Ver depois do Olhar – A formação do professor para os desenhos das crianças
Por: 06654941810 • 30/4/2022 • Dissertação • 14.782 Palavras (60 Páginas) • 84 Visualizações
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I n t r o d u ç ã o
[pic 1]
Fig 1
Uma linha vermelha organiza os dois planos do papel, única peça estável na movimentação cor-de-rosa que se vê no centro da folha. O titubeio da haste à esquerda faz pensar que a linha recém-começou ali, no canto esquerdo, à margem da folha: ela sobe, em um esforço disciplinado de retidão, atravessa horizontalmente a parte superior do papel e desce, findando em uma espécie de gancho, denunciando o abandono da caneta depois da trajetória arduamente governada. Abaixo dessa linha, outra de igual intenção, desta vez amarela, organiza-se paralelamente. À primeira vista, parece que as duas estão no mesmo plano porque suas pontas se encontram abaixo, mas a força do vermelho parece sobressair com relação à outra, como se estivesse se destacando à frente. Na linha amarela, vemos anexadas três figuras retangulares, presas à linha por outros pequenos retângulos sólidos: são peças de roupa fixadas por prendedores coloridos. Apenas uma delas está preenchida internamente. À direita, na linha vermelha, mais duas figuras são fixadas. Todas elas se posicionam para cima, como que levadas pelo vento forte, representado ao centro da folha em ziguezagues horizontais cor-de-rosa cruzados por linhas sinuosas que formam uma espécie de ondas ascendentes. O efeito gráfico é
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buscado pelo menino para transmitir em imagem o vento levando consigo a pipa e as roupas, causando a percepção tão sutil de um vento que é visto apesar de sua invisibilidade
Este desenho foi elaborado por Jackson, uma criança de 3 anos e 6 meses, sob o olhar de sua professora, que acompanhou de perto seu processo de criação1. Na creche que freqüentava, Jackson passou a desenhar diariamente com canetas hidrocor, ocasião proporcionada pela professora, que o incentivava, e a toda a sua turma, com papéis e canetas diferentes. Localizamos ali, em um emaranhado experimental, o início de um percurso realista.
[pic 2]
Fig 2
Registro de uma grande movimentação, Jackson deixa marcar nas linhas o traçado de um gesto que vai desfilando, ao modo de uma serpentina, em todo o papel. A intensidade das linhas cor-de-rosa e roxas esconde as verde-escuras, que estão por baixo do emaranhado que irrompe no centro. A arqueologia das linhas permite pensar que o desenho teve início no plano verde, ao fundo, porque se pode notar que as demais cores se sobrepõem àquela. Cada linha tem uma vida
[pic 3]
1 Relato obtido por ocasião das supervisões ocorridas na sala de aula do Programa ADI-Magistério, formação inicial de educadores de creches do município de São Paulo, em 2004.
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cíclica: seguindo-as, refazemos seu novelado, até que este simplesmente se interrompe. Uma nova linha começa com outra cor, até que esta também se interrompa, e assim sucessivamente, o roxo, o rosa, verdes, cinza, marrom e amarelos vão-se apresentando num papel que pouco a pouco esconde as linhas mais antigas, tornando mais difícil a descoberta de seu ponto de partida.
Não sabemos o que dispara e alimenta essa movimentação. É possível que o olho de Jackson passeie pelas canetas coloridas, todas novas para um menino que não teve experiência anterior com esse material. A profusão de cores que impregna as linhas talvez seja a materialização de uma vontade exploratória das cores que ele pouco usa2 e que agora vibram na ponta das canetas que ele escolhe. Por outro lado, há elementos que também indicam uma experiência para além da exploração, uma organização que explicita certo efeito estético: o verde-claro, que aparece em um vai-e-vem à esquerda, quando composto com as linhas envolventes no limite inferior da folha parece emoldurar o emaranhado colorido, criando uma tensão contrastante com os verdes.
O desenho-emaranhado conclui-se quando Jackson pára de riscar e dá sua produção por encerrada. Mas, seu percurso de criação não termina aí: no dia seguinte, sua professora lhe oferece um papel com um recorte ao centro, a representação de uma camisa e um calção que ela mesma desenhara, recortara e colara no centro da folha horizontal. Sabe-se que a intenção da professora era incentivar o desenho da figura humana. Uma interferência desse tipo no centro do papel criou um problema gráfico que Jackson precisava resolver. Muitas alternativas eram possíveis nesse caso: completar a figura? Como? Ignorá-la? Virar a folha, simplesmente, e seguir riscando? Embora sua motivação não seguisse a expectativa da professora, aquela figura no centro da folha capturou seu olhar e ele se ocupou dela, como se ela quisesse ali aparecer e tivesse algo a dizer, num texto visual que Jackson se desafiou a escrever.
[pic 4]
- Sabe-se que a o mais comum na experiência plástica das crianças de sua turma, naquela creche, era o giz-de-cera, nas cores que sempre sobram: verde-escuro, roxo e marrom.
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[pic 5]
Fig 3
Sua saída foi organizar os emaranhados de cores que já apareciam na produção anterior em linhas envolventes que se espalham por um arco bastante alargado, delimitado pelas linhas vermelhas em paralelo, preenchidas com linhas azuis, vermelhas, amarelas e verdes, uma estrutura mais robusta para representar um varal sobre o qual se estendia uma camisa. A peça não fica solitária no varal: Jackson organiza na mesma linha outras peças, dos dois lados, e acrescenta uma figura nova, círculos sobrepostos azuis compondo um nó de onde pende uma rabiola de linhas curtas entrecortando o fio azul. Ele entrega seu resultado à professora, mas, vendo que ela não observa corretamente, ele a corrige, recolocando a folha de papel ao contrário: “É assim, porque o vento está levando a pipa”. Jackson não conseguira resolver o problema da representação como sua professora pretendia? Ou, como ele intencionava, para a roupa parecer ser levada pelo vento todo o restante do desenho deveria aparecer de ponta-cabeça? Desenhar a ideia ou a lembrança da ideia é tarefa das mais laboriosas: qual é a direção do vento e como ele interfere no estado das roupas presas no varal?
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