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DESIGUALDADES DURÁVEIS

Por:   •  20/7/2017  •  Resenha  •  1.947 Palavras (8 Páginas)  •  243 Visualizações

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DESIGUALDADES DURÁVEIS, RELAÇÕES RACIAIS E MODERNIDADES NO RECÔNCAVO: O CASO DE SÃO FRANCISCO DO CONDE.

A pesquisa apresentada por Livio Sansone pretende medir o impacto da transição de uma economia simbolizada pelo açúcar para outra simbolizada pelo petróleo– ambos produtos característicos de economias e rede “globais”.

A cidade de São Francisco do Conde, é  uma das comunidades pesquisadas pelo projeto e que, naqueles anos, foi escolhida por constar de um núcleo ‘atrasado’  por estar numa situação de pouquíssimo crescimento econômico, pouco aumento da população se comparado com outras cidades do Recôncavo, mais perto de Salvador e mais beneficiada pelas contratações em resultado das instalações da Petrobras, como era o caso de parte do município limítrofe ao município de Candeias. A questão mais geral levantada pela pesquisa é como a transição do açúcar para o petróleo, como fonte principal de riqueza direta ou indireta, afeta as expectativas, narrativas e práticas em torno das desigualdades, assim como do processo de redefinição identitária, da relação das jovens gerações com o trabalho, o lazer, o consumo e a sexualidade. É preciso entender como se articulam novos discursos e práticas em torno do ser negro e do ser branco, e como mudam os ícones desse processo, colocando as relações raciais e o processo identitário entre os negros num conjunto mais amplo. Um motivo adicional de interesse por essa região se deve à sua especificidade para uma pesquisa centrada nas desigualdades.

O município onde se realiza a pesquisa goza de um alto índice de repasse do ICMS (imposto), derivado da refinação do petróleo. Esse repasse o torna o segundo ou terceiro município do estado em renda per capita. Essa riqueza relativa, porém, anda pari passu com um dos mais altos índices de desigualdades da Bahia e com um baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).São Francisco do Conde se caracteriza no Nordeste por mostrar uma renda relativamente alta, uma longevidade baixa (em virtude da pobre saúde da população) e um nível educacional relativamente alto e crescente. Como em outras áreas da Bahia (Harris, 1966), existia uma forte correlação entre cor, tipo de trabalho, lugar de moradia e tipo de arranjo familiar. Do ponto de vista econômico, a não ser pelas trocas econômicas e financeiras em torno da indústria açucareira, SFC vivia uma vida bastante independente ; querendo uma definição de fácil efeito, podemos dizer que SFC, naqueles anos, era um sociedade sobretudo local, com elos com os mundos de fora, mantidos somente por uma pequena parcela da população, a elite, que, segundo Hutchinson, nada mais significava do que um ou dois por cento do total da população, que tinha ramificações sociais e familiares que chegavam até Salvador. Era sobretudo o açúcar que permitia e possibilitava a criação de redes translocais a partir de SFC.

A melhora da rede rodoviária torna São Francisco do Conde muito mais próxima de Salvador, onde o cultivo do açúcar na região é tão antigo como a fundação da vila, e determina, durante mais de 400 anos, absolutamente todo o uso do espaço cultivável assim como as relações de trabalho, profundamente marcadas pela escravidão, a monocultura, a polaridade inconciliável entre interesses do latifúndio e do minifúndio, e a dependência dos preços do açúcar, que sempre foram muito ligados ao mercado internacional. A pesquisa tem enfocado três grupos de informantes: os ex-trabalhadores da grande Usina Dão João – que chegou a empregar 1.100 pessoas e que faliu barulhentamente em 1969, devendo a trabalhadores e grandes credores, mas finalmente solvendo estes últimos por meio da venda do maquinário; os trabalhadores que nunca receberam, bem como os aposentados e pensionistas da Petrobras (sobretudo aqueles que entraram em serviço na década de 50 e 60, e aqueles que trabalharam no açúcar antes de se mudar para o petróleo); e os membros ativos de grupos culturais (os dois terreiros de candomblé mais “tradicionais”, ambos com alvará da nação angola, os grupos musicais e teatrais). O Recôncavo Baiano é uma região que se interligou com o mundo durante quatro séculos graças à rede produzida pelo mundo do açúcar. A partir dos anos de 1950 a extração e refinação do petróleo foi a modalidade econômica que interligou a região com o resto do Brasil e com outros países.

O cultivo e a refinação do açúcar foram os empreendimentos econômicos que absolutamente hegemonizaram a economia durante quatro séculos. Esse cultivo chegou a ocupar 90% da terra do município e somente entrou em crise nos anos de 1950, mas continua na região e mais fortemente em municípios limítrofes, onde a Petrobras recrutou menor número de pessoas. Segundo todos os informantes, a maioria ligada a atividades empresariais, a relativa riqueza de SFC repousaria em cima do confortável colchão formado pela boa arrecadação de ICMS da qual goza a prefeitura. A história da região, dizem em sua maioria, é algo que se aprende na escola, muito mais do que em casa, e que pertence ao reino das coisas que interessam aos velhos ou que se é obrigado a aprender na escola. Mesmo identificando uma mudança geracional, é preciso matizar. Assim, existem dois tipos de jovens: os da cidade e os do campo (principalmente os dos povoados crescidos ao redor das antigas plantações). Já os jovens da cidade geralmente moram em casas próprias ou alugadas e permanecem mais tempo na escola, o que possibilita a troca de experiências com outros jovens e professores e permite ter uma expectativa de trabalho diferenciada de seus pais e avós, mesmo com a escassez de postos de trabalho na cidade. 

Sabe-se, como ensinam Le Goff e Halbwachs, que a memória tem a ver com poder e, nesse sentido, o açúcar perde enquanto o petróleo ganha. Açúcar e petróleo formam o mais recente contraponto na economia baiana, que já conheceu os do açúcar e do tabaco e do açúcar e da mandioca.  Além da escassez de materiais que lembrem de açúcar, há outro problema em relação à qualidade daquilo que se lembra. Na região da pesquisa têm sido criadas fortes condições para que a cultura operária que se formou nos canaviais e na usina seja esquecida, mantendo-se apenas as lembranças adoçadas da relação senhores/trabalhadores.

Se não o primeiro, certamente o mais importante movimento organizado de trabalhadores da terra nessa região nas últimas três décadas foi o relativamente recém-formado MST. Há (pobres) acampamentos do movimento na estrada que liga SFC à Santo Amaro, nas terras que já pertenciam à Usina Santa Elisa. O MST é, por assim dizer, uma válvula de escape para aqueles aos quais a terra sempre foi negada. O messianismo desse movimento deve ter atingido os ex-operários da usina! Mas isso ainda não se constitui numa memória, digamos assim, solidificada, como no caso do Projeto Memória para a celebração dos 50 anos da Petrobras. Antigamente ninguém tirava retratos num matrimônio, mas este durava muito. Hoje qualquer casamento, até de pessoas de baixa renda, é amplamente fotografado e até filmado, mas a união é de curta duração. Tais fotos “valem”, para nossa memória, bem menos que as poucas fotos do passado.

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