Ditadura da felicidade
Por: sarasuzuki • 20/3/2024 • Trabalho acadêmico • 1.580 Palavras (7 Páginas) • 43 Visualizações
Em um mundo impulsionado pelo lucro e que normatiza a exploração do capital em detrimento dos sujeitos, não é de se estranhar que angústias e aflições surjam (Parker, 2014). A Psicologia, ao justificar práticas opressoras e contribuir para a manutenção da ideologia de exploração, além de enaltecer o individual e ignorando, por diversas vezes, o coletivo, tem grande parcela de responsabilidade na manutenção da angústia e aflição dos sujeitos (Parker, 2014).
O Capitalismo e todas as ciências que fazem parte de seu conluio (inclusive a Psicologia), forjou novos discursos sociais, discursos que atravessam os sujeitos e formam as diversas subjetivações que são características do nosso tempo (Tavares, 2010). Atualmente, o Capitalismo atingiu um patamar tão estarrecedor que quase não há como fugir da alienação produzida por ele, como é possível perceber ao analisarmos as relações interpessoais contemporâneas, que se baseiam em imagens, tendências, modas, isto é, na pura aparência do ter (Tavares, 2010; Tavares & Hashimoto, 2010).
Nas últimas décadas, presenciamos uma revolução da relação dos sujeitos com o tempo e o espaço. As novas tecnologias de informação, como a internet e todas as redes dela derivadas (Facebook, Instagram, Twitter, Tinder etc) transformam o modo como nascemos, aprendemos, sonhamos, lutamos e morremos. Todos os incrementos tecnológicos e biotecnológicos operaram sensíveis mudanças nas posições subjetivas e, consequentemente, operam mudanças nas formas de sofrimento psíquico do homem contemporâneo (Pinheiro, Quintella & Verztman, 2010).
A “sociedade do espetáculo”, como denominou Debord (1967/2003), é marcada pela alienação e a exacerbada valorização da imagem, que são veiculadas e vendidas pela mídia. Além disso, há uma globalização dos costumes, necessidades e modos de ser dos indivíduos, culminando em um mundo em que ter e (a)parecer ter é fundamental, sendo, inclusive, uma questão de existência. Esse contexto propicia vivências entre o limiar da angústia e do gozo efêmero, ou seja, é preciso consumir para existir, mas esse consumo traz um alívio apenas momentâneo, que não nos satisfaz totalmente.
O termo depressão começou a ser utilizado durante o século XIX. Sua inserção se deu por via da relação com a temática da melancolia, que, antes do advento dos manuais e compêndios psiquiátricos, não era associada diretamente a uma ideia de doença, mas sim a um traço de superioridade intelectual e refinamento social, sendo esse conceito preservado até o início do século XIX. Os manuais, tal como o DSM e CID, começam a ser massivamente utilizados após o advento da Idade Moderna (Monteiro & Lage, 2007).
No final do século XVIII, Philipe Pinel empreendeu a primeira tentativa de uma categorização psiquiátrica acerca da melancolia. Seu estudo baseava-se principalmente na observação clínica e na busca de agrupar seus sintomas. Em 1883, Emil Kraeplin, autor do primeiro Compêndio de Psiquiatria, ofereceu à psiquiatria uma definição baseada, principalmente, no quadro clínico da psicose maníaco-depressiva, cujas características foram descritas como uma alternância de acessos maníacos e acessos depressivos. Desse modo, houve um paulatino desaparecimento do termo melancolia. Os manuais psiquiátricos sugerem um diagnóstico a partir da identificação das condições clínicas de um determinado transtorno, como seus sintomas e a intensidade, frequência e duração dos mesmos (Monteiro & Lage, 2007).
