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Artaud e o Rosto em Cena

Por:   •  21/2/2024  •  Trabalho acadêmico  •  2.122 Palavras (9 Páginas)  •  49 Visualizações

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Artaud e o rosto em cena

INTRODUÇÃO:

O objetivo aqui é experimentar algumas encenações e reivindicações artaudianas, na configuração de uma expressão que não se propõe ser ícone de uma identidade mimética ao referente real, na contramão de uma linha de pensamento onde o rosto seria a expressão de uma interioridade do sujeito, ou a manifestação de um inconsciente separado do corpo.

A primeira parte, assim, é um levantamento de questões suscitadas pela discussão trazida no seminário em torno da produção artístico-discursiva de Artaud; uma tentativa, por vezes frustrada, de leitura de través desses retratos, utilizando como base, principalmente, “O rosto humano”, o Teatro e seu duplo, “Para acabar com o julgamento de deus” e Os Taraumaras.

 

o rosto em cena

Assim como a língua, para Artaud o corpo partiu  para ser outra coisa que não o corpo. Pergunto-me: se o corpo partiu, que corpo desconcertado e ausente é esse que Artaud coloca na superfície do quadro e que desconcerta também quem o vê?

O que é preciso para se refazer um corpo? Esse corpo de que fala Artaud é único, ou serão muitos os corpos? Como seria possível a representação de um corpo ilimitado na materialidade pictural?

Artaud diz que o rosto humano ainda não encontrou sua face e que cabe ao pintor lhe dar .

O que é preciso, então, para se refazer um corpo não é respondido diretamente no seu texto sobre o rosto humano, mas seus retratos se colocam ao mesmo tempo como questão e como possibilidade de reivindicar um corpo-rascunho, um rosto-borrão, que combate às formas acabadas e a geografia bem definida dos corpos anatomicamente representados. Consigo compreender, então, esses retratos como mais uma tentativa de encenar seu pensamento/corpo – nessa nova face que ele propõe.

E qual um caminho possível então? Segundo Artaud, em “Para acabar com o julgamento de deus”, poderia ser “colocando-o de novo, pela última vez, na mesa de autopsia para refazer a sua autonomia.” Já que  “O homem é enfermo e mal construído”. A questão da expressão, de algo que capta a alma humana, sai da relação de semelhança, e passa a  buscar a captura de um rosto que a princípio não está ali, que é ausência ou segredo, e que Artaud procurou fazer dizer o que tal rosto o falava. Os retratos, dessa maneira, não deixam de ser uma escrita limite, que violenta a figura na sua possibilidade representativa.

Aqui, em seus desenhos, é evidente que a crueldade continua a ser aquela coabitação de precisão e necessidade de expressão, o laço paradoxal capaz de unir harmonia e dissonância, assim com se apresenta no Teatro e seu duplo. Ela aqui também é associada ao rigor, ao esforço. Alguns retratos, nesse sentido, apresentam a materialização desse pensamento da crueldade em harmoniosa discórdia. Vejo a crueldade também como um dos elementos que busca romper com a armadura do corpo, com os limites que dão contorno forma humana, assim como Artaud procurou romper com a armadura das palavras. Esses rostos, por vezes desordenados, são talvez a expressão possível de uma plástica poética rigorosa inserida num sistema caótico.

Ele nos diz ainda que “há mil e mil anos que o rosto humano fala e respira mas se tem ainda a impressão de que ele não começou a dizer o que é e o que sabe. E, além de Van Gogh, “não conheço um só pintor que, esse rosto do homem, tenha conseguido fazer falar”.

O quadro branco, infestado de clichês, precisa ser então limpo pelo preenchimento de traços e manchas. A violência da crueldade prevê um mundo sem faxina e, dessa maneira, esses rostos que se desfazem combatem uma tradição lógico-discursiva que prevê uma vida sem sombras, que se apreende claramente, estática e sem conflito. Para ele, então, inumanos seriam os corpos de Da Vinci, o “pintor de cadáveres, que trabalha sob os ditames das leis da anatomia”, num projeto estético que se vincula ao corpo orgânico, medicalizado e disciplinado por uma ditadura dessa perspectiva.

Diz ele no Teatro e seu duplo: “No fogo da vida, no apetite da vida, no impulso irracional para a vida existe uma espécie de maldade inicial: o desejo de Eros é uma crueldade, pois passa por cima das contingências; a morte é uma crueldade, a ressurreição é crueldade, a transfiguração é crueldade, pois em todos os sentidos e num mundo circular e fechado não há lugar para a verdadeira morte, pois uma ascensão é dilaceramento, pois o espaço fechado está cheio de vida e uma vez que cada vida mais forte passa através das outras, portanto as devora num massacre que é uma transfiguração e um bem”. (1987:134)

Nesses retratos mantém-se a figuração clássica de um rosto: com os olhos, o nariz, a boca e ouvidos, que respondem, segundo Artaud, “aos buracos das órbitas como as quatro aberturas supulcrais da próxima morte”. Artaud diz que o Rosto é um campo de morte, de onde caberia ao pintor justamente salvá-lo ao dar-lhe seus próprios traços. Nos seus retratos, a morte aparece uma vez mais como força vital; a vida massacra e transfigura, mas há a possibilidade de refazer essa vida através de um corpo estético, pictural. Porém, esse refazimento do rosto retratado aparece na criação de um espaço pictural do caos, trazido pelo Traço-borrão e pelas contra-figuras. Nessa fúria poética, a erosão, a corrosão, o  gris-gris, o rascunho e a rasura, encenam um combate que acarretará num impasse da razão diante desses objetos obscuros.

Porque o corpo - assim como a língua - partiu, é possível que esses rostos digam/combatam/reivindiquem, por vezes, através da erosão da forma desenhada, de uma razão criada pela carne que se decompõe, esburacada e cheia de fendas. Assim como a língua artaudiana, seus retratos são vibráteis. Essa vibração colabora para a criação de um tempo e uma razão diferentes da cronologia e da linearidade cartesiana. Seus retratos, assim como o resto de sua obra, encenam um tempo de vertigem que dá a ver a exigência e urgência dessa nova natureza do rosto que nasce, por vezes, através do derretimento da forma, derretimento que ao mesmo tempo a refaz constantemente. É através do mecanismo da desfiguração da imagem que, por vezes, Artaud busca insuflar vida na obra. A força desfigurante é, portanto, uma força vital.

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