Tempo e lugar Augusto Matraga
Seminário: Tempo e lugar Augusto Matraga. Pesquise 862.000+ trabalhos acadêmicosPor: BrunaLewer • 16/1/2014 • Seminário • 10.507 Palavras (43 Páginas) • 447 Visualizações
Faculdade Fortium – Professor Fabrício Martins – Ead de Língua Portuguesa
A hora e vez de Augusto Matraga
Guimarães Rosa
Matraga não é Matraga, não é nada. Matraga é Estêves. Augusto Estêves, filho do Coronel Afonsão Estêves,
das Pindaíbas e do Saco-da-Embira. Ou Nhô Augusto — o homem — nessa noitinha de novena, num leilão de atrás
da igreja, no arraial da Virgem Nossa Senhora das Dores do Córrego do Murici.
Procissão entrou, reza acabou. E o leilão andou depressa e se extinguiu, sem graça, porque a gente direita foi
saindo embora, quase toda de uma vez.
Mas o leiloeiro ficara na barraca, comendo amêndoas de car tucho e pigarreando de rouco, bloqueado por
uma multidão encachaçada de fim de festa.
E, na primeira fila, apertadas contra o balcãozinho, bem iluminadas pelas candeias de meia-laranja, as duas
mulheres-à-toa estavam achando em tudo um espírito enorme, porque eram só duas e pois muito disputadas, todo-
o-mundo com elas querendo ficar.
Beleza não tinham: Angélica era preta e mais ou menos capenga, e só a outra servia. Mas, perto, encostado
nela outra, um capiau de cara romântica subia todo no sem-jeito; eles estavam se gostando, e, por isso, aquele povo
encapetado não tinha — pelo menos para o pobre namorado — nenhuma razão de existir. E a cada momento as
coisas para ele pioravam, com o pessoal aos gritos:
— Quem vai arrematar a Sariema? Anda, Tião! Bota a Sariema no leilão!...
— Bota no leilão! Bota no leilão...
A das duas raparigas que era branca e que tinha pescoço fino e pernas finas, e passou a chamar-se,
imediatamente, Sane ma — pareceu se assustar, O capiau apaixonado deixou fuchicar, de cansaço, o meio-riso que
trazia pendurado. E o leiloeiro pe dia que houvesse juízo; mas ninguém queria atender.
— Dou cinco mil-réis!
Sariema! Sariema!
E, aí, de repente, houve um deslocamento de gentes, e Nhô Augusto, alteado, peito largo, vestido de luto,
pisando pé dos outros e com os braços em tenso, angulando os cotovelos, varou a frente da massa, se encarou com
a Sariema, e pôs-lhe o dedo no queixo. Depois, com voz de meio-dia, berrou para o leiloeiro Tião:
— Cinqüenta mil-réis!...
Ficou de mãos na cintura, sem dar rosto ao povo, mas pausando para os aplausos.
Nhô Augusto! Nhô Augusto!
E insistiu fala mais forte:
Cinqüenta mil-réis, já disse! Dou-lhe uma! dou-lhe duas! Dou-lhe duas — dou-lhe três!
Mas, nisso, puxaram para trás a outra — a Angélica preta se rindo, senvergonha e dengosa — que se
soverteu na montoeira, de braço em braço, de rolo em rolo, pegada, manuseada, beliscada e cacarejante:
—Virgem Maria Puríssima! Úi, pessoal!
E só então o Tião leiloeiro achou coragem para se impor:
— Respeito, gente, que o leilão é de santo!...
— Bau-bau!
— Me desprezo! Me desprezo desse herege!... Vão coçar suas costas em parede!... Coisa de igreja tem
castigo, não é brinquedo... Deix’passar! ... Dá enxame, gente! Dá enxame!...
Alguns quiseram continuar vaia, mas o próprio Nhô Augusto abafou a arrelia:
— Sino e santo não é pagode, povo! Vou no certo... Abre, abre, deixa o Tião passar!
1Faculdade Fortium – Professor Fabrício Martins – Ead de Língua Portuguesa
Então, surpresos, deram caminho, e o capiau amoroso quis ir também:
—Vamos embora, Tomázia, aproveitando a confusão... E sua voz baixava, humilde, porque para ele ela não
era a Sariema. Pôs três dedos no seu braço, e bem que ela o quis acompanhar. Mas Nhô Augusto separou-os, com
uma pranchada de mão:
—Não vai, não!
E, atrás, deram apoio os quatro guarda-costas:
—Tem areia! Tem areia! Não vai, não!
É do Nhô Augusto... Nhô Augusto leva a rapariga! — gritava o povo, por ser barato. E uma voz bem entoada
cantou de lá, por cantar:
Mariquinha é como a chuva:
boa , p’ra quem quer bem!
Ela vem sempre de graça,
só não sei quando ela vem...
Aí o povaréu aclamou, com disciplina e cadência:
— Nhô Augusto leva a Sariema! Nhô Augusto leva a Sariema!
O capiauzinho ficou mais amarelo. A Sariema começou a querer chorar. Mas Nhô Augusto, rompente,
alargou no tal três pescoções:
— Toma! Toma! E toma!... Está querendo?...
Ferveram faces.
— Que foi? Que foi?...
— Deix’eu ver!...
— Não me esbarra, filho-da-mãe!
E a agitação partiu povos, porque a maioria tinha perdido a cena, apreciando, como estavam, uma falta-de-
lugar, que se de ra entre um velho — “Cai n’água, barbado!” — e o sacristão, no quadrante noroeste da massa. E
...