É nesse cenário que a depressão surge, no século XXI, como o “mal-do-século”, ganhando um lugar de destaque nos diagnósticos. A sociedade das aparências, que construiu uma subjetividade empobrecida dos sujeitos, é um solo fértil não só para o sofrimento, mas também para a resolução dessas dores e angústias (Tavares, 2010; Tavares & Hashimoto, 2010). A depressão, nesse sentido, assume duas principais formas: de um lado, uma “frescura” e, de outro, uma banalização.
Assim como diversos aspectos da nossa subjetividade, o sofrimento foi mercantilizado pelo Capitalismo, dando origem a segunda forma da depressão, isto é, a sua banalização. O termo “depressão” se tornou um verdadeiro jargão para identificar e rotular as mais variadas formas de “mal-estar” na atualidade (Tavares, 2010; Tavares & Hashimoto, 2010). Salienta-se, todavia, que não se defende a não existência desse adoecimento, apenas critica-se a banalização conceitual que se tem hoje em dia.
Em uma sociedade em que tudo se produz e tudo pode se comprar – inclusive a felicidade – questiona-se como é possível um sujeito ficar deprimido. Os indivíduos não sabem mais lidar com suas angústias, tendo um limiar incrivelmente baixo para as aflições que constituem suas vivências (Fortes, 2008). Todavia, esse estado é produzido pelo sistema em que estamos inseridos, que providencia tudo o que é necessário para o nosso gozo (entendido aqui como a tentativa de suprir uma falta constitutiva), nos prendendo em uma ditatura da felicidade em que sofrer não é permitido – a não ser que isso satisfaça a lógica consumista e mercadológica da nossa atualidade (Monteiro & Lage, 2007).
A ascensão, nas últimas décadas, da temática da depressão no contexto da psiquiatria biológica é notória (Monteiro & Lage, 2007). Os consideráveis investimentos financeiros aplicados nas pesquisas com psicofármacos, e a posterior divulgação das descobertas como receitas bastante eficientes, levantam o dicotômico questionamento de quem surgiu primeiro: o diagnóstico de depressão ou os remédios para tratá-la? Em primeira análise, parece-nos óbvio que os medicamentos vieram depois, todavia, basta traçar uma linha histórica, que se torna perceptível que as indústrias farmacológicas, senão criaram essa categoria nosológica, ao menos impulsionaram seu surgimento (Parker, 2014).
Seguindo a linha de raciocínio que apregoa a fantástica revolução das medicações antidepressivas na vida humana, observa-se que a psicofarmacologia e as neurociências estão se transformando em produtos da mídia. O marketing e a propaganda vão muito além do que as bulas dos remédios propõem. Exemplo claro é o medicamento “Prozac”, que logo foi chamado de “pílula da felicidade”, título que não se limitava aos efeitos antidepressivos da droga, mas anunciava a chegada de uma nova era: a era da “psicofarmacologia cosmética”, na qual bastaria uma pílula para modificar a personalidade, tornando-a compatível com as exigências do mundo capitalista (Monteiro & Lage, 2007).
Hoje as neurociências se empenham em animar os depressivos para torná-los aptos a consumir. Ou, pelo menos, a desejar consumir, a “estar de acordo” com as demandas de consumo (Kehl, 2011). O uso excessivo de psicofármacos pode sugerir uma negação de todos os símbolos que têm relação com a morte ou com a falta, é o resultado de uma gradativa negação da complexidade da experiência humana (Monteiro & Lage, 2007).
Ao buscar a ordem biológica do comportamento humano e o controle dos corpos, a Psicologia atribuiu à Psiquiatria um status de superioridade que acabou por banalizar ainda mais a depressão, além de torná-la um problema de cunho individual, contribuindo ainda mais para manutenção da ideologia capitalista (Parker, 2014). A tendência que explica a depressão orgânica e fisiologicamente confere à dimensão individual a culpa pelo adoecimento e, ao mesmo tempo, retira do homem a possibilidade de se responsabilizar e se apropriar subjetivamente dos movimentos que poderiam levá-lo a alterar este estado de coisas (Tavares, 2010; Tavares & Hashimoto, 2010).
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