CONSIDERAÇÕES SOBRE O FUNDAMENTO MORAL DA PROPRIEDADE
Artigos Científicos: CONSIDERAÇÕES SOBRE O FUNDAMENTO MORAL DA PROPRIEDADE. Pesquise 862.000+ trabalhos acadêmicosPor: Luisgraciano • 25/4/2014 • 6.708 Palavras (27 Páginas) • 560 Visualizações
KRITERION, Belo Horizonte, nº 115, Jun/2007, p. 219-234.
* Professor da Universidade Federal de Uberlândia – UFU. Artigo recebido em outubro de 2006 e aprovado
em abril de 2007.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O FUNDAMENTO
MORAL DA PROPRIEDADE
Luiz Felipe Netto de Andrade e Silva Sahd*
felipesahd@yahoo.com.br
RESUMO Para Hugo Grotius a propriedade era originalmente coletiva,
e os homens tinham, de comum acordo, decidido dividi-la, o que havia
feito nascer a propriedade privada. Como a propriedade privada devia ser
garantida pelo governo, ela só podia ser uma emanação deste. O problema
dessa análise, para John Locke, era que ela era perfeitamente compatível
com o absolutismo, pois um monarca podia garantir essa propriedade. Como
Locke funda a propriedade sobre a lei natural, sua teoria da prioridade
refuta, ao mesmo tempo, as teorias de Sir Robert Filmer e de Grotius e Samuel
Pufendorf. A teoria da propriedade de Locke garante, por fim, a liberdade dos
indivíduos.
Palavras-Chave Propriedade Privada; Lei Natural; Soberania;
Contrato; Liberdade; Absolutismo
ABSTRACTAccording to Hugo Grotius, property was originally
collective, and men had commonly agreed to divide it. Consequence: private
property. And private property should be guaranteed by the government,
therefore, it had to emanate from it. To John Locke, the problem of such an
analysis is that it is perfectly compatible with Absolutism, since the king could
guarantee, in these terms, property as well. John Locke founds property on
natural law, and doing so, refutes simultaneously Samuel Pufendorf’s, Hugo
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Grotius’ and Robert Filmer’s theories about the same subject. John Locke’s
theory of property guarantees individual freedom.
Keywords Private Property; Natural Law; Sovereignty; Contract;
Freedom; Absolutism
Ao estudar a crítica de John Locke ao Patriarchade Sir Robert Filmer,
apanhamos o essencial da argumentação lockeana sobre os fundamentos
morais da propriedade. Nas páginas do Primeiro Tratado sobre o Governo,
Locke demonstra que a doação do mundo, contida no Gênesis I, 28-29, foi
realizada em benefício de toda a humanidade. A descrição da propriedade
originária supõe a sua definição como um direito em comum que pertence a
todos os membros da espécie humana: “O que quer que Deus tenha outorgado
através das palavras dessa concessão (Gn 1, 28), não o outorgou para Adão
em particular, à exclusão de todos os demais homens: qualquer que tenha sido
o domínio que lhe outorgou mediante tal concessão, não se tratava de um
domínio privado, mas um domínio em comum com o restante da humanidade.”
1
Com essa manobra, Locke destruiu a imagem monárquica e autoritária que
descrevia o mundo como um domínio privado de Adão e seus herdeiros, e a
substituiu por outra igualitária que a mostrava, nas palavras de John Dunn,
“como pertencente a ninguém, mas disponível a apropriação de todos”.
2
Mas qual é o traço característico dessa propriedade em comum de que
fala Locke? Como sustenta James Tully, essa propriedade original é um
direito que todos os homens possuíam: um direito de uso exclusivo; um
direito a algo que pertence a todos e está subordinado ao cumprimento de uma
finalidade concreta: a sobrevivência e o bem-estar de cada homem e de toda
a espécie humana.
3
Mais exatamente, essa propriedade comum que desfruta a
humanidade está destinada de antemão a facilitar o cumprimento do dever de
perpetuação e bem-estar dos homens. John Locke diz:
1 LOCKE, 1998, p. 231.
2 DUNN, 1988, p. 67.
3 Cf. TULLY, 1980, p. 61.
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(...) Deus, que determinou à humanidade crescer e multiplicar-se, teria, antes,
concedido a todos um direito de fazer uso do alimento, do vestuário e outras
comodidades da vida de cujos materiais ele os proveu com tal abundância.
4
A idéia que fundamenta a descrição de Locke do domínio originário da
humanidade é simples, ela remete à temática tradicional da communitas rerum
ou dominiumtomista: um domínio em comum que os homens desfrutavam
sobre o mundo e que era contraposto a possidere comuniterou proprietas,
remetente àquela esfera dominical que permitia a cada homem fazer uso
das coisas para
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