Regra da moral provisória
Por: Marcelo Werly • 7/6/2017 • Trabalho acadêmico • 3.317 Palavras (14 Páginas) • 278 Visualizações
- As regras da moral provisória
E foi exatamente para favorecer o domínio da razão sobre a tirania das paixões que, desde o Discurso sobre o método, Descartes enunciou e propôs como moral provisória algumas normas que depois, tanto no intercâmbio epistolar como no Tratado sobre as paixões, revelaram-se para ele válidas e definitivas. Trata-se de normas simples, que é oportuno recordar sempre: ‘A primeira (regra) era obedecer às leis e aos costumes do meu país, observando constantemente a religião em que Deus me deu a graça de ser instruído desde a infância e norteando-me em todas as outras coisas segundo as opiniões mais moderadas e mais distantes de todo excesso, que fossem comumente acolhidas e praticadas pelas mais sensatas dentre as pessoas com quem me coubesse viver.’ Distinguindo entre a contemplação e a busca da verdade, por um lado, e as exigências cotidianas da vida, por outro, Descartes, para a verdade exige a evidência e a distinção, que, se alcançadas, nos dão o juízo; já para as segundas considera suficiente o bom senso, expresso pelos costumes do povo junto ao qual se vive. No primeiro caso, é necessária a evidencia da verdade; no segundo é suficiente a probabilidade. O respeito às leis do país é ditado pela necessidade e tranqüilidade, sem a qual não é possível a busca da verdade.
‘A segunda máxima era a de perseverar o mais firme e resolutamente possível em minhas ações, não deixando de seguir com menos constância as opiniões mais duvidosas, quando alguma vez a elas me determinasse, como se elas fossem as mais seguras.’
Aqui, trata-se de uma norma muito pragmática, que conclama a romper as protelações e superar a incerteza e a indecisão, porque a vida não pode esperar, sendo premente, mas sem esquecer que permanece a obrigação de examinar a veracidade e a bondade dessas opiniões, já que a veracidade e a bondade permanecem como ideais que regulam a vida humana. Descartes é inimigo da falta de decisão. Para superar isso, ele propõe o remédio de ‘habituar-se a formular juízos certos e determinados sobre as coisas que se apresentam, convencendo-se de que se cumpriu o próprio dever quando se faz aquilo que se julgava o melhor, ainda que seja julgando muito mal’. A vontade se retifica refinando o intelecto.
Nesse contexto, ele propõe então a ‘terceira máxima’, que é a de ‘esforçar-me sempre para vencer muito mais a mim mesmo do que ao destino e para mudar muito mais os meus desejos do que a ordem do mundo. E, em geral, acostumar-me a crer que não há nada que esteja inteiramente em nosso poder, exceto os nossos pensamentos’. O tema de Descartes, portanto, é a reforma de si mesmo, reforma que é possível fazer, refinando a razão através do habituar-se às regras da clareza e da distinção. Nós retificamos a vontade reformando a vida do pensamento. E é com esse objetivo que ele destaca na quarta máxima que a sua função mais importante foi a de ‘dedicar toda a minha vida a cultivar minha razão e o método que me havia prescrito’. O fato de ser esse o sentido das primeiras três máximas, bastante conformistas, é precisado pelo próprio Descartes, que acrescenta: ‘As três máximas anteriores fundamentavam-se precisamente no meu propósito de continuar a me instruir.’
O conjunto torna evidente a orientação da ética cartesiana, isto é, a lenta e trabalhosa submissão da vontade à razão, como força-guia de todo o homem. Identificando a virtude com a razão nessa perspectiva. Descartes se propõe a ‘seguir tudo aquilo que a razão me aconselhar, sem que as paixões e os apetites me afastem disso’. Com tal objetivo, o estudo das paixões e do seu entrelaçamento na alma visa a tornar mais fácil a consecução do primado da razão sobre a vontade e as sobre as paixões. A liberdade da vontade só se realiza através da submissão à lógica da ordem que o intelecto é chamado a descobrir, dentro e fora de si: ‘no universo cartesiano [...] ordem e liberdade não são dois termos que se excluem. A clareza e a distinção que garantem a existência de uma são também a condição para a explicação da outra. O cogito é a prova definitiva dessa verdade. Determinar-se não é subjazer a outra coisa, mas existir na forma mais exata (R. Crippa).
Em Descartes, predomina o amor pela necessidade do verdadeiro, cuja lógica,uma vez alcançada, se impõe com força da razão. Somente sob o peso da verdade é que o homem pode se considerar livre, no sentido de que obedece a si mesmo e não a forças exteriores. Se o ‘eu’ é definido como res cogitans, seguir a verdade significa seguir no fundo a si mesmo, na máxima unidade interior e no pleno respeito à realidade objetiva. O primado da razão deve se impor tanto no campo do pensamento como no da ação.
A virtude – à qual em última análise, a ‘moral provisória’ conduz – é identificada com a vontade do bem e esta com a vontade de pensar o verdadeiro, que, sendo verdadeiro, também é bem. Com toda razão R. Lefebre destaca que Descartes pretende ‘utilizar a ação para aperfeiçoar-se a razão e utilizar a razão para aperfeiçoar a ação: essa é a fórmula de uma sabedoria concebida como elevação do pensamento na vida e da vida no pensamento’. Se a liberdade como indiferença ‘é o mais baixo de grau de liberdade’, a liberdade como necessidade é o seu grau mais elevado, porque se identifica com a verdade, alcançada e proposta pela razão. Se é verdade que é preciso pensar segundo a verdade e viver segundo a razão, para Descartes é mais triste perder a razão do que a vida, já que neste caso se perderia a razão da vida. Assim, o eixo da reflexão e da ação se desloca do ser para o pensamento, de Deus e do mundo para o homem, da revelação para a razão, novo fundamento da filosofia e constante ideal normativo da ação.
(REALE.G. História da filosofia: do humanismo a Kant. p. 388- 390)
2- Grandeza e miséria da condição humana
“O homem, evidentemente, é feito para pensar: nisso reside toda a sua dignidade e a sua função. E todo o seu dever consiste em pensar como se deve. Pois bem, a ordem do pensamento está em começar pelo próprio ‘eu’, pelo próprio autor, pelo próprio fim.’ Assim como para Montaigne, também para Pascal o homem é o objeto sobre o qual a filosofia deve refletir. E a reflexão filosófica sobre o homem leva logo à consideração de que o ‘pensamento constitui a grandeza do homem”.
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