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A Vida A Dois

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Por:   •  3/6/2014  •  Tese  •  1.149 Palavras (5 Páginas)  •  243 Visualizações

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O historiador José Murilo de Carvalho define cidadania como o exercício pleno dos direitos políticos, civis e sociais, uma liberdade completa que combina igualdade e participação numa sociedade ideal, talvez inatingível.5 Carvalho entende que esta categoria de liberdade consciente é imperfeita numa sociedade igualmente imperfeita. Neste sentido, numa sociedade de bem-estar social, utópica, por assim dizer, a cidadania ideal é naturalizada pelo cotidiano das pessoas, como um bem ou um valor pessoal, individual e, portanto, intransferível.

Esta cidadania naturalizada é a liberdade dos modernos, como estabelece o artigo III da Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada na Assembléia Geral das Nações Unidas, em 1948: "toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”.6 A origem desta carta remonta das revoluções burguesas no final do século XVIII, sobretudo na França e nas colônias inglesas na América do Norte; o termo cidadão designa, nesta circunstância e contexto, o habitante da cidade "no cumprimento de seus simples deveres, em oposição a parasitas ou a pretensos parasitas sociais”.7

A etimologia da palavra cidadania vem do latim civitas, cidade, tal como cidadão (ciudadano ou vecino no espanhol, ciutadan em provençal, citoyen em francês). Neste sentido, a palavra-raiz, cidade, diz muito sobre o verbete. O habitante da cidade no cumprimento dos seus deveres é um sujeito da ação, em contraposição ao sujeito de contemplação, omisso e absorvido por si e para si mesmo, ou seja, não basta estar na cidade, mas agir na cidade. A cidadania, neste contexto, refere-se à qualidade de cidadão,8 indivíduo de ação estabelecido na cidade moderna.9 A rigor, cidadania não combina com individualismo e com omissões individuais frente aos problemas da cidade; a cidade e os problemas da cidade dizem respeito a todos os cidadãos.

No Brasil, nos léxicos da língua portuguesa que circularam no início do século XIX, observa-se bem a distinção entre os termos cidadão (em português arcaico, cidadam) e o fidalgo, prevalecendo o segundo para designar aquele indivíduo detentor dos privilégios da cidade na sociedade de corte.10 Neste contexto, o fidalgo é o detentor dos deveres e obrigações na cidade portuguesa; o cidadão é uma maneira genérica de designar a origem e o trânsito dos vassalos do rei nas cidades do vasto império português. Com a reconfiguração do Estado a partir de 1822, vários conceitos políticos passaram por um processo de resignificação; cidadão e cidadania entram no vocabulário dos discursos políticos, assim como os termos Brasil, brasileiros, em oposição a brasílicos. Por exemplo: povo, povos, nação, história, opinião pública, América, americanos, entre outros.11

A partir disso, o termo cidadania pode ser compreendido racionalmente pelas lutas, conquistas e derrotas do cidadão brasileiro ao longo da história nacional, a começar da história republicana, na medida em que esta ideia moderna, a relação indivíduo-cidade --- ou indivíduo-Estado -- "expressa um conjunto de direitos que dá à pessoa a possibilidade de participar ativamente da vida e do governo de seu povo (...)”.12 Em outros termos, fundamenta-se na concessão do Estado das garantias individuais de vida, liberdade e segurança. O significado moderno da palavra é, portanto, incompatível com o regime monárquico, escravista e centralizador, anterior à independência política do Brasil. No entanto, este o divisor (monarquia-república) não significa no Brasil uma nova ordem onde a cidadania tem um papel na construção de sociedade justa e igualitária. Este aspecto é bem pronunciado na cidadania brasileira: estas garantias individuais jamais foram concedidas, conquistadas e/ou exercidas plena e simultaneamente em circunstâncias democráticas, de estado de direito político ou de bem-estar social.

O longo caminho inferido por José Murilo de Carvalho refere-se a isto: uma cidadania no papel e outra cidadania cotidiana. É o caso da cidadania dos brasileiros negros: a recente Lei nº 7.716 de 5 de janeiro de 198913 é um prolongamento da luta pela cidadania dos "homens de cor", cujo marco histórico formal é a Lei Áurea de 1888; ou seja, um século para garantir, através de uma lei, a cidadania civil de metade da população brasileira, se os números do ultimo censo demográfico estão corretos;14 portanto, há uma cidadania no papel e outra cidadania cotidiana, conquistada no dia-a-dia, no exercício da vida prática; tal é que ainda hoje discute-se nas altas esferas da jurisprudência brasileira se o cidadão negro é ou não é injustiçado pela história da nação.15 Considere-se que na perspectiva de uma cidadania plena, equilibrada e consciente, não haveria de persistir por tanto tempo tal dúvida.

O mesmo se pode dizer da cidadania da mulher brasileira: a Lei 11.340 de 7 de Agosto de 200616 , a chamada "Lei Maria da Penha", criou mecanismos "para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher". Ou seja, garantir sua liberdade civil, seu direito de ir e vir sem ser agredida ou maltratada. No caso da mulher, em geral, a lei chega com atraso, como forma de compensação, como retificação de várias injustiças históricas com o gênero; o direito de votar, por exemplo, conquistado através de um "código eleitoral provisório" em 1932, ratificado em 1946.17 A lei do divórcio obtida em 1977,18 ratificada recentemente pela chamada Nova Lei do Divórcio,19 ampliando a conquista da liberdade civil de outra metade da população brasileira.20 São exemplos de como a cidadania é conquistada, de forma dramática -- por assim dizer --, a custa de esgotamentos e longas negociações políticas.

Neste contexto, a lei torna-se o último recurso da cidadania, aquela cidadania desejada, praticada no cotidiano,físicos, deficientes mentais, homossexuais, crianças, adolescentes, idosos, aposentados, etc.21 Um caso prático para ilustrar esta realidade cotidiana é a superlotação dos presídios e casas de custódia; a rigor, os direitos humanos contemplam também os infratores, uma vez que, conforme mencionamos, “toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”.

Embora existam leis que visam reparar injustiças, existe também uma longa história de lutas cotidianas para conquistar estes direitos: o direito à liberdade de expressão,22 o direito de organizar e participar de associações comunitárias, sindicatos trabalhistas e partidos políticos,23 o direito a um salário justo, a uma renda mínima e a condições para sobreviver,24 o direito a um pedaço de terra para plantar e colher,25 o direito de votar e ser votado --26 talvez o mais elementar da democracia moderna, negado a sociedade, na já longa história da cidadania brasileira.27 É esta luta cotidiana por direitos elementares que define a cidadania brasileira e não os apelos ao pertencimento, ao nacionalismo, a democracia e ao patriotismo do cidadão-comum.

Pode-se entender, portanto, que a cidadania brasileira é a soma de conquistas cotidianas, na forma da lei, de reparações a injustiças sociais, civis e políticas, no percurso de sua história e, em contrapartida, a prática efetiva e consciente, o exercício diário destas conquistas com o objetivo exemplar de ampliar estes direitos na sociedade. Neste sentido, para exercer a cidadania brasileira em sua plenitude torna-se absolutamente necessário a percepção da dimensão histórica destas conquistas no percurso entre passado, presente e futuro da nação. Este é o caminho longo e cheio de incertezas, inferido por José Murilo de Carvalho.

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