Uma Cena, O Divã E O Desabafo
Artigo: Uma Cena, O Divã E O Desabafo. Pesquise 862.000+ trabalhos acadêmicosPor: scastro965 • 9/10/2014 • Artigo • 1.917 Palavras (8 Páginas) • 221 Visualizações
Uma cena, um divã e o desabafo.
Por Sérgio da Silva Castro
Uma cena: Antecedendo o espocar dos fogos de 2009, na cidade do Rio de Janeiro, mas precisamente no subúrbio carioca. No alvoroço das compras de bebidas e comidas para o réveillon, algo chama atenção, não um acontecimento inusitado, mas uma ocorrência natural quando se manifesta, literalmente, riqueza. Num guichê da caixa registradora de um hipermercado, no visor o valor total das compras, porém, mais acima, de forma minúscula, o quantum de ICMS cobrado. Estarrecedor, pois a tributação compulsória vai aos cofres públicos do Estado, sendo o imposto uma forma de tributo, não há uma contrapartida direcionada individualmente, ou seja, aquele quantum tributado você enquanto contribuinte pode receber indiretamente algo que possa usufruir, mas a regra tange-se a coletividade. Assim, trocando em miúdos, como John Rawls dizia que é um pagamento para a distribuição de justiça, no sentido genérico da palavra. Calamo-nos diante de nossos representantes, pois bem, estamos numa democracia e assim são manifestadas nossas vontades. Parece-nos uma presunção de legitimidade, por isso nos impunham essa subordinação. Aturdido, mesmo assim com o carro abarrotado de compras para a comemoração. Em meio termo, feliz pela renovação de um novo ano ao lado da família e, por outro, triste, pelo escorcho tributado escondido entre as compras. Tudo bem, época de festividades, a felicidade mesmo que imposta tem que estar de portas abertas. Carro pesado, no entanto surge uma alternativa de fracionar as compras em outros veículos que partiriam na direção a casa de veraneio na Região dos Lagos, agora denominada Região Costa do Sol. Sugestão excelente a não ser o trajeto a ser percorrido até a residência do parente voluntarioso que ficaria de carregar no seu bagageiro parte da comida e da bebida. Ruas do subúrbio carioca, falta de tudo, um asfalto decente, iluminação necessária e sensação de segurança no espaço público. É impressionante e ao mesmo tempo entristecedora, uma paisagem de abandono, duplamente, pelo poder público e também, principalmente, pelos moradores daqueles locais. Resíduos domésticos são despejados nas ruas, se formam montes que escoam para o asfalto, local de passagem de veículos. Ao redor, pensamos se tratar de ambiente bucólico, pois percebemos suínos e equinos que se alimentam daquele lixo. Soam buzinas a fim de afastá-los dando passagem ao vagar de carros. Comunidade de um lado comunidade do outro, formam uma rede, um complexo. Muitos zumbidos, cães ladram, crianças dançam funk, no bar pagode, são ecléticos e parecem felizes. É uma colcha de retalhos humanos num Estado de fato, onde o Estado de Direito deixou de existir. Mas, os sonhos e os desejos de materialização de consumo são os mesmos que os nossos. Seguindo o trajeto, acompanhado no veículo por duas crianças, infantes no ver, no observar das coisas. Uma freada brusca, um susto. Dois veículos saem em disparada dessa comunidade. Parecia uma frota, marcas e cores idênticas, marca Volkswagen, modelo Fox Cross, na cor preta. Parecia um exército sem farda. Fuzis AR-15 com “bicos” para o lado de fora dos carros e do seu interior vários negros, jovens e vistosos. Cordões pendurados nos pescoços, cor de amarelo ouro que brilhavam com o foco de farol. Uma ordem
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que surgia do último veículo que cruzava a pista em direção a outra comunidade. O fuzil empunhado e apontado em nossas direções. Fuzil estilizado com camuflagem idêntica do exército. Pare essa porra aí! O Estado de direito se curvava ao Estado fato. Obedecendo a ordem de parar. O motorista, uma Autoridade Policial, legítimo representante do Estado de Direito. Entre as pernas duas pistolas, mas diante do poderio de fogo se sentiu amedrontado. Frações de segundos que pareciam uma eternidade. O Estado de fato, os donos do poder naquela comunidade seguiram seu caminho. O Estado de Direito fez a volta. Buscou auxilio das forças policiais. Constrangido ouviu do outro lado linha telefônica: Boa Noite! Policia Militar a seu serviço! Precisamos de ajuda em palavras cotejadas. Conta-se o fato e a resposta: infelizmente essa área é muito perigosa e necessitamos de um grande contingente de policiais. O Senhor e sua família estão em segurança? Registre a ocorrência numa Delegacia mais próxima de onde o senhor está. Desligamos o telefone sem nada falar com uma sensação de incapacidade. Não houve apresentação como Autoridade, pois naquele momento era um homem comum como milhares de brasileiros. Uma derrota para esse Estado de Direito. Sobrepujado desistimos do atalho e percorremos outro caminho, mais distante, porém mais tranquilo. A adrenalina havia tomado conta da gente. As pernas falsearam, a garganta fechou e novamente a sensação de derrotado. Os marginais tinham guardas orientadores de transito que dispunham, além de armas, mas também, de rádios transmissores. Duas crianças no interior do carro indagaram: são bandidos? A resposta tenta minimizar o problema: Sim, mas já foram embora.
O divã: Afinal quem somos “nós”, esse “nós” que afirmamos com tanta veemência no começo. Esse “nós” juridicamente somos os construtores desse Estado fadado a demarcar território. O Estado que tanto culpamos somos “nós”. Esse Estado é uma mera ficção jurídica. O Estado político criador e assegurador de direitos que já são inatos ao homem. Naquele instante ficamos desprovidos de um direito elementar de liberdade, o ir, o vir e o ficar. Os fogos de anunciação do ano vindouro espocaram aos meus ouvidos como o manifesto do abade francês Emanuel Sieyès. Um representante estatal que se encolheu aos alhures dos infantes. Bem lembrado: melhor um covarde vivo que um herói morto. Deixamos de ser heróis aos infantes, mas em contrapartida poderemos construir ou auxiliar um mundo melhor para eles. Curvamo-nos ao Estado de Fato que habita o Estado de Direito. Seremos eternos subordinados a esses Estados. Malgrado, aquele espaço público que foi usurpado pelos malfeitores cerceou o direito basilar de um cidadão. O espaço público onde se transforma em uma verdadeira arena do exercício da cidadania. Àquela polis da Grécia antiga já não existe mais. Os Deuses se foram, agora habitam os demônios. A poltrona do motorista serviu como divã. Refletir em milésimos de segundos percebendo que a finitude chegava sem permissão. Assim, o poeta desconhecido recitava: nascemos sem pedir, vivemos sem saber e morremos sem querer. Apegar-nos, de fato, porque tudo tende a sufocar nossa negação, a emudecer nosso grito. Nossa fúria se alimenta constantemente da nossa experiência, mas enfrentamos qualquer tentativa de expressá-la com uma parede de algodão absorvente. Naquele momento
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