AS DROGAS E A "QUESTÃO URBANA" NO BRASIL. A DINÂMICA SÓCIO-ESPACIAL NAS CIDADES BRASILEIRAS SOB A INFLUÊNCIA DO TRÁFICO DE TÓXICOS
Por: Rita Halabian • 13/4/2015 • Resenha • 12.566 Palavras (51 Páginas) • 655 Visualizações
AS DROGAS E A "QUESTÃO URBANA" NO BRASIL. A DINÂMICA SÓCIO-ESPACIAL NAS CIDADES BRASILEIRAS SOB A INFLUÊNCIA DO TRÁFICO DE TÓXICOS
Marcelo Lopes de Souza* IN Iná Elias de Castro, Paulo Cesar da Costa Comes e Roberto Lobato Corrêa (organizadores). BRASIL: QUESTÕES ATUAIS DA REORGANIZAÇÃO DO TERRITÓRIO, 5ª edição, BERTRAND BRASIL
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Introdução: o Agravamento da "Questão Urbana" no Brasil e a Pertinência de uma Crítica
Não-conservadora do Tráfico de Drogas
Aqueles que, na esteira da crítica ou até do esquecimento da análise marxista do urbano, ainda tão popular no Brasil nos anos 80, imaginam ser obrigatório ou de bom-tom evitar uma expressão tão "comprometida" como questão urbana, estão, com certeza, a reclamar uma explicação para o título deste trabalho. A presente tentativa de recuperação crítica do conceito de "questão urbana" não deve ser interpretada como um desejo nostálgico de revivescência do paradigma teórico marxista- estruturalista — pioneiramente preconizado pela obra já clássica de Manuel CASTELLS (1983) —, no qual as cidades capitalistas eram examinadas exclusivamente à luz do conceito-chave de "modo de produção" — vale
* Prote-or do Departamerao de Geografia, UFRI
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dizer, onde tudo aquilo que não fosse diretamente relacionado com a acumulação do capital e as contradições de classe (além, outrossim, da reprodução da força de trabalho e .da ação do Estado) deveria ser visto como de importância secundária. Fazer referência a uma "questão urbana", aqui, equivale, não se pretende negá-lo, a pagar um tributo aos autores de corte marxista pela "desnaturalização"/"historicização" por eles promovida da produção do espaço urbano, tendo este, aqui, na conta de um produto social (ainda que como um produto cuja materialidade pode influenciar decisivamente os atores) e os "problemas urbanos" como problemas sociais com raízes freqüentemente supralocais, mas que guardam especificidades devido às particularidades do ambiente citadino (pobreza urbana), ou ainda que se expressam de forma diretamente espacial (segregação sócio-espacial). Sublinhe-se que, ao se identificar uma "questão urbana" enquanto objeto de conhecimento, deve-se evitar toda e qualquer superestimação da autonomia teórica do "urbano" (como ocorre no caso da teoria do consumo coletivo contida na já aludida obra de Castells). É necessário grifar que a "questão urbana" nada mais é que urna manifestação particularizada, em conformidade com as especificidades do espaço urbano e das relações sociais que nele têm seu palco, de processos sociais gerais que se originam e operam nas mais diferentes escalas, assim corno, ao menos parcialmente, de problemas que acometem o espaço rural.
Não obstante o reconhecimento, dentro desse enfoque alternativo da "questão urbana", da existência de contradições sociais objetivas na esfera da produção e da opressão política a serviço dos interesses capitalistas, repudia-se o empobrecimento da análise das questões da injustiça social e do desenvolvimento que inevitavel
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mente deriva de urna matriz epistemológica economicista e objetivista. Como o autor já enfatizou alhures (SOUZA, 1993b: 134), a necessária rejeição do idealismo culturalista não precisa significar urna negligência para com a dimensão cultural. Buscar entender a "produção capitalista da cidade" e a produção de disparidades sócio-espaciais também à luz da produção capitalista na cidade e do papel do Estado como planejador e provedor de infra-estrutura não deve implicar em reduzir o morador pobre a um trabalhador explorado, subestimando suas contradições e desprezando todos os demais papéis sociais que ele representa e a riqueza de experiências que ele vivencia. Aclarar a lógica e as conexões sistêmicas, para usar a terminologia de Habermas, não tem por requisito indispensável um desdém para com a produção simbólica e as estratégias de sobrevivência no mundo cotidiano dos oprimidos, no interior do seu Lebenszuelt] — pelo contrário, as análises dessas duas instâncias da sociedade moderna são complementares.
No interior de urna matriz epistemológica não
1 Os dois conceitos básicos de sistema (s sistema de ações sociais) e Lebeiis.eelí ("mundo da vida") correspondem a dois componentes fundamentais da dinâmica das sociedades modernas, cujr,s atritos foram discutidos de maneira instigante (apesar de passível de aprimoramento) por Jurgen Habermas no contexto de sua "teoria do agir comunicativo" (HABERMAS, 1988). 0 Lebensmelt abarca a cultura, as normas de conduta ética, os códigos de integração e socialização e as identidades individuais. Perante esse Lebe,isivelt, no qual operam os mecanismos de integração social, os mecanismos de integração sistêmica -- troca econômica (cujo locas é o mercado) e poder (especificamente enquanto Estado) tornam-se autônomos, em meio a um processo de racionalização da sociedade. Fenômenos sistémicos como as estratégias de acumulação de capital através da transformação de ambiente construído e as intervenções estatais no ámbito da produção do espaço foram salientados pelos teóricos marxistas da "questão urbana", infelizmente (mas coerentemente com sua matriz epistemológica) em detrimento da análise das estruturas do "mundo da vida", aliás crescentemente submetidas a mercantilizaçãio ou controle estatal (o que Habermas batizou de "colonização do Lebenswnelt").
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fragmentadora do Social, onde as dimensões econômica, política e cultural, onde a objetividade e (inter)subjetividade, onde “sistema” e “Lebenswelt”, onde o espaço social e os processos social-históricos sejam integrados no bojo de uma análise dialética aberta, a “questão urbana” pode ser entendida, em princípio, como o cadinho de tensões resultante da reação dos indivíduos e de grupos afetados por problemas objetivos como a pobreza e a segregação sócio-espacial. No entanto, qualquer reação pressupõe, para se realizar, que haja uma certa predisposição cultural para se interpretar tais males como graves e de uma maneira não-fatalista. A “problematização dos problemas” pelas próprias vítimas, venha ela acompanhando um processo de conscientização política ou não, e dando origem ela a reações tão diversas como a prática de um assalto ou o engajamento junto a uma associação de moradores, não se dá com a mesma intensidade em todas as sociedades, mesmo que os níveis de privação material e de desigualdades muitas vezes se assemelhem (SOUZA, 1993b: 134). Além disso, algumas reações em particular – como a criminalidade – podem, por seu turno, conduzir a reações por parte do aparelho de Estado ou de segmentos da sociedade que contribuem para agravar e não para minorar o quadro de tensões (intensificação da repressão policial e aumento dos preconceitos contra a população pobre), configurando assim um feedback positivo, um círculo vicioso. Por último, cumpre salientar que, se entre os fatores da “questão urbana” em um país como o Brasil, a injustiça social assume óbvio destaque, nem tudo deixa-se por ela esclarecer; pense-se, justamente, no tráfico de drogas, prenhe de efeitos sócio-espacialmente negativos, o qual apenas em parte tem seu incremento relacionado com problemas como pobreza e desemprego.
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