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AS TRÊS ESCUTAS

Por:   •  21/8/2018  •  Artigo  •  2.700 Palavras (11 Páginas)  •  410 Visualizações

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AS TRÊS ESCUTAS

(CHION, Michel: A Áudio-Visão, capítulo 2)

  1. Primeira atitude de escuta: a escuta causal

1.1) Definição

Quando pedimos a alguém que nos fale sobre o que acabou de ouvir, as respostas obtidas chamam a nossa atenção pelo caráter heterogêneo dos níveis ou planos em que se situam. Isto ocorre porque há pelo menos três atitudes de escuta diferentes ligadas a objetos distintos: a escuta causal, a escuta semântica e a escuta reduzida.

A escuta mais difundida é a primeira, a escuta causal, que consiste em se servir do som para conseguir o máximo de informações possíveis acerca da sua fonte ou causa. Se a sua causa for visível, o som pode fornecer a seu respeito informações suplementares como, por exemplo, no caso de um recipiente fechado que, ao ser chacoalhado, revela-se cheio ou vazio. Se a causa for invisível, o som será a nossa informação principal sobre o objeto mesmo quando sua causa já foi identificada por um saber ou suposição lógica acerca da sua natureza, pois é precisamente este suposto saber que permite à escuta causal (que raramente “parte do zero”) orientar-se.

Não devemos, porém, tecer ilusões acerca da acuidade e das possibilidades inerentes à escuta causal, isto é, sobre a sua capacidade de nos fornecer, a partir apenas da análise de um som, informações seguras e precisas acerca de sua fonte. Na verdade, a escuta causal – a mais comum dentre os três tipos de escuta – é também a escuta mais influenciável e manipulável de todas.

1.2) Natureza da identificação causal

 A escuta causal ocorre em diversos níveis.

Podemos reconhecer uma fonte sonora precisa e individualizada: a voz de determinada pessoa, o som de um objeto distinto dos demais.

Porém, tal reconhecimento é raramente obtido a partir de um único som, fora de qualquer contexto. Poucos seres são capazes de emitir, como um indivíduo humano, através de sua voz falada, um som único e exclusivo que o caracterize em sua singularidade. Por outro lado, diferentes cães da mesma espécie emitem o mesmo latido. Ou então somos nós que não somos capazes de diferenciar o latido de um buldogue do latido de outro buldogue ou mesmo do latido de um cão de uma raça próxima – o que dá no mesmo. Se os cães supostamente identificam a voz de seu mestre em meio a centenas de outras vozes, é bastante duvidoso que seu mestre seja capaz de discernir, entre dezenas de outras, com os olhos fechados e sem nenhuma outra informação suplementar, a “voz” do seu cachorro.

O que nos dissimula esta falha em nossa escuta causal, a propósito, é o fato de que, quando estamos em casa e escutamos um latido no quarto ao lado, deduzimos logicamente tratar-se do latido de “Toby” ou “Rolf”.

Ao mesmo tempo, uma fonte sonora reconhecida não está necessária e automaticamente identificada. Podemos escutar todos os dias a mesma locutora de rádio, da qual não conhecemos nem o aspecto físico nem o nome; isto não nos impede de “abrir” na memória uma “ficha” que sinaliza vocal e pessoalmente esta locutora, “ficha” na qual seu nome e outras características (como a cor dos cabelos e os traços do rosto, obviamente não denotados pela voz) são provisoriamente postas de lado.

Há uma grande diferença entre  o que se pode descrever como a percepção do timbre de uma voz pertencente a um indivíduo e a identificação deste mesmo indivíduo associando-lhe uma imagem visual, memorizando-a e atribuindo-lhe um nome.

Segunda possibilidade: não reconhecemos um exemplar, indivíduo ou “item” único e particular, mas uma categoria causal humana, mecânica ou animal: voz de homem adulto, motor de motocicleta, canto da cotovia.

 Ainda mais genericamente, em casos muito mais ambíguos e ainda mais numerosos do que comumente se pensa, o que reconhecemos é apenas a natureza de uma causa, a natureza do seu agente: “deve ser algo de mecânico” (identificado por um ritmo de regularidade propriamente “mecânica”); “deve ser um animal, deve ser alguém lá fora”, etc.. Neste caso, percebe-se, na falta de algo mais substancial, certos índices, sobretudo temporais, dos quais tentamos nos servir para deduzir a natureza da causa de um som.

Podemos também, sem identificar a fonte no sentido da natureza de um objeto causal, seguir com precisão a história causal do som considerado em si mesmo. Por exemplo, podemos acompanhar a história de uma coceira (acelerada, precipitada, atenuada, etc.) e perceber as mudanças de pressão, velocidade e amplitude, sem saber em nenhum momento o que é que se coça contra o quê.

1.3 A fonte é um foguete de vários estágios

Enfim, não devemos esquecer que um som freqüentemente apresenta mais de uma fonte ao mesmo tempo. Pensemos no frêmito produzido pela caneta-tinteiro com que escrevo este rascunho de texto: as duas fontes do som são a caneta e o papel – mas também o gesto de escrever e nós quando escrevemos e assim por diante. Se este som for gravado e escutado através de uma fita, a fonte do som também será o alto-falante e a fita magnética sobre a qual ele foi fixado e etc.

No cinema, vale observar, a escuta causal é constantemente manipulada de várias formas pelo contrato áudio-visual, notadamente pela utilização da sincrese. Trata-se, com efeito, na maior parte das vezes, não das causas primordiais dos sons, mas de causas secundárias a que aderimos por sugestão.

  1. Segunda atitude de escuta: a escuta semântica  

Chamamos de escuta semântica aquela que se remete a um código ou linguagem para interpretar uma mensagem: a linguagem falada, claro, mas também alguns códigos como o Morse.

Esta escuta, de funcionamento extremamente complexo, se tornou objeto de pesquisa da lingüística e foi a mais estudada. Percebeu-se, sobretudo, que ela é puramente diferencial. Um fonema não é escutado por seu valor acústico absoluto, mas através de um sistema total de oposições e diferenças relativas.

Assim, nesta escuta, diferenças importantes de pronúncia, portanto sonoras, podem não ser percebidas se não forem pertinentes à fonologia de uma língua determinada. A escuta lingüística em francês, por exemplo, é insensível a certas variações importantes na pronúncia do fonema “a”.

Evidentemente, a escuta causal e a escuta semântica podem se exercer paralela e independentemente sobre o mesmo encadeamento de sons. Escutamos ao mesmo tempo o que alguém nos diz e como o diz. Aliás, a escuta causal está para a escuta semântica um pouco como a percepção grafológica de um texto está para a sua leitura.

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