DIDATIZAÇÃO DO DISCURSO INDIRETO LIVRE: UM OLHAR SOBRE A HETEROGENEIDADE ENUNCIATIVA MOSTRADA NÃO MARCADA
Por: Raimundo Filho • 18/3/2020 • Artigo • 4.390 Palavras (18 Páginas) • 167 Visualizações
DIDATIZAÇÃO DO DISCURSO INDIRETO LIVRE: UM OLHAR SOBRE A HETEROGENEIDADE ENUNCIATIVA MOSTRADA NÃO MARCADA[1]
Adriana da Silva Araújo Inácio
José Raimundo dos Santos Filho
Universidade Federal de Sergipe
Resumo: O presente trabalho visa analisar a heterogeneidade enunciativa mostrada não marcada, com representação no discurso indireto livre, no conto A decisão, de Lydia Fagundes Telles. Para isso nos fundamentaremos nas contribuições de Bakhtin/Volochinov (2006) no que cerne à concepção de dialogismo no discurso citado e na definição de Authier-Revuz (1990) sobre a heterogeneidade enunciativa. Com o objetivo de viabilizar o aprimoramento do pensamento crítico, por parte de estudantes do 9º ano do ensino fundamental, em relação aos elementos que habitam a esfera extraverbal, é que traremos para esse estudo uma análise dos aspectos interdiscursivos, ou seja, da interrelação das vozes do discurso, que poderão orientar a atividade docente dos profissionais de língua portuguesa.
Palavras-chave: Didatização do discurso indireto livre. Dialogismo, Heterogeneidade mostrada não marcada. Pensamento crítico.
Abstract: This study aims to analyze the enunciative heterogeneity displayed not marked, represented in free indirect speech in the tale The decision, from Lydia Fagundes Telles. For this we will base on the contributions of Bakhtin/Volochinov (2006) in the heart of a new understanding of dialogism in that speech and in the definition of Authier-Revuz (1990) about an enunciative heterogeneity. In order to facilitate the improvement of critical thinking by students from the ninth grade, the elements that inhabit the extra verbal sphere, is that we will bring to this study an analysis of the interdiscursive aspects, in the words, the interrelation of the speech voices that may guide the teaching activity of teachers of Portuguese language.
Keywords: Didactization of free indirect speech. Dialogism. Heterogeneity displayed not marked. Critical thinking.
INTRODUÇÃO
Atestamos na nossa prática pedagógica que o discurso citado é apresentado aos alunos desde cedo, logo nas séries iniciais, por meio do discurso dialogado, o direto. Esse acesso viabiliza não só seu reconhecimento como também serve de estímulo à leitura, uma vez que a maioria das histórias infantis o adota em sua composição. Entendemos que essa escolha não se concebe de forma aleatória, a opção pelo discurso direto se deve ao fato de ele tornar a narrativa mais dinâmica, viva e, por consequência, a leitura mais fluente. O discurso indireto é solicitado aos discentes mais tardiamente, quando estes já vivenciam as práticas da leitura e escrita com desenvoltura, com amadurecimento da técnica, posto que por meio dele o narrador não reproduz fielmente a voz dos personagens, marca do discurso direto, integra-se às personagens ao apresentá-las com suas palavras.
A construção de sentidos nos textos literários – constituídos pelo discurso direto ou indireto – ainda representa uma das dificuldades vivenciadas por nossos alunos, matriculados em duas escolas públicas diferentes de Sergipe. Somado a isso, quando solicitamos leituras de narrativas com citação de discurso indireto livre, a situação agrava-se. Com uma composição desprovida das marcações que introduzem as vozes no discurso, o indireto livre, de forma imponente, coloca narrador e personagem no mesmo espaço, sem delimitações que orientem a interpretação do fluxo narrativo de forma linear, estável. Assim, o sujeito leitor é requerido a fazer uma leitura mais atenta, imaginativa, a fim de estabelecer na sua interpretação o sentido que o autor construiu para obra. Bakhtin/Volochinov (2006) defende que o escritor que opta por utilizá-lo, dirige-se à imaginação do leitor:
O que ele procura, não é relatar um fato qualquer ou um produto do seu pensamento, mas comunicar as suas impressões, despertar na alma do leitor imagens e representações vividas. Ele não se dirige à razão, mas à imaginação. Apenas a inteligência que raciocina e analisa pode tomar a posição de que o autor é quem fala no discurso indireto livre; para imaginação viva, é o herói que fala. A imaginação é a mãe dessa forma (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2006, p. 187).
Entendemos que a imaginação se compõe de vivência social, de experiências com outros discursos, ideológicos, políticos, religiosos... Assim, quando aos alunos é proposta uma atividade de interpretação das vozes do discurso indireto livre, para Bakhtin, organiza-se uma situação puramente imaginativa, e percebemos que o diálogo aluno/obra tem ficado bastante limitado. Atribuímos esse diagnóstico à falta de repertório e de vínculo interativo com esse tipo de estrutura narrativa, que ainda é percebida com estranheza.
As intervenções sem “aviso” da voz das personagens na voz do narrador motivaram muitos estudos, entre os quais selecionamos como base para este artigo as contribuições de Bakhtin/Volochinov (2006), no que cerce à relação entre contexto narrativo e o discurso citado; o estudo desenvolvido por Authier-Revuz (1990) à luz das Teorias da Enunciação de linha francesa, que produz uma definição da heterogeneidade enunciativa no discurso citado.
Inicialmente, traremos uma abordagem acerca da concepção do “outro” no discurso, destacando o conceito de dialogismo e da heterogeneidade enunciativa com marca implícita. A análise discursiva do conto A decisão[2] virá em seguida, e último tópico do estudo apresenta uma proposta pedagógica para reflexão sobre o assunto em questão. Nela, iremos evidenciar os processos de referenciação socioideológica, bem como sinalizaremos como as vozes argumentativas, presentes na obra, encontram-se constituídas de posições ideológicas que nos fazem construir uma leitura crítica sobre a mensagem transmitida. Por fim, iremos explicitar, nas considerações finais, a relevância dessa reflexão.
2. DIALOGISMO E HETEROGENEIDADE ENUNCIATIVA
Para Bakhtin (2002), discurso é
a língua em sua integridade concreta e viva e não a língua como objeto específico da linguística, obtido por meio de uma abstração absolutamente necessária de alguns aspectos da vida concreta do discurso. Mas são justamente esses aspectos, abstraídos pela linguística, os que têm importância primordial para nossos fins (BAKHTIN, 2002, p. 181).
Bakhtin enxergou a linguagem como um constante processo de interação mediado pelo diálogo e não apenas como um sistema autônomo. Segundo essa concepção, a língua só existe em função do uso que locutores (quem fala ou escreve) e interlocutores (quem lê ou escuta) fazem dela em situações de comunicação. O ensinar, o aprender e o empregar a linguagem passam necessariamente pelo sujeito, o agente das relações sociais e o responsável pela composição e pelo estilo dos discursos. Esse sujeito se vale do conhecimento de enunciados anteriores para formular suas falas e redigir seus textos. Além disso, um enunciado sempre é modulado pelo falante para o contexto social, histórico, cultural e ideológico.
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