O Pote da Favela do Pirambu
Por: Paduasan • 19/8/2024 • Abstract • 532 Palavras (3 Páginas) • 38 Visualizações
O pote matava a sede de quem era e de quem não era da “Casinha da Praia”. Durante certo tempo ele ocupou um canto na sala de visitas; depois, quando a “Casinha” deixou de ser “casa" e se tornou “residência”, ele foi levado para a cozinha e ganhou assim mais intimidade e recato. No período em que esteve na sala de visitas, lugar de recepção dos que chegavam e de despedida dos que iam, o pote foi um objeto que não conhecia fronteiras entre a intimidade e a rua. Ele ficava nesse espaço de todos e de ninguém, assim como nossas vidas. A água, coletávamos para enchê-lo, vinha do único chafariz no quarteirão onde a casa era situada; mesmo contaminada, não apresentava tanto perigo, ela matava nossa sede, refrescava nossos corpos, mas não nos matava. Talvez porque, nesse tempo, se disséssemos a uma montanha, “lança-te ao mar”, provavelmente ela o faria. Como bem mostra a foto da capa, o pote começou a expor as marcas do tempo, em conluio com a maresia, que desenhava em cores verde, cinza e ocre as mudanças irreparáveis. Esse mesmo tempo mexeu com nossos pensamentos e valores, à força de encontros e desencontros, no calor das tramas e dos dramas, nossos e dos moradores da Travessa São José, na favela do Pirambu. Certo dia, devido a um movimento descuidado e brusco de mãos sem fortuna, nosso pote quase quebrou; rachou, mas logo foi consertado com cimento. A permanente corrosão da maresia, pouco a pouco, consumiu a espessura de suas paredes, cujo barro ocre claro original, já escurecido, umedecido pela água que entrava e saía todos os dias, mostrava a cor do uso, da experiência aristotélica, como se o pote estivesse sendo tentado pela fruta do bem e do mal. Hoje resta explicado por que não parávamos de ter sede... Como aplacar a aridez dos vários desertos existenciais e da pobreza social, da miséria humana e de nossos desejos de jovens? Como aplacar a sede do jejum de nós mesmos, a qual não podíamos negligenciar? Com o tempo, essa cor original do barro cedeu lugar a um fungo verde, que das paredes do pote irradiou para nossos espíritos. O pote já não era mais o mesmo do início, assim como nós já não éramos mais também. A água já não tinha o gosto do barro, mas de água. A vocação de um velho pote é não falsear o gosto da água; nesse ponto ele havia cumprido o seu papel. Afinal, não estamos aqui para sempre, mas por breves momentos, marcados por um fim iniludível, preciso e único. O pote se esvaziava e era preciso que o enchêssemos novamente, mas é impossível fazê-lo para sempre. No entanto, na urgência de sairmos da caverna, descobrimos que esquecemos o pote em algum lugar, como se um espírito zombeteiro nos tivesse cegado ou corrompido nossa memória. Não se sabe que fim teve o pote. Agora ele é como a lâmpada do gênio dos três pedidos. Quem o encontrar, é aconselhável que faça os pedidos com sabedoria. E um deles poderá ser o de despertar Clio, a musa da História. A foto do pote é um indício de que começamos essa expedição.
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