Inviolabilidade do Domicílio
Por: Ravielli • 6/11/2015 • Artigo • 5.279 Palavras (22 Páginas) • 181 Visualizações
No decorrer das mudanças constitucionais brasileiras, muitos foram os direitos adquiridos e extintos, mais incontestavelmente, os anos ditatoriais foram os mais marcantes ao povo brasileiro, haja vista as mudanças drásticas de imposição e cobrança dos direitos e deveres.
Contudo, após mais de vinte anos de trevas, é promulgada a Constituição Federal de 1988, marco na transição entre a ditadura e a democracia. A Constituição Cidadã veio como um elixir para (tentar) garantir aos cidadãos brasileiros e àqueles que aqui residem direitos fundamentais que hoje nos parecem naturais, mas foram duramente violados durante a ditadura militar de 1964 a 1985.
No atual cenário, o que vemos é a Constituição Federal sendo apenas um documento, pois, ainda que não estejamos sob a ditadura, grande parte de seus preceitos mais comezinhos são violados diariamente. Mesmo que se reconheça o grande avanço social alcançado por meio da norma constituinte, é entristecedor ver que alguns dos agentes responsáveis por essas violações são justamente aqueles que deveriam ser os guardiões do estado democrático de direito.
Na esfera penal, não raras vezes, deparamo-nos com verdadeiros vilipêndios ao texto constitucional. Um dos direitos fundamentais mais combalidos é o direito à inviolabilidade do domicílio, visto que inúmeros suspeitos têm suas residências invadidas pelas polícias civil e militar, sobretudo nas ações das UPP instaladas em comunidades anteriormente dominadas pelo tráfico de entorpecentes. Hoje, essas comunidades deixaram de ser reféns do traficante e passaram a viver sob a mira estatal. É a norma constitucional sendo derrubada pelo “pé na porta”. A doutrina, ensina:
“A conhecida imagem de que a casa de alguém é o seu castelo (my home is my castle, como de há muito dizem ingleses e americanos) dá conta da importância da inviolabilidade do domicílio para a dignidade e livre desenvolvimento da pessoa humana. Com efeito, a íntima conexão da garantia da inviolabilidade do domicílio com a esfera da vida privada e familiar lhe assegura um lugar de honra na esfera dos assim chamados direitos da integridade pessoal. Já por tal razão não é de surpreender que a proteção do domicílio foi, ainda que nem sempre da mesma forma e a amplitude atual, um dos primeiros direitos assegurados no plano das declarações de direitos e dos primeiros catálogos constitucionais.” SARLET, Ingo Wolfgang. Curso de direito constitucional. Ingo W. S., Luiz G. Marinoni, Daniel Mitidiero. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 401.
Ainda:
“A inviolabilidade do domicílio constitui direito fundamental atribuído às pessoas em consideração à sua dignidade e com o intuito de lhes assegurar um espaço elementar para o livre desenvolvimento de sua personalidade, além de garantir o seu direito de serem deixadas em paz, de tal sorte que a proteção não diz respeito ao direito de posse ou propriedade, mas com a esfera 3 espacial na qual se desenrola e desenvolve a vida privada”. (KLOEPFER, Michael. Verfassungsrecht II. Band I, München: C.H. Beck, 2011, p. 377 apud SARLET, Ingo Wolfgang; NETO, Jayme Weingartner Neto. A Inviolabilidade do Domicílio e seus limites: o caso do flagrante delito. Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 14, n. 14, julho/dezembro de 2013, p. 547.)
Quando falamos em domicílio no âmbito constitucionalista devemos ter uma visão ampla, entendida como projeção espacial da pessoa, alcançando todo lugar fechado ou não em que o indivíduo exerce suas atividades pessoais. Esses lugares podem ser o da residência da pessoa, independentemente de ser própria, alugada, ou ocupada em comodato, em visita etc. É irrelevante que a moradia seja fixa na terra ou não (um trailer ou um barco, podem qualificar-se como protegidos pela inviolabilidade do domicílio). Da mesma sorte, o dispositivo constitucional apanha um aposento de habitação coletiva (quarto de hotel, pensão ou motel).
A Constituição Federal não proíbe a entrada em casa alheia, ainda que à noite, para fazer cessar prática delitiva, em caso de flagrante, ou desastre, ou para prestar socorro, tudo isso sem determinação judicial (artigo 5º, LXI, CF). De fato, o crime de tráfico de drogas é permanente, podendo a prisão em flagrante ocorrer, inclusive no período noturno, independentemente da expedição de mandado judicial, determinação judicial que, aliás, só pode ser cumprida durante o dia. Ensina Leonardo Martins:
“A vontade do constituinte é clara. Cabe sim, de outra feita, investigar se o conceito de flagrante delito deve ser o mesmo conceito próprio das leis penal e processual penal. A resposta deve ser negativa, segundo entendimento aqui defendido. Não corresponde à boa prática hermenêutica constitucional interpretar conceitos constitucionais a partir de conceitos encontrados em leis ordinárias esparsas ou mesmo códigos. Pelo contrário, deve haver um esforço no sentido de interpretar os conceitos a partir do sistema interno constitucional, levando em consideração o princípio da unidade da Constituição. Neste sentido, o conceito de flagrante delito deve ser interpretado o mais restritivamente possível porque a Constituição brasileira é uma Constituição de liberdade e das liberdades. A consequência é que desprotegido estará o domicílio estará o domicílio, no contexto desta primeira hipótese, somente no caso de certeza pelo agente policial da prática imediata, que esteja ocorrendo dentro do domicílio. Mero flagrante esperado não deve ser suficiente. Especialmente no caso dos crimes continuados que não impliquem prática de violência, como no de guarda de entorpecentes para fins de tráfico, nada obsta que o investigador ou agente policial ostensivo requeira uma ordem judicial autorizadora de entrada a despeito da não anuência dos moradores.” (MARTINS, Leonardo (Art. 5º, XI, p. 289). CANOTILHO...[et al..]. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013.)
Para além da paráfrase do inciso XI do art. 5º da Constituição Federal, é de recuperar que a regra é a inviolabilidade, restringindo-se a tutela constitucional naqueles casos elencados no próprio dispositivo, que funcionam, então, como elementos excepcionais, como tais devendo ser interpretados e aplicados, sempre em harmonia com o programa normativo, que é de proteção do indivíduo.
O ambiente vital, que confere horizonte de sentido à ordem jurídica em análise, é o Estado democrático de direito, que procura conciliar os dois corações do atual Estado Constitucional, o princípio majoritário (governo da maioria, com soberania popular), e a proteção aos direitos e garantias fundamentais, inclusive da minoria. Em traço largo, afirmados constitucionalmente os direitos fundamentais, limitá-los e restringi-los é tarefa cometida, a priori, ao legislador e, na dinâmica social, ao Poder Judiciário, sendo que em ambos os casos, sob escrutínio do princípio da proporcionalidade.
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