UM CASO DE PSICANÁLISE DE CRIANÇA
Por: Adriana Thomazotti • 16/11/2021 • Artigo • 9.693 Palavras (39 Páginas) • 128 Visualizações
UM CASO DE PSICANÁLISE DE CRIANÇA
Dulce Campos1
“O homem fala, pois, mas porque o símbolo o fez homem.”
(LACAN, 1953/1998, p. 278)
A separação e o “tchau”
Tudo começa com a palavra da mãe de Gilson, em um encontro informal na minha casa, sem horário previamente marcado.
Gostaria que você visse meu filho. Tem quase quatro anos e nunca chegou a falar. Já andei por todo tipo de médico: psiquiatra, pediatra, audiometrista, psicólogo, foniatra. Sua fala parece um dialeto indígena. Atualmente está sendo acompanhado por um neurologista infantil que não tem diagnóstico firmado. Precisa de mais dados, não se sabe o que ele tem.
Nas primeiras entrevistas, continuando seu discurso, acrescenta:
Não desejávamos este filho. Foi o último, antes houve um aborto. Quando ele tinha 4 meses e meio tive de me afastar de todos por suspeita de ser portadora de doença contagiosa. Foi uma separação abrupta. Comecei a estudar e a pensar na minha vida profissional. Eu e o pai estamos em desacordo com relação ao tratamento psicanalítico de Gilson. Ele acha desnecessário e recusa-se a colaborar no pagamento, mas não se opõe propriamente. Eu decidi assumir sozinha. Confio em você e entrego-lhe meu filho. Acho esquisito o afastamento físico dele em relação ao pai. Nunca sentou no seu colo. Quando vai para nossa cama, distancia-se do pai, fica na beira oposta como se estivesse se protegendo de espinhos no corpo do pai.
Após esses relatos, vejo Gilson pela primeira vez. Bom aspecto físico, delgado, rosado, louro, olhos claros, postura adequada à idade. Olhar vago e distante, ausência de emoções faciais. Como se não estivesse em lugar nenhum. Há uma dúvida geral quanto à sua integridade auditiva, com fortes suspeitas de surdez por parte da audiometrista. Em razão desse distanciamento do mundo que o cerca, poder-se-ia levantar a hipótese de “autismo” com todas as reservas que essa nosologia suscita (BERGÈS; BALBO, 2001).
Desse modo Gilson se conduz nas entrevistas que se seguiram. Na sala, ele não
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1 Psicanalista, membro de Intersecção Psicanalítica do Brasil/PE. E-mail: dulce.campos@globo.com
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apresenta sinais de angústia ou de inquietação, apenas distância. Diante de ruídos, parecia não ouvir. Eu buscava uma forma de me tornar presente. Um contrato de três sessões semanais com horários preestabelecidos.
Lápis, papel não lhe despertam nenhuma reação. Não me olha. Não chora, não ri; sobretudo, não fala. A passagem ao imaginário não me era acessível na hipótese de autismo com dúvida de viabilidade para o simbólico. Parecia um “puro real” a se manifestar nas suas formas de ser, sem aspiração de corpo, caótico. A ausência da fala e da sua iminência apontava para alguém que não habitava este planeta. Como trazê-lo? Como introduzi-lo em outra morada? Uma “ausência” repetitiva parecia insistir na busca de um encontro faltoso (BATAILLE, 1988).
Na quarta sessão, eu começo a embalar uma boneca com cantigas de ninar. Parece não me escutar. Olhar distante, vago, quase fixo. Pouco a pouco, interessa-se pelo que se passa. Apoia-se cada vez mais nos braços da poltrona onde se encontra, começa a babar olhando admirado a cena. Fisicamente, aproximei-me quando o vi tomar a ponta do meu cinto, levando-a à boca. Eu me desequilibrava, caía e rolava com ele pelo chão da sala. Rebolávamos, deitados. Hoje posso descrever a experiência com detalhes. Naquele tempo, não. Não tive a força de Freud para escandalizar o mundo; até do círculo dos profissionais da área, eu temia reprovações. A cena de ninar parecia ter desencadeado um processo: aéreo, olhando, babando... Uma possibilidade de identificação (CAMPOS, 2002).
Alguma coisa acordava nele: lembranças, fatos, desejos (DOLTO, 1988). Levantando hipóteses, eu pensava sobre as coisas que antecedem a linguagem verbal estruturada pela lei da cultura. A possibilidade de surdez reduzia minhas oportunidades de ação psicanalítica. Era, sobretudo, a falta de qualquer forma de comunicação, gestos, expressões faciais, movimentos corporais expressivos que me levavam a procurar outros elementos para trabalhar com Gilson. Penetrar naquele continente fechado, constituído antes da linguagem falada, decifrar seus mistérios, seguindo passo a passo com ele, constituía-se um desafio para mim.
Veio-me à lembrança o episódio da separação brusca da mãe por motivo de sua doença contagiosa. Não ficara muito distante porque habitava o primeiro andar da casa. Ele sabia que ela estava por perto e, a qualquer momento, voltaria. Ameaça de perda, ausência, falta, frustração, podendo instalar-se como traumática. Embora os fatos não tenham em si mesmos um sentido traumático, é por meio deles que se vai estruturando o imaginário na via da simbolização dos desejos advindos do Outro que, aos poucos, se instala (DOLTO, 1972). Os traumas assumem um valor relativo na estruturação dos sintomas, servem de suporte para a subjetividade e continuam a ecoar na estrutura, lá onde se encontra o sujeito (DOLTO,
1983). Essa experiência se repete (DOLTO, 1990) em um contexto cada vez menos biológico em nível inconsciente.
O desejo da mãe se fazia insistente esperando a emissão da fala de Gilson (DOLTO, 1996). Não tendo sido desejado, nele inscrevera-se factualmente a morte – tentativa de aborto
– antes mesmo de nascer. Não puderam evitá-lo. Uma irmã que o antecedera fora vítima de aborto voluntário. Tudo isso passível de simbolização (FREUD, 1905/1996). Continuava evidente sua dificuldade em sair do caos para o mundo criado. Olhos não para ver, ouvidos não para ouvir, mãos não para sentir. Tentando, treinando? Aprendendo...
Após dois meses de contatos sistemáticos com o pequeno, surpreendi-me com uma nova reação sua. Ao terminar a sessão, dizendo-lhe tchau, dirigiu-se ao lugar onde me encontrava sentada em uma cadeira, curvou-se sobre meus joelhos, entre minhas pernas, entregando-se ao acolhimento. Começou a pesquisar no meu rosto: olhos, nariz, boca. Trazendo sua saliva, colocando-a na minha boca, ele molhava meus cabelos. Sua expressão era de ternura e de investigação. Passei a antecipar esse momento de tchau, considerando-o útil para aprofundar seu relacionamento comigo e tornar fecunda minha exploração do seu mundo interno.
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