VOCÊ TEM CULTURA?
Tese: VOCÊ TEM CULTURA?. Pesquise 862.000+ trabalhos acadêmicosPor: tatianerstavares • 16/4/2014 • Tese • 2.039 Palavras (9 Páginas) • 219 Visualizações
VOCÊ TEM CULTURA?
OUTRO dia ouvi uma pessoa dizer que “Maria não tinha cultura”, era “ignorante dos fatos básicos da política, economia e literatura”. Uma semana depois no museu onde trabalho, conversava com alunos sobre “a cultura dos índios Apinayé de Goiás”, que havia estudado de 1962 até 1976 quando publiquei um livro sobre eles (Um mundo dividido). Refletindo sobre os dois usos de uma mesma palavra, decidi que essa era a melhor forma de discutir a idéia ou o conceito de cultura tal como nós, estudantes da sociedade, a concebemos. Ou, melhor ainda, apresentar algumas noções sobre a cultura e o que ela quer dizer não como uma simples palavra, mas como uma categoria intelectual: um conceito que pode nos ajudar a entender melhor o que acontece no mundo em nossa volta.
Retomemos os exemplos mencionados porque eles encerram os dois sentidos mais comuns da palavra. No primeiro, usa-se cultura como sinônimo de sofisticação, de sabedoria, de educação no sentido restrito do termo. Quer dizer, quando falamos que “Maria não tem cultura” e que “João é culto”, estamos nos referindo a um certo estado educacional destas pessoas querendo indicar com isso sua capacidade de compreender ou organizar certos dados e situações. Cultura aqui é equivalente a volume de leituras, a controle de informações, a títulos universitários e chega até mesmo a ser confundida com inteligência, como se a habilidade para realizar certas operações mentais e lógicas (que definem de fato a inteligência) fosse algo a ser medido ou arbitrado pelo número de livros que a pessoa leu, as línguas que pode falar, ou os quadros e pintores que pode, de memória, enumerar. Como uma espécie de prova desta associação, temos o velho ditado informando sabiamente que “cultura não traz discernimento”... ou inteligência, conforme estou discutindo aqui. Neste sentido, cultura é uma palavra usada para classificar as pessoas e, as vezes, grupos sociais, servindo como uma arma discriminatória contra algum sexo, idade (“as gerações mais novas são incultas”), etnia (“os pretos não têm cultura”) ou mesmo sociedades inteiras, quando se diz que “os franceses são cultos e civilizados” em oposição aos americanos, que são “ignorantes e grosseiros”. Do mesmo modo é comum ouvir-se referências à humanidade, cujos valores seguem tradições diferentes e desconhecidas, como a dos índios, como sendo sociedades que estão “na Idade da Pedra” e se encontram em “estágio cultural muito atrasado!”. A palavra cultura, enquanto categoria do senso comum, ocupa como vemos um importante lugar no nosso acervo conceitual, ficando lado a lado de outras, cujo uso na vida quotidiana é também muito comum. Estou me lembrando da palavra “personalidade” que, tal como ocorre com a palavra “cultura” , penetra o nosso vocabulário com dois sentidos bem diferenciados. No campo da Psicologia, personalidade define o conjunto de traços que caracterizam todos os seres humanos. É aquilo que singulariza todos e cada um de nós como uma pessoa diferente, com interesses, capacidades e emoções particulares. Mas na vida diária, personalidade é usada como um marco para algo desejável e invejável de uma pessoa. Assim, certas pessoas teriam “personalidade”, outras não! É comum dizer que “João tem personalidade” quando, de fato, se quer indicar que “João tem magnetismo”, sendo uma pessoa “com presença”. Do mesmo modo, dizer que “João não tem personalidade” quer apenas dizer que ele não é uma pessoa atraente ou inteligente.
Mas, no fundo, todos temos personalidade, embora nem todos possamos ser pessoas belas ou magnetizadoras como um artista de novela das oito! Mesmo uma pessoa “sem personalidade” tem, paradoxalmente, personalidade na medida em que ocupa um espaço social e físico e tem desejos e necessidades. Pode ser uma pessoa sumamente apagada, mas ser assim é precisamente o traço marcante de sua personalidade.
No caso do conceito de cultura ocorre o mesmo, embora nem todos saibam disso. De fato, quando um antropólogo social fala em “cultura”, ele usa a palavra como um conceito-chave para a interpretação da vida social. Porque, para nós, “cultura”, não é simplesmente um referente que marca uma hierarquia de “civilização”, mas a maneira de viver total de um grupo, sociedade, país ou pessoa. Cultura é, em Antropologia Social e Sociologia, um mapa, um receituário, um código através do qual as pessoas de um dado grupo pensam, classificam, estudam e modificam o mundo e a si mesmas. É justamente porque compartilham de parcelas importantes deste código (a cultura) que um conjunto de indivíduos com interesses e capacidades distintas e até mesmo opostas transformam-se num grupo e podem viver juntos sentindo-se parte de uma mesma totalidade. Podem, assim, desenvolver relações entre si porque a cultura lhes forneceu normas que dizem respeito aos modos mais ( ou menos ) apropriados de comportamento diante de certas situações. Por outro lado, a cultura não é um código que se escolhe simplesmente. É algo que está dentro e fora de cada um de nós, como as regras de um jogo de futebol, que permitem o entendimento do jogo e, também, a ação de cada jogador, juiz, bandeirinha e torcida. Quer dizer, as regras que formam a cultura (ou a cultura como regra) são algo que permite relacionar indivíduos entre si e o próprio grupo com o ambiente onde vive. Em geral, pensamos a cultura como algo individual que as pessoas inventam, modificam e acrescentam na medida de sua criatividade e poder. Daí falarmos que Fulano é mais culto que Sicrano e distinguirmos formas de “cultura” supostamente mais avançadas ou preferidas que outras. Falamos então em “alta cultura” e “baixa cultura” ou “cultura popular”, preferindo naturalmente as formas sofisticadas que se confundem com a própria idéia de cultura. Assim, teríamos a cultura e culturas particulares e adjetivadas (popular, indígena, nordestina, de classe baixa etc.) como formas secundárias, incompletas e inferiores de vida social. Mas a verdade é que todas as formas culturais ou todas as “subculturas” de uma sociedade são equivalentes e, em geral, aprofundam algum aspecto importante que não pode ser esgotado completamente por uma outra “subcultura”. Quer dizer, existem gêneros de cultura que são equivalentes a diferentes modos de sentir, celebrar, pensar e atuar sobre o mundo e esses gêneros podem estar associados a certos segmentos sociais. O problema é que sempre que nos aproximamos de alguma forma de comportamento e de pensamento diferente, tendemos a classificar a diferença hierarquicamente, o que é uma forma de excluí-la. Um outro modo de perceber e enfrentar a diferença cultural é tomar a diferença como um desvio, deixando de buscar
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