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Questões A Cerca Da Farsa "Quem Tem Farelos?", De Gil Vicente

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Por:   •  24/6/2014  •  2.533 Palavras (11 Páginas)  •  2.173 Visualizações

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Questões a cerca da farsa “Quem tem farelos?”, de Gil Vicente

A farsa “Quem tem farelos?”, de Gil Vicente, retrata questões cotidianas, que giram em torna da figura do escudeiro - na peça, o jovem Aires Rosado. Além dele, aparecem mais quatro personagens: os criados Apariço e Ordonho, a jovem Isabel e sua velha mãe.

Desde o início até o fim da farsa, se passa pouco menos de um dia: dessa forma, o tempo da representação se desencontra do tempo real da encenação. Para que o espectador perceba a passagem do tempo distinta, que é a da ficção, se fazem necessárias marcas textuais. O primeiro diálogo, entre Apariço e Ordonho, passa-se provavelmente ainda de dia, período em que Aires Rosada tende a ficar trancado em casa, por não possuir vestes adequadas para sair à luz do dia - como apresentado nos versos 50-53: “Vem alta noite de andar, de dia sempre encerrado: porque anda mal roupado, não ousa de se mostrar”. Quando tornam a casa e encontram Aires, há um pequeno diálogo e logo saem para rua, pois já é noite. Isso fica subentendido, não só pelo fato do amo sair a rua, mas também pelo comentário de Apariço de que Isabel “já estará na cama” v. 214. Vão então até a frente da casa de Isabel, onde Aires fala para a moça na janela. Durante esse longo diálogo (onde não ouvimos a voz da moça, e apenas podemos deduzir o que ela o diz pela forma como responde) aparecem algumas marcas temporais. No verso 345, Aires diz “mea-noite deve ser”, e, logo depois, Apariço fala que “os galos cantam já”. A próxima referência ao tempo se dá apenas no fim da farsa, depois que o escudeiro partiu e a velha teve um diálogo com sua filha Isabel. A moça, então, diz que “vai sendo de dia” v.534, encerrando a peça novamente com o sol.

Muito embora durante a peça mudem-se cenários e alternem-se personagens, não há aqui a divisão clássica em Cenas e Atos, apenas acontecimentos que se sucedem até que a farsa termina. Eu vejo, na farsa, quatro principais momentos diferentes: no primeiro, o cenário é a rua e os personagens, Apariço e Ordonho; no segundo, acrescenta-se Aires Rosado e o cenário é o interior da casa; no terceiro, o cenário volta a ser a rua, e as personagens são Apariço, Aires Rosado, e Isabel, cuja presença é invisível, e só se realiza pelas respostas do escudeiro; na quarta, o cenário não fica muito claro, mas eu tendo a achar que é o interior do quarto de Isabel, e as personagens são a moça, agora fisicamente presente na cena, e sua mãe. Não há uma quebra entra o primeiro e o segundo momento, o que dificultaria uma separação em diferentes Cenas, no entanto, corresponde a um momento diferente da intriga e, principalmente, há uma mudança de cenário que se faria necessária. Cada um desses momentos corresponde a partes diferentes da intriga: no primeiro conhecemos Aires Rosados e seu “tipo” pelas características dadas a ele por seu criado e Ordonho; no segundo o conhecemos através de sua poesia, primeiro, e, finalmente, o vemos em cena; na terceira, o vemos fazendo declaração a amada; no quarto, conhecemos de fato Isabel, através da conversa que tem com a mãe. Para a encenação, seria interessante dois cenários diferentes, o do interior e do exterior, que aparecem de maneira intercalada nos diferentes momentos. Para evitar a mudança de cenário teríamos de trazer Aires Rosado à porta de casa quando ele aparece, e também Isabel, na última cena.

No primeiro diálogo, entre Apariço e Ordonho, nos são apresentadas duas detalhadas descrições, cada uma delas feita por um dos criados sobre seu patrão. A primeira característica que nos é apresentada por Apariço é a da miséria, que voltará várias vezes ao longo do texto: “morremos ambos de fome e de lazeira todo ano” v.12, “todo dia sem comer” v. 18, “nunca lhe vi cruzado” v. 29, “[o cavalo] está na pele, que lhe fura já a ossada” v. 34, “anda mal roupado” v. 52. A essa característica, logo se acrescenta um segunda, a de não fazer nada, no que diz respeito a trabalho: “todo dia (...), cantar e sempre tanger, sospirar e bocejar”. Dessa forma, temos, já nos 30 primeiros versos, as principais características do escudeiro. Anteriormente participante de uma classe guerreira (levava as lanças e o escudo do cavaleiro), oriundo de uma pequena nobreza e tirando seu rendimento das doações que recebe por anos de serviço, tem de, depois que há uma mudança na forma como funcionavam as guerras, com o surgimento de soldados assalariados, achar alguma outra atividade que mantenha a distinção de classe. Essas atividades tem, no entanto, um problema: não são lucrativas. E quais seriam elas? As caçadas, o amor, ou mesmo a cultura. As das últimas, praticadas pelo personagem Aires Rosado, que ocupa seus dias com poemas acompanhados de viola, e corta a damas, fazendo dele, um miserável. Essa situação do escudeiro aparece explicada na apresentação crítica de Vanda Anastácio a “Quem tem farelos?” (1985): “Em consequência de todos esse factores, a situação do escudeiro no final do século XV começa a ser cada vez mais difícil. A sua fonte de rendimentos, as doações do cavaleiro em despojos de guerra, desaparece e, por outro lado, não pode dedicar-se a trabalhos que o ‘desonrariam’ uma vez que é nobre e por definição deve viver no ócio”, sua aparência é a única coisa que o resta, por isso, tudo o que faz é tentar mantê-la.

Apariço segue apresentando outras características também muito importantes, como a valorização da aparência. O criado vê o amo sempre se gabando de algo que, na verdade, não é. Isso fica claro em passagens como “e presume d’embicado, que com isto raivo eu” ou “E se o visse brasonar, e fingir mais d’esforçado”. Também o apresenta como um covarde, contando que, em um dia que apanhou, os homens o batiam “e ele calar e levar”.

A descrição de Ordonho de seu amo aparece para se somar a de Apariço, principalmente no contraste entre realidade e aparência. Fala que seu amo se gaba de ser um grande senhor, mas na verdade não tem nada e não passa de um ignorante; que adora falar sobre guerras, mas não passa de um covarde, que sairia correndo ao ver dois gatos brigando. Só sinto uma diferença sutil na descrição dos dois. A de Apariço vem acompanhada de um certo tom de piedade pelo amo, que não vejo na fala de Ordonho.

Dessa forma, as descrições de ambos se complementam, deixando bem demarcada a figura de um “tipo”, no caso, o escudeiro. O “tipo” é um elemento muito frequente em peças cômicas, e representa uma certa figura social de uma época de forma estereotipada. Eles tendem a ser relativamente fixos, com características muito semelhantes de uma obra para a outra. O escudeiro de

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