Uma Terra Um Povo Uma Questão
Por: Wallace Anderson • 16/6/2018 • Artigo • 5.850 Palavras (24 Páginas) • 249 Visualizações
PALESTINA: UMA TERRA, UM POVO, UMA QUESTÃO
- A Palestina e os palestinos: a origem da “Questão Palestina”
Até por volta dos últimos trinta anos do século XIX, tudo o que se localizava a leste de uma linha imaginaria traçada em algum ponto entre a Grécia e a Turquia era chamado de Oriente. Como uma designação criada na Europa, durante muitos séculos o “Oriente” representou um modo de pensar peculiar, como na expressão “a mentalidade oriental”, além de um conjunto de características culturais, políticas e até raciais especificas. Mas, principalmente, o Oriente representava uma espécie de generalização indiscriminada para a Europa, associada não só à diferença e à diversidade, mas também às vastidões, às massas indistintas, em sua maioria de pessoas que não eram brancas, bem como ao romance, ao exotismo e ao mistério das “maravilhas do Oriente”. Segundo Said (1992), qualquer pessoa familiarizada com a história política do fim da Era Vitoriana sabe o quão politicamente irritante a "Questão Oriental", como era chamada na época, seria, e com o tempo passou a substituir o "Oriente" como um assunto de preocupação. Por volta de 1918, estimava-se que as potências europeias controlavam a ocupação colonial de cerca de 85% do globo, dos quais um grande segmento pertencia às regiões anteriormente conhecidas simplesmente como orientais[1]. O romantismo do Oriente foi sucedido então pelo problema do convívio com o Oriente na disputa, em primeiro lugar, com outras forças europeias presentes por lá e, em segundo lugar, com os próprios colonos em sua luta pela independência. De lugar “afastado”, o Oriente tornou-se um lugar de pormenores extraordinariamente urgentes e precisos, um lugar de inúmeras subdivisões. Uma delas, o Oriente Médio, é até hoje uma região associada a infinitos problemas, complexidades e conflitos. No centro disso está o que Said (1992) chama de a “Questão Palestina”.
Como Said (1992) nos mostra, quando nos referimos a um assunto, a um local ou a uma pessoa na locução “a questão”, queremos dizer com ela uma série de coisas. Por exemplo, alguém conclui uma pesquisa sobre a atualidade, dizendo: “E agora chegamos à questão X”. O ponto aqui é que “X” constitui um assunto isolado dos demais, que deve ser tratado à parte. Em segundo lugar, usamos “a questão” em referência a algum problema de longa data, particularmente difícil de tratar, persistente: a questão dos direitos, a questão oriental, a questão da liberdade de expressão. Em terceiro lugar, e mais raramente, podemos empregar a locução “a questão” para sugerir que o status daquilo a que ela se refere na frase é incerto, questionável, instável: a questão da existência do monstro do Lago Ness, por exemplo. O uso de “a questão” em associação com a Palestina implica todos esses três significados. Assim como o Oriente do qual faz parte, a Palestina existe em um mundo diferente daquele que é habitual no Atlântico. De certo modo, a Palestina representa tudo aquilo em que se resume o problema internacional mais espinhoso do pós-guerra: a luta pela, para e na Palestina, que tem consumido as energias de mais pessoas do que em qualquer outra época. De acordo com Said (1992), a Palestina é em si um conceito muito debatido, e até contestado. Sua mera menção constitui, para os palestinos e seus partidários, um ato de afirmação política importante e positiva e, para os inimigos dos palestinos, um ato igualmente afirmativo, mas de uma rejeição bem mais negativa e ameaçadora. Devemos relembrar aqui que as manifestações de rua nos principais centros cosmopolitas norte-americanos no fim da década de 1960 e grande parte da década de 1970 foram lideradas por facções que bradavam que a “Palestina existe” ou que a “Palestina não existe”. Na Israel contemporânea, é comum que os palestinos sejam oficialmente tratados como os “assim chamados palestinos” – que é até uma denominação gentil comparada a de 1969, de que os palestinos não existiam.
Para Said (1992) a realidade é que, hoje, a Palestina não existe, exceto como uma memória ou, mais profundamente, como uma ideia, uma experiência política e humana e um ato de persistente vontade popular. Muitas pessoas que acompanham as notícias pelos jornais, pela TV ou pelo rádio, que parecem ter mais que um parco conhecimento político e que apregoam opiniões versadas sobre controvérsias internacionais, o Oriente Médio é, essencialmente, um conflito árabe-israelense e pouco mais que isso. É evidente que há uma redução considerável nessa visão, mas o que está de fato errado nela é que, na maioria das vezes, ela literalmente impede os palestinos de ter algo a ver com o atual Oriente Médio, que, desde setembro de 1978, parece ser simbolizado apenas por Menachem Begin, Anuar Sadat e Jimmy Carter fechados em Camp David. Parte expressiva da literatura sobre o Oriente Médio, pelo menos até 1968, dá a impressão de que a essência do que se passa no Médio Oriente é uma série de guerras intermináveis entre um grupo de países árabes e Israel. O fato de que tenha existido uma entidade como a Palestina até 1948 ou que a existência de Israel - a sua "independência", como se costuma dizer - foi o resultado da erradicação da Palestina: dessas verdades incontestáveis a maioria das pessoas que seguem os eventos no Oriente Médio desconhece ou não percebem. O mais relevante é a contínua negação ou ignorância da existência no cotidiano de cerca de quatro milhões de árabes muçulmanos e cristãos que são conhecidos entre si e pelos outros como palestinos. Eles constituem a questão da Palestina, e se não há nenhum país chamado Palestina, não é porque não há palestinos, porque eles realmente existem.
Boa parte da história recente envolve os palestinos e, assim como a presente realidade, é uma história dispersa em locais prováveis e improváveis. Nenhum simpósio, ensaio acadêmico ou atitude moral relativos aos assuntos internacionais é completo se não faz referência ao terrorismo palestino (também conhecido como “árabe”). Nenhum diretor de cinema que se preze e que esteja planejando um filme sobre uma barbaridade qualquer dos tempos atuais, provavelmente fictícia, deixaria de passar a oportunidade de apresentar um palestino em seu elenco como um terrorista de carteirinha. Filmes como Domingo Negro e O Comboio do Medo são grandes exemplos disso. Por outro lado, os palestinos têm sido associados canonicamente a todas as características de refugiados que, conforme a ocasião, apodrecem em campos de concentração, são um “joguete” político nas mãos dos Estados árabes. Comentaristas mais analíticos e pragmáticos observam com frequência que os palestinos formam a elite do mundo árabe. Não só eles parecem ter mais instrução do que qualquer um outro grupo nacional, como também ocupam posições sensíveis na comunidade política árabe global. Áreas delicadas, como ministério e instalações do Golfo Persico, consultoria econômica e educacional, e mais uma parcela ligada a alta burguesia árabe, são ocupadas por palestinos, e supõe-se que todos sejam ávidos por encrencas e vingança. (SAID, 1992)
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