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A SANIDADE

Por:   •  28/5/2021  •  Dissertação  •  1.785 Palavras (8 Páginas)  •  138 Visualizações

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(In)Sanidade

Não nasci diferente do resto, apenas um garoto saudável advindo de uma família abastada. Nunca tive problemas em conseguir o que queria, mas sentia que somente isso não era o bastante. Na verdade eu sempre quis descobrir o que realmente me satisfazia. O que era o bastante para mim. Sentado à beira da loucura, repentinamente começo a ouvir um característico som das ruas de uma caótica cidade, me viro em meio a uma poça de sangue, abro a enferrujada janela de um casebre e começo a sentir o cheiro do gosto de uma iminente derrota... Era a polícia. Talvez seja estranho o que um homem como eu, com todas as facilidades que a vida possa trazer esteja fazendo num casebre sujo e fétido em um local inóspito. Talvez a resposta para essa pergunta seja simplesmente: Eu não sei. Mas a verdade é que eu tenho absoluto conhecimento de causa.

Desde a minha infância sempre tive dificuldade em frear meus impulsos que eram quase que incontroláveis. À medida que fui crescendo esse desejo incontido foi se delineando em forma e personalidade, fazendo assim com que surgisse uma figura mais bestial e fria da imagem que me aparecia no espelho do banheiro ao barbear os poucos - quase contáveis - pelos que cresciam na minha pele branca e oleosa.

Lembro-me que morávamos em uma casa confortável e acolhedora. Possuíamos alguns empregados e, de certo, algum dinheiro que nos possibilitasse viver com folga. Papai era um engenheiro de renome e mamãe era professora de piano clássico (das mais talentosas que já havia visto). Possuía também dois irmãos mais novos, o que às vezes era um inferno, pois brigávamos muito, mas tudo sempre terminava bem. Bem como é clara a minha infância, lembro-me muito bem da primeira vez em que se manifestou essa obscuridade, esse implacável desejo que se apoderava de mim. Era uma tarde de quarta-feira com um avermelhado por do sol, uma vez que já estávamos no inverno, porém naquele dia, algo de estranho aconteceu. Estávamos brincando acerca de um pequeno bosque que havia nas proximidades da casa onde morávamos. Era costumeiro naquela época fazermos nossas traquinagens e, se bem me lembro, tínhamos idade para tanto, creio que na época deveríamos ter entre sete e dez anos, eu logicamente era o mais velho e líder das fuzarcas nas quais metia meus irmãos e fazia-os pagar no meu lugar. Mas dessa vez as travessuras ultrapassaram os limites. Brincávamos de brigar, brincadeira de meninos e nossa brincadeira favorita, quando repentinamente puxei o braço do meu irmão mais novo para trás e torci como um trapo velho que seca o chão. Ainda não o tinha quebrado, mas queria saber até onde ele suportaria aquela imensa dor. Fora a sensação mais esquisita que já experimentara, era um misto de prazer mórbido junto a uma raiva inexplicável por quanto ouvia um a um de seus ossos estalarem até finalmente se romper em um terrível e agonizante grito de dor. Não preciso nem dizer que a bronca compelida a mim tenha sido monumental (em toda a grandeza da palavra), mas ainda assim continuava a sentir aquela estranha frieza que me aplacara quando participei (ativamente) daquele episódio tão recente. Simplesmente ouvi, acatei palavra por palavra e, por fim, me virei para a escadaria que dava acesso aos nossos quartos.

Alguns anos depois de tal incidente – sete anos para ser mais exato – deparo-me diante do espelho sentindo aquele desejo lactente de sentir mais uma vez aquela sensação inenarrável. Nunca depois daquele dia havia novamente sentido o mesmo desejo, muito embora pensasse frequentemente no assunto, mas devidas as circunstâncias fazia questão de ignorar o que de forma subconsciente realmente desejava. Enquanto me olhava fixamente no espelho, senti minhas pernas tremerem ao ouvir uma voz muito conhecida por mim, ecoando de dentro do meu reflexo, mas dessa vez era a personificação do meu outro eu. E ele dizia desta forma:

        - Não se preocupe, não vou te machucar. Só se você pedir...

