LIÇÃO ENTRE AMIGAS: CARTAS NA MESA
Por: ANGELIROSE • 2/6/2017 • Pesquisas Acadêmicas • 7.264 Palavras (30 Páginas) • 241 Visualizações
ESCRITAS DE SI, RESITÊNCIA E EMPODERAMENTO
LIÇÃO ENTRE AMIGAS: CARTAS NA MESA
angeli rose uerj 23capitu33@gmail.com
Conta a lenda que Simônides era conhecido pelas artes da memória e que após um banquete para “altos figurões” da Grécia foi chamado às pressas para identificar os corpos das vítimas do desmoronamento do telhado do casarão onde acontecia o evento.Simônides foi capaz de fazê-lo porque esteve ali presente até minutos antes do desabamento e lembrava-se perfeitamente dos lugares que ocupavam na mesa cada um dos convivas. Cícero conta isso em “De Oratore”, também Yates em “A arte da memória”, até Umberto Eco em “Não contem com o fim do livro”,conversa sobre livros com Jean Claude Carrière.
Nas narrativas docentes que resgatam sentidos para nossas práticas e perplexidades também não deixamos de identificar “os mortos”, em certa medida, que avistamos ao longo do processo, que se não de muitos anos de ofício, ao menos longo em sua intensidade e incidental experiência com o espaço e o tempo dedicados às artes de ensinar e aprender.
A lenda que torna Simônides protagonista dos silenciados pelo desmoronamento de um teto também fala para nós, narradores e docentes, que pode ser muito importante dar a luz aos que passaram, isto é, tornar os spot das cenas e eventualmente focar sobre cada um deles (grupos ou pessoas, por exemplo) para que sejam identificados, e ao identificá-los, tanto Simônides como nós outros docentes, damos a ver nossa posição em algum banquete e também indicamos que estivemos lá e testemunhamos em algum nível uma celebração.
Depois desse introito, que teve como objetivo criar uma atmosfera, faço um convite para que reflitam comigo sobre nossas memórias, a reinserção delas no cotidiano docente em forma de escrita, e a fluidez, ou não, com que lidamos com elas, ou melhor, que lidamos conosco, cada um de nós, cada um de si.Se fazemos a memória falar, ou se falamos a partir de nossas memórias docentes, é porque silenciamos em algum nível, por algum tempo.
Se a realidade é inesgotável então o pesquisador, conscientemente, pode optar por uma metodologia centrada na descoberta e no discernimento cuja ênfase requer a compreensão das intenções e dos significados dos atos humanos que pode denominar-se de abordagem qualitativa.(Carelli,2015)
Calamos até que possamos retomar eventos significativos para o percurso docente.Para tanto,podemos fazer tal empresa de diversas maneiras: ao sermos convidados para conversar com um colega, mesmo que na hora de um intervalo mais longo,sobre questões do cotidiano escolar; ao escrevermos um relatório de final de ano para a coordenação pedagógica; ao aquietarmo-nos em nosso escritório (mesmo que improvisado)para elaborar uma avaliação, por exemplo.Estas são algumas poucas entradas ou saídas, dependendo da perspectiva, para nos escrevermos, nos narrarmos; até a consumação efetiva e intencional de escrevermos histórias de nossa formação e atuação docente,principalmente em situação de pesquisa.
A narrativa contemporânea deve contemplar as vozes que foram excluídas e que não detinham poder politico nem ideológico na modernidade. A atual postura implica desenhar uma narrativa não linear que dê conta dessas simultaneidades, descontinuidades, rupturas, descompassos históricos, e que possa explicitar as condições externas de produção.(Teixeira,2013)
Sinômides foi capaz de colaborar com aquela trágica operação identitária porque se permitiu a observação apurada e contemplativa, a ponto de criar espaços mentais para as associações necessárias entre os lugares da mesa e os convivas que os ocuparam junto aos demais objetos e detalhes que compuseram aquela cena pré-desabamento. O texto da memória, a identificação, foi possível porque o silêncio dirigido pelo olhar (da observação) deu lugar ao outro. E sem o saber, Simônides ao cuidar de seu silêncio, cuidava do outro; ao cuidar de sua memória, cuidava da memória dos outros que ficaram soterrados, e também nesta fábula, por extensão, cuidou das memórias dos que ficaram e poderiam lembrar dos seus mortos.
E agora volto-me totalmente para as nossas vidas e nossos silêncios, cuidados ou não: e conto-lhes que durante muitos anos fiquei em silêncio, contemplando minha perplexidade ante experiências de vida e da vida como docente. Por longos anos não fui capaz (ou corajosa?) de retornar às cartas para pô-las na mesa e, quem sabe, rescrevê-las. Explico, ou melhor, narro: Há alguns anos escrevi um romance em forma de cartas sobre experiências de leituras; há algum tempo, já bem distante, narrei a aventura que é pesquisar sobre a formação de leitores, jovens, em aulas de literatura; há mais de anos reencontrei o amor, mas o amor pela memória, pelos mortos, pela língua, pela docência,e por todos aqueles viventes que atravessaram minha estrada de leitora. “Salteadores”, como se referia W. Benjamin aos textos citados em nossos textos. Eu os chamava de inquilinos do imaginário (e quem aqui não sabe o quanto ainda é, mas já foi mais, bem mais caro comprar livros para a formação?).Não só por isso,a caristia, seriam inquilinos, porque também há autores com os quais convivemos por um tempo e que se vão, talvez para outras cabeças e corações, quem deles sabe?
Então, como iniciava minha narração, encontrei amores, muitos que só foram possíveis porque também os perdi. E foi na solidão de pesquisadora em um debate com os dados coletados que constatei com outras mãos amigas,Maria e Augusta, o que há de mais doce na presença: reencontrar.
Agora voltei ao ponto que me levou a escrever um diário: não tenho um amigo [...] aparentemente parece que eu tenho tudo, exceto um único amigo de verdade. [...] De qualquer modo, é assim que as coisas são, e não devem mudar, o que é um pena. Foi por isso que comecei o diário. Para destacar em minha imaginação a imagem da amiga há muito tempo esperada [...] quero que o diário seja minha amiga, e vou chamar essa amiga de kitty. (Frank, 2013)
Na minha história de pesquisadora e escrevente,forjei cartas que se inscreveram através das personagens.
O vazio que uma perda gera é como o silêncio, aquele reservado para que novas palavras se avolumem. Isto não se dá numa ordem direta nem linear, mas vai acontecendo em nosso corpo até que o corpus narrativo esteja configurado. Talvez o mais curioso seja o fato de que nem sempre nos damos conta dos vazios e dos silêncios com que lidamos. Cada palavra escrita em nossas narrativas docentes é também um manifesto dos silêncios que experienciamos em algum tempo, e formam uma injunção com os silêncios de outros que irão nos ler, ou escutar. Silêncio. Faço as cartas[1] falarem:
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