Analise do Texto Caso do Vestido
Por: Rodolfo Moreira • 12/3/2017 • Resenha • 1.147 Palavras (5 Páginas) • 11.546 Visualizações
Análise do Texto “Caso do Vestido”
“Caso do Vestido” é um poema que denuncia o machismo exacerbado, beirando a brutalidade, na sociedade patriarcal. Composto por setenta e cinco dísticos de versos regulares, este poema tem uma estrutura dramática (teatral), já que apresenta personagens, diálogos, e progressão de enredo, com clímax e desfecho. Vale a reflexão de que esse poema narra cenas de um possível cotidiano. As duas estrofes iniciais, são a chave para a compreensão da narrativa “Nossa mãe, o que é aquele vestido, naquele prego?”. Envolve a história de uma mulher submissa, traída pelo marido, relembrada pelos questionamentos das filhas acerca do vestido pendurado à parede. Além das perguntas das filhas, é notável o desejo da narradora de narrar o fato. O poema é a clássica visão construída pelo poeta onde vemos os reflexos da vida, os costumes e os dramas sociais. O narrado se passa como se a ficção correspondesse a uma reprodução verídica do que aconteceu. Daí a pergunta: É realidade ou ficção? Existem traços que, junto a locuções de determinadas regiões e grupos sociais, dão ao poema um tom linguístico arcaico, de ritmo fechado, pausado e controlado, “Minhas filhas, escutai, palavras de minha boca.(...); Olhei para vosso pai, os olhos dele pediam.(...); Eu não tinha amor por ele, ao depois amor pegou.(...) e quede graça de sorriso, quede colo de camélia?” Em todo o poema há uma atmosfera de expectativa e tensão, seja pela terrível história que a mãe vai relatar, seja pela iminente chegada do pai “Minhas filhas, boca presa. Vosso pai evém chegando”. Sofridamente, a mulher conta a loucura do marido que se apaixonou por uma “dona de longe”, “Era uma dona de longe, vosso pai enamorou-se”. Podemos afirmar que o vocabulário empregado no texto configura relações sociais e, sobretudo, os papéis de cada membro familiar. A “dona”, no entanto, recusa o assédio. Irado e abatido, o marido pede a sua própria esposa que fosse implorar o amor da estranha. Ao lembrar-se do ocorrido, no presente, a mãe se emociona e vacila. As filhas lhe oferecem um lenço para que limpe as lágrimas e continue o relato “Nossa mãe, por que chorais? Nosso lenço vos cedemos”. A “dona” diz que não ama aquele homem, mas se a mulher insistisse, ficaria com o marido dela “Eu não amo teu marido, me falou ela se rindo; mas posso ficar com ele, se a senhora fizer gosto, eu fiz meu pelo-sinal, me curvei... disse que sim”. A partir deste momento a mãe aspira à morte, mas não morre. Vende seus objetos de estimação “... meus anéis se dispersaram, / minha corrente de ouro / pagou conta de farmácia.” precisa sustentar as filhas “... costurei, lavei, fiz doce,” envelhece “... fiquei de cabeça branca, / perdi meus dentes, meus olhos,”. Até que um dia a “dona” reaparece, sozinha e abandonada. Vem pedir perdão à mulher que ela tanto ferira e deixar-lhe, como recordação de tamanha perversidade, o último vestido de luxo que ainda possuía. “Um dia a dona soberba, me aparece já sem nada”. A mãe olha para esta “dona” destruída em sua beleza, não responde ao seu rogo e pendura o vestido no prego da parede para que ele ficasse ali, como memória dos tormentos. Partindo da ‘protagonista’, veremos que o termo ‘mãe’ aparece sempre relacionado ao sujeito lírico praticamente em todo o poema; ela é tratada por ‘mulher’ a apenas quando o marido, ao voltar para casa, lhe dá uma ordem, à qual atende prontamente “mal reparou no vestido e disse apenas: Mulher, põe mais um prato na mesa”. Para termos uma ideia desta predominância, o termo ‘mãe’ é empregado da primeira à sexagésima sétima estrofe, designação indicadora de uma prevalência da função ‘mãe’, única possibilidade de existência dentro do contexto familiar e social presente no poema, a qual é substituída, às vezes, por outra bem valorizada naquela trama social “de ofender dona casada pisando em seu orgulho.” A consequência desta redução existencial a um papel familiar aparece, por contraste, com a negação de sua sexualidade, apagada ao máximo; inexistem referências positivas ou construtivas a seu corpo, ao modo de vestir, andar, falar, olhar. A amante, de modo contrário, é descrita no poema em detalhes, recebendo diversos adjetivos ao longo do texto sempre ligados à sua sensualidade, ou seja, seu corpo, traços físicos, vestimenta, fato que não impedirá que sofra nas mãos do homem. O marido, por sua vez, recebe diversas denominações que vão além desta função de acordo com a situação em que ele esteja. Assim, a mulher, enquanto narra a história às filhas, não chama o homem de ‘marido’ ou ‘esposo’ mas sempre de ‘pai’, o que mostra a demarcação de funções sociais; estas se sobrepõem a qualquer traço de relação amorosa entre pai e mãe, não havendo no poema qualquer manifestação de carinho por parte do homem em relação à mulher. A palavra ‘marido’ aparece na boca da amante de modo muito mais dinâmico, a qual, antes de se apaixonar, tem consciência do risco de se envolver com o sexo oposto, dadas as cartas marcadas entre os dois gêneros. É interessante notar que “a dona de longe” chama-o de “marido” quando fala com a mulher e, em seguida, o chama de “homem”. Há uma clara ciência de que “marido” é um termo referente àquela família, enquanto que “homem” é o ser fora daquele contexto. Aqui a amante mostra um erotismo masoquista “Mas posso ficar com ele, se a senhora fizer gosto, só pra lhe satisfazer” que se mistura à certeza de que homens trazem tristeza às mulheres “não por mim, não quero homem”. Nas relações familiares e conjugais deste contexto conservador, marcadas por assimetria e autoritarismo entre homens e mulheres, a vida da ‘mãe’, presa a regras e valores estratificados, aparece diretamente concretizada na própria forma do poema, controlada em seus recursos enunciativos. O poema fecha-se em círculo, com a volta ao presente ocorrendo simultaneamente à chegada do pai, o esplendor lírico de Caso do vestido decorre de inúmeros outros fatores, da capacidade de resignação feminina e dessa misteriosa força vital que impede a mãe de sucumbir, da pungente e ilimitada paixão da mulher que a arrasta da suprema humilhação ao supremo perdão, da pequena mas genial vingança que consiste em colocar o vestido da “dona” na parede, onde permanecerá como registro perpétuo da perfídia do marido, da crispada expectação que envolve toda a narrativa da mãe, continuamente ameaçada pela chegada do pai, da estrutura teatral que sedimenta o poema, já referida anteriormente, da formulação do poema em dísticos de versos regulares que emprestam ao mesmo um ritmo recitativo, da utilização da linguagem coloquial, enriquecida por um processo estilístico pleno de sugestões, eufemismos, metáforas, elipses, anáforas, aliterações, antíteses e rimas internas. Assim, a espontaneidade da fala da mãe e dos diálogos com as filhas em nenhum verso cai na banalidade, risco de todo o poema que elege o cotidiano como motivo.
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