Uma risada sinistramente estrondosa invadiu-me toda a alma fazendo-me sentir como

se estivesse submerso em um lago de gelo. Lutei para não cair de joelhos, meus olhos

estavam mareados e incrédulos, pois sabia que mesmo com todas as forças

jamais conseguiria

me separar dele. Estranhamente, logo depois desse terrível encontro, comecei a me

sentir mais seguro, mais poderoso. O que se seguiu após a esse fato foi uma

incontrolável vontade de alimentar o meu pequeno demônio interior, mas ainda não

estava na hora certa.

Aos vinte e dois anos estava cursando a faculdade de antropologia e filosofia apesar de não saber ao certo o porquê da escolha dessa carreira, mas certamente queria aprender mais sobre o ser humano e as suas motivações tanto racionais quanto irracionais. Meu nome é Lúcio, estranho não ter dito antes, mas vai saber que diabo estava pensando. Ana Clara era a mulher mais bonita que já havia visto em toda face da terra. Conhecemo-nos através de uns amigos em comum e logo estávamos em baixo dos lençóis profundamente emaranhados e suados de tanto prazer e, entre uma ou outra relação amorosa, nos apaixonamos verdadeiramente.  Ao término do curso nos casamos. Trabalhava como pesquisador no campo da antropologia e por conta disso quase não parava em casa. Certo dia me levantou da cama um amedrontador sentimento de vazio e não sabia o que poderia preencher aquela lacuna angustiante, tomei um café amargo, despedi-me de Ana Clara e fui trabalhar. Ao ligar o carro senti novamente àquela estranha presença ao meu lado, mas dei de ombros e parti. No trajeto até o trabalho passava sempre por um lugarejo pouco afastado do centro urbano, embora nunca tenha prestado alguma atenção dessa vez foi diferente, havia uma pequena casa no meio de uma área descampada com uma colina logo atrás. Parei o automóvel e perguntei ao primeiro que apareceu quem era o dono e ele me disse que aquela propriedade estava abandonada há muito tempo devido a um assassinato que lá ocorrera. Cerca de uma semana depois voltei àquele local com uma pessoa estranha, um transeunte desvalido que repentinamente escolhi entre tantos outros. Parei o carro e ofereci uma carona, era notório o total desmazelo e esquecimento em que ele se encontrava e sordidamente me aproveitei disso, aliás, não eu e sim o meu pequeno monstro interior. Ao adentrar o casebre ele estranhou o vazio, mas antes que pudesse esboçar a mínima reação acertei-lhe um golpe na têmpora, logo caiu desmaiado e ao acordar já estava devidamente preso e amordaçado ao único móvel que era presente na casa, uma velha cadeira de madeira maciça. É claro que fui muito perspicaz e cuidadoso para não ser visto e sabia também que ninguém entraria ali para nada, então era perfeito, simplesmente p-e-r-f-e-i-t-o. Quebrei-lhe primeiro os dedos da mão um a um bem vagarosamente enquanto me alimentava da sua expressão de dor. Ininterruptamente batia em suas pernas com um pedaço de madeira tão maciça quanto a cadeira em que ele estava sentado, acho que na primeira pancada estraçalhei uns três ossos, sangrava-lhe os olhos de tanta dor. Esperei um determinado tempo e o alimentei para que não viesse desfalecer. Fui para casa e fiz amor loucamente com a minha esposa. Assim se seguiu por vários meses essa estafante rotina, torturava, alimentava, transava e dormia. Até um derradeiro dia em que o coitado simplesmente não aguentou e por causa de uma queimadurazinha no seu abdômen sucumbindo aos braços da morte, fraco. Posteriormente a ele houve mais seis vítimas, tão cruelmente execradas e, na verdade, até melhor, pois tinha me tornado especialista em não matar tão rapidamente os meus pacientes. Mas acabei me cansando de toda essa carnificina e decidi dar um tempo, já havia se passado dez anos ao João-ninguém e eu não tinha mais vida social, e até mesmo marital. Claro que minha esposa foi se distanciando de mim aos poucos e eu ignorava o abismo que se formava entre nós.

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