Resenha Caderno de Memórias Coloniais
Por: João Carlos Donato dos Santos • 17/9/2022 • Resenha • 1.381 Palavras (6 Páginas) • 198 Visualizações
Resenha: Caderno de Memórias Coloniais João Carlos Donato dos Santos
Resenha do livro “Caderno de Memórias Coloniais de Isabela Figueiredo
João Carlos Donato dos Santos- jdonatodossantos@usp.br
“O tempo dos brancos tinha acabado” (FIGUEIREDO, 2009, p.112)- assim tece Isabela Figueiredo em seu livro “Caderno de Memórias Coloniais”, seria agora a chance dos pretos moçambicanos. Moçambique, agora faz a revolução, resistindo ao domínio colonial português, optando pela luta armada e é esse cenário em que se revela e constitui a história de vida de Isabela. Viveu em Lourenço Marques até seus 13 anos e de lá, partiu para a Metrópole, quando não havia mais perspectiva para viver lá.
Para além das histórias contadas em sua compilação de memórias, o processo e a descoberta de como foi possível para Isabela escrever sobre sua trajetória e os seus conflitos internos é impactante. Como seu pai é o grande protagonista de sua vida, ela não é capaz de descrever suas memórias, até a sua morte. E é só quando, consegue se libertar e consegue escrever e voltar a relembrar tais acontecimentos. E, relembrando, vai construindo uma alternativa àquilo que o pai foi, o vendo e o confrontando como um racista, já adulta.
Interessante ver como o formato do livro passa a intenção de estarmos relembrando junto com ela tais acontecimentos, visto que se tratam de trechos isolados, muitas vezes sem conexões diretas entre um capítulo e outro, a mudança de tempo verbal ao tentar recordar-se de algum fato dá a impressão ao leitor de estar junto à Isabela no momento da concepção do livro, numa tentativa de reconstituir tal passagem em sua mente.
Em seu livro, Isabela aborda as diferenças entre brancos e pretos e a sua visão como criança que se insere nesse contexto colonial. O direito à vida, à propriedade, era inerente ao homem, leia-se, ao homem branco, porque a vida de um branco, por si só, já valia algo, enquanto que os pretos necessitavam validar a sua utilidade para continuarem vivos. Outrossim, em relação ao dinheiro e sua propriedade, era-se necessário estar sempre sorrindo para poder ser pagos pelo trabalho, embora já acordado.
Ainda que fosse uma criança, Isabela já tem a sensibilidade para observar atenta e criticamente aspectos complexos da sociedade moçambicana e a escolha de como tais memórias, escritas inicialmente em formato digital, em seu blog, conformariam o todo do livro, é singular. Como o contraste do corpo branco para o corpo negro, ela, em diversos pontos do livro, aborda como o corpo das negras os era diferente, seriam durante um capítulo todo comparadas a animais, cadelas, coelhos, com seus seios à mostra, seus gemidos altos, e pés descalços. Mesmo assim, seus maridos ainda as procuravam, em um ato de aventura, para satisfazer seu prazer, prazer que não era saciado por suas esposas, porque elas sim eram puras e civilizadas.
A Isabela adulta, se depara relembrando o seu olhar para os olhos dos negros e consegue ver neles a sua miséria, sua subordinação, e ao mesmo tempo que estavam calados, era possível ouvir a sua voz gritando de ódio contra aquilo se estabelecia sobre suas costas.
Uma constante no livro, é como os brancos eram distantes dos pretos, seja em seu corpo, como já tratado, mas também em relação a sua mentalidade e sua forma de viver, tudo remetia a uma forma de inferiorizar a forma de vida dos pretos; seja a sua forma de trabalhar para garantir o sustento do hoje, ou como na maneira que tratavam de não terminar de reformar as suas casas.
Escrever sobre a sua própria vida e como os eventos da história influem em sua vida cotidiana, é o que faz Figueiredo. Ao escrever sobre o imperialismo, utiliza-se de uma ferramenta que o próprio imperialismo a fez incorporar. Quando o leitor tiver a oportunidade de ler a obra, tenha ao seu lado, um dispositivo com internet, por diversas vezes, se fará necessário o seu uso, ao se deparar com um vocabulário distante do cotidiano brasileiro, para a compreensão da escrita de Figueiredo. E, através desses vestígios, verá como esse sistema funciona na prática e à partir da escolha de palavras de Isabela, ao colocar em um livro a ser publicado em língua portuguesa, propositalmente inserindo vocábulos de origem banta, como: machamba, capulana e milando, o que nos leva a refletir sobre como seria possível que em um sistema de opressão, tão violento, tenha raízes que penetrem a terra de Moçambique e permita a interação dessas línguas.
Por diversas vezes, Isabela usa uma expressão que só iria entender ao se deparar com a realidade de sua família longe das manifestações do imperialismo. Sua família não seria rica, apenas remediada, o que nos faz pensar que, em comparação com outras famílias em sua terra natal, na metrópole, não seriam da classe mais alta, mas em comparação com os negros e a parte pobre de Moçambique, estavam por meio das forças do imperialismo sendo auxiliados, com a sua pobreza sendo amenizada por essas relações. Tanto isso é verdade, que ao retornar a Portugal, Isabela se percebe em uma casa simples, pobre, suja com excrementos das aves que criavam. De fato, não eram ricos, mas em Moçambique, com sua despensa era farta, usufruíam de todos os bens que o imperialismo os podia propiciar.
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