Exercício de Intertextualidade
Por: Cícero Silveira Christino • 23/6/2017 • Trabalho acadêmico • 576 Palavras (3 Páginas) • 196 Visualizações
A Cigarra e a Formiga se encontraram na Serra Gaúcha, então, apesar das divergências em suas filosofias de vida, resolveram sentar para um chope. Passadas as cordialidades costumeiras de quem não se vê há tanto tempo, veio o silêncio constrangedor: é difícil alimentar uma conversa se baseando apenas em eventos passados, ainda mais quando as personalidades se encontram em universos tão distintos.
A Formiga, incômoda com o silêncio, passou a inquirir a Cigarra a respeito de que motivos a traziam até um lugar tão cheio de oportunidades. Seria alguma proposta de trabalho? Algum empreendimento de lucro fácil? Contudo, a Cigarra, frustrando as expectativas da Formiga, informou que estaria a passeio, tendo em vista que conhecer as paisagens da região se tratava de um sonho antigo.
Novo silêncio constrangedor.
Após alguns instantes, a Cigarra acomodou-se confortavelmente na cadeira do bistrô em que consumiam seus chopes, e começou a cantarolar. Emitia arranjos vocais psicodélicos, que, aos poucos, começaram a ganhar intensidade e volume, chamando a atenção dos demais frequentadores do estabelecimento. A Formiga, obviamente encolerizada, chamou a atenção da antiga colega de Ensino Médio. Apesar da fúria, sua personalidade reprimida não a deixava extravasar a censura da forma que gostaria. Passou a cutucar a carapaça da Cigarra, chamando-a com sussurros exagerados. Percebendo que a música não cessaria sem uma intervenção mais incisiva, gritou:
—Amiga! Preciso falar contigo!
A Cigarra, como que retornando de um transe, fitou, com seus olhos gigantescos, as, também enormes, retinas enfurecidas da companheira de copo. Envergonhada, tomou, de um gole só, a meia caneca de chope que restava sobre a mesa. Divisou o rosto da Formiga, que já parecia mais satisfeito, momento em que a esta convidou para um fondue, em algum lugar.
Mais um silêncio: a Cigarra achava aquilo muito fresco! Queria mesmo era pedir um xis e continuar bebendo até o desconforto compartilhado evaporar. E foi a contraproposta que fez. Todavia, não apresentou os termos do acordo desta forma. Na verdade, só questionou se a Formiga não gostaria de mais um chope antes de sair. Para não ser deseducada, a Formiga aceitou.
Dois chopes depois, a Formiga – que já havia desistido do jantar - começou a se impacientar pelo ritmo acelerado dos ponteiros do grande relógio que trabalhava acomodado na rústica parede de tijolos de demolição do bistrô.
– Logo, preciso ir embora. Amanhã tenho uma palestra pela manhã.
– A saideira? – convidou a Cigarra.
Concordando com a cabeça, a Formiga sentiu os ombros relaxados e um suave sorriso se esboçando com o lento afastar das grandes mandíbulas. Seu corpo aceitara a bebida. O que restava era beber. E bebeu mais uma. Duas. Cinco canecas de chope. A esta altura, sequer percebeu quando a amiga subiu no pequeno palco do estabelecimento e voltou a cantar, a plenos pulmões. Desta vez, a mudança no corpo era evidente: vibrava como quisera ter vibrado com as crianças da rua, mas se sentia obrigada, pelas reprimendas do pai, a não sorrir. E, de tanto vibrar, de tanto cantar acompanhando a Cigarra, desde a mesa, passou a sentir que seu corpo já não era mais o mesmo. Percebendo a mudança em seu exoesqueleto, espiou o reflexo no amarelo do chope. Viu que possuía, agora, olhos grandes, de enxergar as sutilezas, asas vistosas, para voar acima dos sonhos, e a capacidade infinita de cantar a vida por onde andar. Tornara-se, também, uma Cigarra.
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