alguém”.28 Então, no entendimento de Biéler, “foi o abandono da

antropologia de Calvino, em favor de uma antropologia secularizada otimista e

progressista, que conduziu algumas sociedades protestantes aos desvios analisados por

Weber”.29 Ele continua:

Entre o século XVIII, analisado por Weber e Troeltsch, e a época do Reformador [Calvino], há mais

de dois séculos, de história e nada menos que a revolução industrial. Pois bem, a maior censura que

se pode fazer a esses autores é a de haverem ignorado essa distância e de haverem cedido à tentação

de identificar – a despeito de sua vontade de distingui-las – a influência de Calvino com a influência

dos movimentos religiosos de origem calvinista, contudo, já extensivamente deformados e

secularizados.30

O segundo grupo protestante abordado é o pietismo, associado a Philip Spener, e

caracterizado como “emocional”. No entendimento de Weber, o efeito prático dos

princípios pietistas foi um controle ainda mais estritamente ascético da conduta na vocação,

“fornecendo uma base religiosa para a ética vocacional, ainda mais sólida que a mera

respeitabilidade laica” dos cristãos luteranos normais, considerados pelo pietismo como

uma cristandade de segunda classe.31 O pietismo acabou influenciando funcionários,

caixeiros, operários e empregados domésticos, e o empregador patriarcal condescendente

(seu exemplo sugestivo é o Conde Nikolau von Zinzendorf). O calvinismo, por outro lado,

28 Lopes, O Ensino de Calvino Sobre a Responsabilidade Social Da Igreja, 21.

29 Biéler, O humanismo social de Calvino, 71. Ele também diz: “Calvino elaborou um pensamento econômico

inteiramente original. Enquanto quase todos os teólogos anteriores faziam depender a vida econômica da

moral geral e natural, sem relação direta com a obra da redenção, Calvino foi o primeiro a mostrar que a vida

material é na verdade um dos lugares objetivos onde, mediante seu comportamento concreto, o homem vive o

testemunho de sua fé no Cristo redentor. Entendia, pois, que as relações econômicas entre os homens –

homens naturalmente corrompidos pelo pecado – podiam ser restaurados pela renovação espiritual da criatura

humana. A evangelização e a missão cristã tem, portanto, incidência direta sobre a vida econômica e passam a

ser a condição de sua restauração e da vida social harmoniosa”. Ver também, do mesmo autor, A força oculta

dos protestantes; oportunidade ou ameaça para a sociedade? (São Paulo: Cultura Cristã, 1999), 122-137.

30 Biéler, O pensamento econômico e social de Calvino, 640. Para mais informações sobre influência de

Calvino no processo social e econômico, ver também Wilson Castro Ferreira, Calvino: vida, influência e

teologia (Campinas: LPC, 1990), 217-236.

31 Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo, 92.

8

estava mais relacionado com a “ativa empresa dos empreendedores capitalistas

burgueses”.32

...

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