PECADO E CASTIGO NO CONTO SAPATINHOS VERMELHOS
Por: anedri76 • 3/1/2023 • Monografia • 3.598 Palavras (15 Páginas) • 135 Visualizações
PECADO E CASTIGO NO CONTO SAPATINHOS VERMELHOS
Adriane Pereira Dantas (UFS)
1 Introdução
A partir dos anos cinqüenta, com o advento da psicanálise, vê-se surgir o processo de remitologização na literatura quando se iniciaram as interpretações dos processos psíquicos relacionados ao mito. Alguns mitos e símbolos relacionam-se com a transição infância-adolescência, o amadurecimento físico-psíquico, a experiência da vida e da morte como um ciclo natural da vida.
Este trabalho procura analisar a conotação mítico-simbólica presente no conto Sapatinhos Vermelhos, ou Os Sapatos Vermelhos, do dinamarquês Hans Christian Andersen. No intuito de revelar assuntos ligados a desejo, morte, violência, ritos de passagem, miséria e dor. Far-se-á uma relação das metáforas e encenações presentes no conto com base na comparação de alguns símbolos estudados por Jung. Relacionando a dança da personagem principal ao ritual da deusa hinduísta Kali (KEMPTON, 2009) buscar-se-á ressaltar a relação entre caos, morte e o despertar. Apoiado nos estudos do mito (CAMPBELL, 1990), da psicanálise dos contos de fadas (BETTELHEIM, 2010) e de Nelly Novaes Coelho (2003), a qual, criativamente expõe ideias arquetípicas do ser humano, veremos que os contos de fadas transportam o leitor a um mundo mágico, um universo irreal paralelo ao real.
O conto Os Sapatinhos Vermelhos narra a história de uma menina pobre, “bonitinha e delicada” que andava descalça pela floresta. Karen, como era chamada, tinha obsessão por sapatos vermelhos e por causa deles seu mundo entra em confusão. O conto retrata os costumes da sociedade da época e a influência do pensamento religioso, no que diz respeito à renúncia e a mortificação do ego. Diferente dos Contos de Fadas tradicionais que trazem esperanças para o futuro e sempre termina em final feliz, essa história quebra de certa forma esse tradicionalismo ao trazer temas como liberdade-opressão, desejo-castigo e um final típico dos mitos.
2 O CONTO OS SAPATOS VERMELHOS
Ao levar-se em conta que “a maioria dos contos de fadas se originou em períodos em que a religião era uma parte muito importante na vida” (BETTELHEIM, 2010, p. 22), Andersen não se diferencia de qualquer outro autor no contexto de sua época. Como analisa Coelho, Andersen estava “sintonizado com os ideais românticos de exaltação da sensibilidade, da fé cristã, dos valores populares, dos ideais de fraternidade e da generosidade humana” (2003, p. 24).
Karen, personagem principal é uma menina pobre que, após a morte de sua mãe é adotada por uma senhora rica. Ela consegue um sapato novo vermelho brilhante e na sua crisma inaugura seu objeto de desejo, mas encantada pela beleza e poder de sedução que ele desperta, ela não presta atenção em mais nada ao seu redor. Na igreja há um velho soldado de muletas que sugestiona sobre seus sapatos e, após isso, eles começam a dançar involuntariamente até um dia o qual ele dança sem mais parar, e, grudado aos seus pés, deixa a personagem em frangalhos, a qual, no desespero, por não conseguir tirá-los, pede ao carrasco da aldeia para decepar os próprios pés.
Após, ela se vê só, sem mãe e sem tutora. Para sobreviver ela vai trabalhar de faxineira na igreja, ao fim, ela morre no seu quarto após um encontro epifânico com Deus. Ao escrever Os Sapatos Vermelhos, Andersen fala de um pecado e um castigo, fala de um objeto de desejo e de uma maldição por conta de seu uso proibido: dançar sem parar para sempre. Para escapar desse fim tem-se um impasse e uma decisão drástica: decepar os próprios pés. Segundo Riscado (2005), vê-se que:
“A identificação dos defeitos da sociedade desempenha um papel importante nos contos de Andersen e ele não se exime a uma revelação que decorre em grande parte, da sua experiência de vida; colocada no meio de dois lugares e de dois meios sociais incompatíveis, não raras vezes, a personagem anderseniana (tal como o próprio autor) fica separada de todos para sempre, carente de afetos, de reconhecimento, marcada pela solidão” (p.17)
2.1 A simbologia em Os Sapatos Vermelhos
A ênfase dada ao vermelho no conto se estende desde o título ao longo da narrativa. O vermelho, segundo o Dicionário de Símbolos é a cor da alma, é o símbolo das pulsões sexuais, da vida e da morte, da libido e dos instintos passionais. Para Chevalier, “o vermelho se torna perigoso como símbolo de poder, se não é controlado; leva ao egoísmo, ao ódio, à paixão cega, ao amor infernal” (1996, p.946), pois, a fascinação por essa cor leva aos impulsos humanos mais profundos, seja da paixão e libertação à opressão.
Quando a menina ganha um par de sapatos vermelhos, uma nova postura diante da vida está estabelecida, já que antigamente o calçado era um símbolo de liberdade, pode-se entender o fato de Karen não usar sapatos (em Roma os escravos andavam descalços) enquanto estava sob o jugo materno. Segundo Chevalier, “o calçado é o signo de que um homem pertence a si mesmo, de que se basta a si próprio e é responsável por seus atos”. (1996, p.165). Os sapatos representam dessa forma, a emancipação da garota e o símbolo de afirmação social.
Vê-se também que em certas culturas camponesas era comum na idade média presentear com algum objeto vermelho a menina que menstruasse pela primeira vez, dessa forma, esse calçado representa também o nascer do amadurecimento sexual. Quando Karen experimenta esse fascínio sua obsessão vai relacionar-se ao mito grego de Perséfone, que provou da romã, fruto sagrado proibido pelos iniciados, “símbolo da fecundidade que leva em si a faculdade de fazer descer as almas à carne” (CHEVALIER, 1996, p. 788).
Esse objeto vermelho vai instigar toda a trama. Essa é a cor que simboliza as emoções violentas, incluindo as sexuais, portanto, percebe-se, ao interpretar os símbolos dessa história que a personagem passa por uma confusão de sensações ao ser agredida por não saber lidar com os impulsos sexuais e nem tomar decisões.
O fetichismo é um valor presente na história, porque a menina utiliza-se desse sapato para chamar a atenção. Conforme Latour, o fetiche é o valor irreal e supersticioso que alguém dá a um objeto, a palavra “fetichismo” agrega a palavra latina “fatum”, que conota “destino”, palavra que dá origem ao substantivo fada (fée), como adjetivo, na expressão objeto-encantado (objet-fée). (2002, p.17). Quando essa menina usa esse objeto é como se explorasse uma nova persona escondida, ou mesmo, nascida dentro dela. O fetichismo tem conotação sexual, é um objeto parcial e não representa quem está por trás dele mostrando uma existência limitada ao ciclo auto-devorador do desejo de ser-conhecer e da busca da auto-satisfação.
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