A Escola Que Sempre Sonhei Em Existir
Monografias: A Escola Que Sempre Sonhei Em Existir. Pesquise 862.000+ trabalhos acadêmicosPor: cordec • 27/11/2014 • 7.743 Palavras (31 Páginas) • 744 Visualizações
A Escola da Ponte
Rubem Alves
Quero uma escola retógrada...; Escola da Ponte - 1; Escola da Ponte - 2 Escola da
Ponte - 3 Escola da Ponte - 4 Escola da Ponte - 5
Quero uma escola retrógrada...
Aforismo que repito sempre: "Numa terra de fugitivos aquele que anda na direção
contrária parece estar fugindo." O poeta T. S. Eliot, que o escreveu, pôs o fugitivo no
singular: um ser solitário. E era assim que eu sempre me sentia, andando sozinho na
direção contrária. Mas, repentinamente, descobri um outro "fugitivo", um velho de
longas barbas e que fumava um charuto fedorento. Não gosto de cheiro de charutos.
Mas gosto de companhia. Aproximei-me dele e o reconheci. O nome dele era Karl
Marx. Fiquei espantado porque sempre pensei que ele se encontrava no meio da
multidão dos que andam para a frente, os modernos, economistas, cientistas - pois foi
isso que sempre disseram dele os que se diziam seus intérpretes. De fato, as roupas que
ele usava eram modernas, feitas de tecido fabricado naquelas tecelagens (que ele
odiava) onde trabalhavam mulheres e crianças 16 horas por dia, para enriquecer os
donos. Evidentemente faltava-lhe tempo e habilidade para fazer o que fazia aquele outro
retrógrado chamado Gandhi, que tecia seus próprios tecidos num tear doméstico que ele
afirmava ter poderes terapêuticos e sapienciais. Percebi que ele era moderno por fora
mas o seu coração era retrógrado; andava para trás. Como o meu.
Psicanalista, presto atenção nos detalhes, os lapsus, e foi assim que descobri esse
segredo que ninguém mais sabia: um pequeno texto...Ele dizia nesse texto que o
operário, ao ver o objeto que produzira, tinha de ver o seu próprio rosto refletido nele.
Cada objeto tem de ser um espelho, tem de ter a cara daquele que o produziu. Quando o
operário vê seu rosto refletido no objeto que ele produziu ele sorri feliz. O trabalho, com
todo o seu sofrimento, valeu a pena: foi dor de parto.
Agora, meu leitor, lhe peço: ande por sua casa e examine os objetos modernos que há
por lá: liquidificadores, torradeiras, fogões, computadores. Olhando para eles, cara de
quem você vê? Se, ao invés de estar comprando um desses objetos numa dessas lojas
que vendem tudo para fazer sua mãe feliz - eles, os vendedores, acham que sua mãe é
muito curta de inteligência e de sentimentos - você estiver numa exposição de arte -
esculturas do Santos Lopes, esse extraordinário artista português, por exemplo - e você
se apaixonar por uma delas - você poderá procurar um lugar, na escultura, onde ele
colocou a sua assinatura. Você compra a escultura, leva-a para sua casa, põe na sala, e
se eu for visitá-lo, ao ver a escultura, direi imediatamente, antes de examiná-la: " Ah!
Você tem uma Santos Lopes!" Todas as esculturas do Santos Lopes têm a cara dele (
mesmo que ele não as assine; são inconfundíveis!). Mas o nome de que artesão irei dizer
ao ver seu liquidificador, sua torradeira, seu computador, sua esferográfica? Esses
objetos foram feitos por pessoas sem nome. Foram produzidos em linhas de montagem.
São todos iguais. Quando ficam velhos são jogados fora e outros, novos, também
produzidos em linhas de montagem, são comprados. Operários que trabalham em linhas
de montagem não assinam as suas obras - porque não são deles - e nem vêem o seu
rosto refletido nelas. Foi isso que me fez concluir, a partir da pequena afirmação de
Marx, que ele destruiria as linhas de montagem, se pudesse, voltando então a um tempo
passado onde cada obra era espelho como assinatura. Acontece que objetos com o rosto
do artesão e assinatura não chegam para alimentar a economia capitalista, que tem uma
fome insaciável. Marx sonhava com uma situação que já não mais existia, o atelier do
artesão medieval, cada artista, cada aprendiz, fazendo uma coisa única, que nunca mais
se repetiria: em cada objeto o rosto do que o produzira, cada objeto uma experiência de
felicidade narcísica. É isso que combina conosco, seres humanos, únicos, que nunca se
repetem.
Como são produzidos liquidificadores, máquinas de lavar roupa, computadores,
automóveis? São produzidos numa "linha de montagem". De maneira simplificada: uma
esteira que se movimenta. Ao lado dela estão operários. Cada operário tem uma função
específica. O processo se inicia com uma "peça original" à qual, à medida que esteira
corre, os operários vão acrescentando as partes que irão compor o objeto final. Nenhum
operário faz o objeto, individualmente. Cada operário faz uma única operação: juntar,
soldar, aparafusar, cortar, testar. O resultado da linha de montagem é a produção rápida
e controlada de objetos iguais. A igualdade dos objetos finais é a prova da qualidade do
processo.
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