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O avesso da memória

Por:   •  14/9/2017  •  Resenha  •  2.159 Palavras (9 Páginas)  •  383 Visualizações

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Disciplina de Brasil I (seg/qua 8h-10h)

Prof.: André Cabral Honor

Resenha do livro: FIGUEIREDO, Luciano. O Avesso da Memória: cotidiano e trabalho da mulher em Minas Gerais no século XVIII. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília, DF: Edunb, 1993.

Em seu livro “O Avesso da Memória: cotidiano e trabalho da mulher em Minas Gerais no século XVIII”, o autor Luciano Figueiredo, contando com um imenso arcabouço teórico e empírico, faz uma análise minuciosa de documentos, com destaque às devassas eclesiásticas. Sendo um dos pioneiros no exame de série documentais e acervos mineiros desconhecidos até então, sua pesquisa possibilitou um novo olhar sobre a sociedade mineira do “Século do Ouro” complementando os trabalhos de diversos autores anteriores e se tornando ponto de referência obrigatório para o estudo de Minas Gerais.

A partir disso, traça um panorama da sociedade mineira setecentista no Brasil dando ênfase à atuação da mulher negra e mulata − bem como sua relação com tal sociedade − e às consequências do rápido crescimento do contingente populacional decorrente da exploração aurífera, e trazendo a cena diversos temas e personagens inovadores na historiografia.

Segundo o próprio autor, o projeto de pesquisa da obra foi motivado pelo interesse em reconstituir os caminhos trilhados pela condição feminina no país, que, por um longo período, foi um assunto deixado em segundo plano. Esse árduo trabalho empreendido por ele se da a partir da exposição de uma complexa rede de relações, vinculadas às especificidades da sociedade mineradora, em que se insere a figura da mulher, permitindo assim, uma profunda reflexão sobre o papel da mulher e a desconstrução de estereótipos de submissão e passividade atribuídos e reforçados ao longo da história feminina.

O autor inicia o texto apresentando um quadro geral da sociedade mineradora, caracterizada por ele como peculiar dentro do contexto agrícola brasileiro: as Minas Gerais possuíam uma população majoritariamente urbana. Portanto, diferentemente das grandes propriedades agrícolas litorâneas, contou com o surgimento de uma camada média, dedicada a uma grande variedade de profissões urbanas de trabalho autônomo – mercadores, boticários, advogados, médicos, burocratas, tropeiros, barbeiros, entre outros ofícios.

Faz-se uso do conceito de “desclassificados sociais” para referir-se a tal camada média: indivíduos marginalizados que se encontram fora dos extremos da organização colonial (senhor e escravo), com destaque para as escravas e as negras e mulatas libertas. Ao longo do texto procurará mostrar como tais indivíduos se enquadravam na lógica do sistema colonial e ressaltar a profunda miséria em que viviam.

No primeiro capítulo, denominado “Comércio feminino e tensão social”, abordou-se o desenvolvimento de um pequeno comércio de gêneros básicos e não só a notável atuação, como a dominação desse ofício pela população feminina. Essas mulheres ficaram conhecidas como vendeiras (em estabelecimentos fixos) ou “negras de tabuleiro” (comerciantes ambulantes). Esse comércio se estabeleceu principalmente nas áreas de exploração minera − locais distantes do centro politico-administrativo e nos quais se encontrava uma grande concentração de potenciais clientes. Tal atividade comercial, apesar de essencial para o abastecimento precário das vilas com gêneros básicos e fonte importante de recursos para a Metrópole, era vista com maus olhos pelos senhores de escravos, pela administração colonial e pela Igreja.

Não é difícil imaginar porque a presença das vendas, principalmente perto das lavras, era motivo de temor e condenação por parte da Coroa e das autoridades locais. As vendas eram locais atraentes para escravos, forros e outros membros das camadas populares à procura de quitutes, aguardente, fumo, batuques e prostitutas; encontro de escravos fugidos; planejamento de fugas e revoltas; abastecimento dos quilombos e operações de contrabando de ouro e diamantes.

Esses elementos combinados muitas vezes geravam brigas, mortes e revoltas, causando danos físicos aos escravos e prejudicando o andamento dos trabalhos de mineração. As negras de tabuleiro e as vendeiras eram as principais responsabilizadas pela desordem social causada nesses ambientes, sendo acusadas de desviar os jornais (pagamento de uma quantia fixa diária ou semanal) que deviam ser pagos pelos escravos aos proprietários, de contribuir para o contrabando e pela prática de prostituição, bastante frequente e importante atrativo de clientes.

As constantes queixas dos proprietários às autoridades coloniais acerca dos tumultos causados pelo funcionamento das vendas provocaram, ao longo de todo o século XVIII, medidas reguladoras e punitivas sobre esse comércio por parte da Coroa: proibição da presença das vendas nas proximidades das zonas de mineração aurífera, fiscalização e regulação do público frequentador, fixação de um horário máximo para o funcionamento, exigência de um alvará para o funcionamento do estabelecimento e punições para aqueles que desobedecessem tais medidas tais como multas, confisco dos produtos, prisões e até punições físicas.

No entanto, a atuação nesse tipo de comércio varejista era uma das poucas alternativas acessíveis de mercado de trabalho para os contingentes femininos pobres da sociedade colonial e imprescindível para sua sobrevivência, com destaque para a população de negras forras. Sendo assim, tornou-se quase impossível impedir seu funcionamento, provocando o surgimento de inúmeras vendas clandestinas. Além disso, a pobreza e o limitado rendimento trazido pelo comércio submetiam essas mulheres e suas filhas ao exercício da prostituição como forma de complementação da renda e pagamento dos altos impostos cobrados pela Coroa.

O meretrício tornou-se uma atividade quase que intrínseca à realidade da sociedade mineradora e ao contexto escravista, atingindo proporções absurdas. Além das negras forras, era comum os proprietários fazerem uso das suas escravas como prostitutas. Sendo assim, como ressalta acertadamente o autor, a prostituição seria uma das expressões máximas da pobreza e da exploração sexual e econômica a que foram submetidas as mulheres ao longo da história do Brasil, em particular nas Minas Gerais do século XVIII. Sua outra face seriam as constantes violências sexuais cometidas por seus proprietários e o uso de seu corpo para a reprodução da força de trabalho, além dos constantes episódios de abusos de poder exercidos por membros da administração colonial e por autoridades eclesiásticas, protegidos pela impunidade dos cargos, contra mulheres negras e brancas.

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