CORPOS REBELDES E A LEGITIMAÇÃO DO PODER: UM OLHAR FOUCAULTIANO SOBRE O FILME ÚLTIMA PARADA 174
Por: Anna Luíza Duarte • 29/8/2016 • Artigo • 3.804 Palavras (16 Páginas) • 605 Visualizações
CORPOS REBELDES E A LEGITIMAÇÃO DO PODER: UM OLHAR FOUCAULTIANO SOBRE O FILME ÚLTIMA PARADA 174
Anna Luíza Duarte Santos[1]
Isabela Pessôa de Holanda Menezes[2]
Matheus Rabelo Lisboa Melo[3]
RESUMO
O complementar artigo tem como alicerce basilar o estudo sobre o desenvolvimento da ilustração do delinquente, com fundamento na avaliação do filme “Última parada 174”, com direção de Bruno Barreto, perante a perspectiva do livro “Vigiar e Punir”, de Michel Foucault. Nesse sentido, é possível constatar, possuindo como base o filme mencionado, como a carência do adestramento e da prática de docilizar os corpos rebeldes pelas instituições de sequestro sobre a específica figura de Sandro, teria como consequência a construção do delinquente. Diante disso, ratifica-se o uso da questão teleológica – ter o passado como meio embrionário para se explicar o presente – de forma veemente tanto nessa obra cinematográfica em particular, quanto na própria naturalização do indivíduo delinquente pela sociedade através dos meios comunicacionais. Dessa forma, é objetivo desse artigo ter caráter crítico quanto à circulação desses enunciados que são apropriados como verdades absolutas, além de comprovar, através da concepção de Foucault, que tais proposições são apenas uma técnica de manutenção para legitimar o comportamento e as decisões daqueles que se encontram nas posições privilegiadas das estruturas de poder.
PALAVRAS-CHAVE: Delinquente. Adestramento. Corpos rebeldes. Instituições de sequestro. Estruturas de poder.
INTRODUÇÃO
O filme Última Parada 174 (Bruno Barreto, 2008) apoia-se no relato dos acontecimentos que acometeram Sandro Barbosa do Nascimento, o qual é acusado como responsável pelo assalto e sequestro do ônibus de linha 174 no Rio de Janeiro, em 12 de junho de 2000. A obra cinematográfica propõe a disposição de um traçado histórico delimitado e restrito da junção de fatos que levaram o jovem a cometer a atividade ilícita. Em contrapartida, pode-se afirmar que o fundamental para o filme não é narrar de modo imparcial o ocorrido, mas apenas alimentar de forma presunçosa a justificativa para a existência do delinquente, posto que, em primeira instância, não há embasamento em documentos substanciais que assegurem o relato, além de que as cenas elaboradas a respeito do desenvolvimento histórico da vida de Sandro foram por meio de reunião de discursos de diversos sujeitos, apropriados de maneira coletiva por uma conjuntura cinematográfica e, posteriormente, adequada de modo harmônico para assegurar uma suposta verdade sobre o caso.
A verdade e a mentira são ditas a partir do critério da utilidade ligada à paz no rebanho. Assim, os gestos, as palavras e os discursos que manifestem uma experiência individual própria em oposição ao rebanho, ou não são compreendidos ou trazem mesmo perigo para aqueles que assim se mostrem. Portanto, em primeiro lugar, a verdade é a verdade do rebanho. (NIETZSCHE, 1873)
A verdade seria, nesse sentido, a contínua legitimação, pela sociedade, dos discursos comprovados pela estrutura estatal na formação da própria aparência e dos pretextos do meio histórico-social do sujeito que é conduzido à delinquência. Assim, há o uso incontestável do determinismo e da teleologia como forma de fundamentar os fatos que culminaram na morte de Sandro.
Nessa perspectiva, os dados estatísticos do Estado propõem, a partir da obra de Michel Foucault, Vigiar e Punir, a ideologia da introdução do biográfico consolidada através do Monismo Jurídico (Wolkmer, 1994) durante a ascensão da classe burguesa ao poder jurídico e sua consequente positivação.
Nessa lógica, constataremos como a introdução do perfil do criminoso – obtida por meio de características reunidas por dados sistematizados – é inclinada à população através dos meios comunicacionais. Ademais, tal afirmação corrobora para ratificar como a construção do estigma social de delinquente é crucial para a preservação da classe dominante no poder e como essa ideologia é dissipada e naturalizada por meio de uma profecia autovalidante para a sociedade.
Dessa forma, iremos correlacionar como a influência das instituições de sequestro, evidenciadas por Foucault, contribuíram na criação desse biográfico e como a evasão da produção do corpo dócil por essas instituições, primordialmente simbolizadas no filme pela família, escola e prisão, encaminhou-o para a qualificação de delinquente.
- A LINEARIDADE HISTÓRICA DA CONSTRUÇÃO CINEMATOGRÁFICA DO DELINQUENTE
Bruno Barreto, em sua obra, utiliza uma narrativa linear ao redor de duas figuras que, apesar de possuírem histórias distintas, deparam-se em um contexto de criminalidade em virtude de aspectos pontuais em comum (são jovens negros, marginalizados, com famílias desestruturadas, em um meio onde atividades ilícitas acontecem e estão envolvidos com entorpecentes).
Alessandro, também conhecido como Alê, é o primeiro personagem apresentado na trama, filho de Marisa. É arrancado dos braços da mãe ainda recém-nascido como forma de ressarcimento pelas dívidas que ela possuía com o tráfico. Passa a ser instruído pelo Traficante Meleca, chefe do Comando Vermelho naquela comunidade, para dar sequência às atividades ilícitas da “figura paterna”. É educado perante o crime, tornando-se criminoso e assumindo, ainda jovem, o papel de delinquente.
Sandro, o protagonista, é criado em meio à periferia. Tem sua mãe, única instituição familiar próxima, assassinada ainda quando criança, assinalando de forma marcante sua infância e desestruturando seu âmbito familiar. Torna-se inquilino e passa a viver na casa de seus tios, a qual não reconhece quanto residência devido a uma má harmonia com o esposo de sua tia. Comete evasão escolar. Utiliza a balsa e muda o seu rumo para morar nas ruas, nos arredores da Igreja da Candelária, em meio a outras crianças que o inclinaram a realizar pequenos furtos em conjunto. Conhece “Soninha” (também menina de rua), com quem inicia sua vida sexual e, no decorrer, constrói um envolvimento amoroso. Passa a ser usuário de drogas na convivência de outros jovens. A vida na rua, as atitudes ilícitas e a representação da imagem daquelas crianças entra em descompasso com a estrutura vigente tida como organizada, aquele espaço torna-se desagradável para os comerciantes locais e para a polícia, ocasionando a Chacina da Candelária, a qual o filme retrata a partir da morte dos diversos garotos de rua ali presentes. Uma ONG resgata os meninos sobreviventes para um refúgio em uma comunidade da cidade onde, devido às drogas, Sandro acaba por fugir e, posteriormente, em meio ao consumo, termina sendo apreendido.
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