Conceitos de memória, história, identidade e documentos, a partir da perspectiva do filme Narradores de Javé
Por: MLoures • 28/5/2017 • Trabalho acadêmico • 1.367 Palavras (6 Páginas) • 536 Visualizações
Conceitos de memória, história, identidade e documentos, a partir da perspectiva do filme
Narradores de Javé
Narradores de Javé é um filme brasileiro, dirigido por Eliane Caffé, lançado em 2003. A história. O enredo desse filmese desenvolve a partir do drama vivido pelos moradores do Vale de Javé, um povoado fictício no interior baiano, condenado ao desaparecimento, devido à construção de uma hidrelétrica cujas águas, em função do progresso, podem inundar a cidade. Diante dessa situação, o povo javélico só tem uma alternativa: provar aos responsáveis pela obra que a cidade possui valor histórico para que, assim, seja preservada.
Todos os moradores de Javé reúnem-se na igreja da cidade para deliberar o que é mais valoroso na região onde moram. Em consequência disso, concordam que a história de fundação de Javé é o dado de maior valor. No entanto, as histórias contadas oralmente não se constituem como um documento de valor histórico para a preservação da cidade. Portanto, faz-se necessário um “dossiê científico”, ou seja, um registro por escrito da “grande história de Javé”, a fim de que ela seja preservada.
Além do medo e do desespero devido à possibilidade de uma inundação, o povo javélico, na trama do enredo, experiencia um novo dilema: quem iria escrever o “Livro da Salvação”, já que a maioria dos habitantes é analfabeta? Em razão disso, o nome de Antônio Biá é sugerido por um dos moradores para a missão de escrever as memórias e depoimentos dados pelos habitantes. Com isso, o registro escrito dessas narrativas pode configurar a identidade do povoado do Vale de Javé, preservando a História dessa gente.
No contexto do filme, há uma incongruência em torno do personagem Antônio Biá. Ele é o antigo carteiro da cidade, que fora “exilado” pelos demais moradores por ter escrito cartas para outros povoados contando mentiras e difamando a população javélica. Entretanto, no momento em
que se desencadeia o conflito narrativo sobre o qual se desenvolve o filme, a cidade precisa da criatividade e da habilidade de Biá com as palavras. Essa necessidade de Javé é a oportunidade perfeita para que o malandro pudesse se redimir por seus atos, salvando, deste modo, a cidade.
A partir de tal incumbência, Biá percorre a cidade para ouvir os moradores, que narrariam suas histórias para que fossem registradas. Neste sentido, o filme se mostra bastante rico, pois permite não só o contato com uma narrativa visual, como também a percepção e discussão de dados teóricos, tais como Memória, Identidade, História e Documento.
Vários são os aspectos da memória que podem ser observados no filme Narradores de Javé. Em primeiro lugar, é importante ter em mente que a memória individual não é estática, mas sim um fenômeno construído em uma dimensão social. Portanto, ela está submetida à dinâmica desse meio.
Segundo Pollak (1992), ao se destacar “essa característica flutuante, mutável, da memória, tanto individual quanto coletiva”, é possível perceber, no filme em questão, uma intensa disputa de memória em relação ao que poderia ser registrado no livro escrito por Biá, a partir das diversas versões narradas pelos moradores sobre a fundação da cidade.
Em um segundo momento, é preciso estar atento para a situação de que a lembrança é a representação do fato, não o fato em si, pois as percepções de qualquer pessoa sobre a realidade se modifica de acordo com suas vivencias e interesses. Toda essa consideração pode ser remetida, então, à quarta proposição apresentada por Celso Pereira de Sá, no texto As memórias e a memória social, no qual esse autor afirma que a prática da memória não se baseia somente em fatos e influências sociais. Os interesses e sentimentos, que surgem e se modificam a cada instante, são fatores determinantes do conteúdo da memória social exibido em um dado momento em determinado lugar.
Percebemos dentre estas projeções, que as memórias narradas pela gente do Vale de Javé possuem uma estreita ligação com o sentimento de identidade. Conforme nos diz Pollak, a construção identitária é um fenômeno que “se produz em referência aos outros, em referência aos critérios de aceitabilidade, de admissibilidade, de credibilidade, e que se faz por meio da negociação direta com outros”, dados que ficam bastante claros durante a narração do povo javélico, que motivados pela necessidade de salvar a cidade e pela vontade de ter suas histórias contadas no “livro da salvação”, podendo, desta forma, participar do documento que oficializaria a História e a identidade do povoado – selecionam as memórias que serão contadas ao escrivão. Com essa escolha, algumas lembranças serão privilegiadas em detrimentos de outras, pois cada cidadão javélico também será capaz de considerar, por meio da linguagem, sua própria identidade e sua própria memória ao narrar a formação de sua cidade.
Ainda, quanto à seletividade da memória, ela não ocorre somente em relação ao que é narrado pelos moradores de Javé. Cada um conta a história de acordo com o que se lembra e com o
como se lembra. No entanto, é Antônio Biá o responsável por selecionar e registrar, dentre tantas histórias, aquelas que farão parte do dossiê. Logo, os registros seriam feitos a partir das memórias do escrivão sobre as memórias narradas a ele. De acordo com a consciência desse personagem em relação ao papel do registro escrito, “uma coisa é o fato acontecido, outra é o fato escrito”. A fala de Biá reafirmar o seguinte pressuposto: há uma manipulação da memória ao ser registrada. Uma vez que a memória não é a realidade em si, mas sim a representação do fato E, (re)construção simbólica dos dados da realidade a fim de serem patilhados socialmente. Logo, a memória sofre modificações desde que articulada, até o momento que é expressa e registrada no possível texto a ser escrito por Biá. Desta forma, Pollak (apud OLIVEIRA), afirma que esse registro, ou enquadramento, de memória pela história é resultado de seleções daquilo que será gravado na memória de um povo e, assim, constituído como memória coletiva e identitária.
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